Cândido,
expulso do paraíso terrestre, caminhou por muito tempo sem saber por
onde, chorando, erguendo os olhos para o céu, voltando-os com
frequência para o mais belo dos castelos que encerrava a mais bela
das baronesinhas; dormiu sem jantar no meio dos campos, entre dois
sulcos; a neve caía em grandes flocos. Cândido, transido de frio,
arrastou-se no dia seguinte rumo à cidade vizinha, que se chama
Valdberghoff-trarbk-dikdorff, sem dinheiro, morrendo de fome e de
lassidão. Parou tristemente à porta de um cabaré. Dois homens
vestidos de azul o notaram: “Camarada”, disse um deles, “aí
está um jovem muito bem-apessoado e que tem o porte exigido”.
Avançaram em direção a Cândido e lhe pediram que jantasse, com
muita civilidade. “Meus senhores”, disse-lhes Cândido com uma
modéstia encantadora, “fico muito honrado, mas não tenho com que
pagar a minha parte.” “Ah! Meu senhor”, disse-lhe um dos azuis,
“as pessoas de vosso porte e mérito nunca pagam nada: não tendes
cinco pés e cinco polegadas de altura?” “Sim, senhores, é o meu
porte”, disse ele, fazendo uma reverência. “Ah! Meu senhor,
ponde-vos à mesa; não somente assumimos a despesa, mas nunca
aceitaríamos que um homem como vós esteja sem dinheiro; os homens
só são feitos para socorrer uns aos outros.” “Tendes razão”,
disse Cândido, “é o que o senhor Pangloss sempre me disse, e bem
vejo que tudo está pelo melhor.” Pedem-lhe que aceite alguns écus,
ele aceita e quer fazer-lhes um comprovante da dívida; não querem
nada disso, sentam-se à mesa: “Vós não amais com ternura?…”.
“Oh! Sim”, respondeu ele, “amo com ternura a senhorita
Cunegunda.” “Não”, disse um daqueles senhores, “estamos vos
perguntando se não amais com ternura o rei dos búlgaros.” “Não,
mesmo”, disse ele, “pois nunca o vi.” “Como! É o mais
encantador de todos os reis, e temos de beber à sua saúde.” “Ah!
Com muito gosto, meus senhores.” E ele bebe. “Basta”,
dizem-lhe. “Eis que sois o apoio, o sustentáculo, o defensor, o
herói dos búlgaros; vossa fortuna está feita e vossa glória está
garantida.” Colocam-lhe imediatamente ferros nos pés e levam-no
para o regimento. Fazem-no virar à direita, à esquerda, levantar a
vareta, recolocar a vareta, mirar, atirar, dobrar o passo, e dão-lhe
trinta bastonadas; no dia seguinte ele faz o exercício um pouco
menos mal, e recebe apenas vinte pancadas; dois dias depois só lhe
deram dez, e ele passa a ser visto por seus camaradas como um
prodígio.
Cândido,
completamente estupefato, não distinguia muito bem ainda como é que
ele era um herói. Um belo dia de primavera ele teve a ideia de ir
passear, caminhando direto para a frente, achando que era um
privilégio da espécie humana, como da espécie animal, servir-se
das pernas a seu bel-prazer. Mal andou duas léguas quando quatro
outros heróis de seis pés o alcançam, amarram-no, levam-no para
uma masmorra. Perguntaram-lhe juridicamente o que preferia: ser
fustigado trinta e seis vezes por todo o regimento, ou receber ao
mesmo tempo doze balas de chumbo no cérebro. Por mais que ele
dissesse que as vontades são livres e que não queria nem uma coisa
nem outra, foi preciso fazer uma escolha; ele decidiu-se, em virtude
do dom de Deus a que se chama liberdade, a passar trinta e seis vezes
pelas varas; aguentou dois passeios. O regimento era composto de dois
mil homens: isso lhe valeu quatro mil varadas que, desde a nuca até
o cu, puseram-lhe à mostra os músculos e os nervos. Como iam
proceder à terceira rodada, Cândido, não aguentando mais, pediu
como graça que aceitassem ter a bondade de quebrar-lhe a cabeça;
ele obteve tal favor; vedam-lhe os olhos, fazem-no ajoelhar-se. O rei
dos búlgaros passa nesse momento, informa-se sobre o crime do
paciente; e, como esse rei tinha um grande gênio, compreendeu, por
tudo o que ouviu de Cândido, que se tratava de um jovem metafísico,
completamente ignorante das coisas deste mundo, e concedeu-lhe a sua
graça com uma clemência que será louvada em todos os jornais e em
todos os séculos. Um bom cirurgião curou Cândido em três semanas
com os emolientes ensinados por Dioscórides. Já tinha um pouco de
pele e podia andar quando o rei dos búlgaros travou batalha com o
rei dos abares.
Voltaire, in Cândido ou o Otimismo
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