Na tarde de luz e calor, um grupo de pessoas foi à capela da Real Grandeza despedir-se de uma senhora idosa, que morava na ladeira dos Tabajaras. Dela todos diziam que fora e continuara linda em seus velhos dias, e de sua beleza se podia acrescentar que resultava não só de uma composição feliz de traços físicos, senão também do prestígio que a esses traços infundia a iluminação interior. Na verdade, aquela senhora era musa, e musa de um grande artista, o finado Eliseu Visconti.
Quem conhece a obra desse pintor ou quem, pelo menos, folhear o livro de Frederico Barata, dedicado à sua vida e ao seu tempo, se lembrará logo da nobre figura feminina que o artista se comprazia em retratar, ao longo de quarenta anos, e que ia assim salvando da lei da completa dissolução. Louise era o mais amado entre os modelos do pintor, e Visconti, em matéria de modelos, preferia-os familiares, porque eram os que revelavam maior paciência diante da lenta elaboração da obra de arte, e sobretudo eram aqueles a quem, por muito amar, muito compreendia. Quase todos os retratos assinados por Visconti têm essa “inteligência sensível” que, por uma absorção misteriosa, permite figurar ao mesmo tempo, e ao mesmo envoltório carnal, modelo e artista. Propriamente, não pintava coisas ou pessoas: fixava as visões que sua simpatia desvendava no universo, banhadas em luminosidade difusa, aqui intensa, ali suave. E não lhe encomendassem a repetição sumária da natureza, pois, como disse a seu biógrafo, a natureza é apenas um dicionário: o artista consulta-a para esclarecer alguma dúvida; no mais, interpreta por sua conta.
A casa de Saint-Hubert, nos arredores de Paris, onde Visconti, em 1902, conheceu sua companheira, o retrato de Louise em azul, verde e rosa, de vinte anos depois, o óleo renoiresco de 1909, em que aparece, também de rosa nos cabelos, a loura filha do casal, o estupendo Grupo de retratos, do Salão de 1921, em que o sentimento de família não traz nenhuma doçura choca à atmosfera, antes dá poesia intensa a cada figura, mais realçada no rosto espiritual de Louise, imerso em lonjuras de cisma, e As maçãs, Cura de sol, Afetos, tantos e tantos quadros de mestre Visconti revelam-no de fato o “pintor de família” que já se viu nele, mas sem corujismo ingênuo, porque a força plástica dominava qualquer outra consideração, e, daí, os exemplares humanos eram belos. Enquanto a família, para alguns temperamentos, aparece como um elenco de monstros de que é necessário fugir, ou que só ajuda o artista a criar pela necessidade, que ele tem, de subtrair-se a seu império nefasto, procurando um mundo diverso, no atelier da avenida Mem de Sá o melhor impulso à obra de Visconti emanava de uma corrente de ternura a circular sempre entre o pintor, sua mulher e seus filhos, ternura que sustentou esse meridional cheio de seiva, entusiasmo e capacidade de irritação e admiração, que ainda há dez anos era visto nas ruas do Rio, com a sua alva e luminosa cabeça a dominar a má pintura de seus contemporâneos retardados no culto ao poncif e ao vendável.
D. Louise lá se foi agora, a descansar nesse país neutro em que as pessoas são apenas lembrança, quando há quem as lembre. Mas no seu caso, todos sabemos que ela continuará viva e doce, nos museus e coleções onde haja um bom Visconti.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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