Arbeiterstadt (1920), de Hans Baluschek
Mas
se a arte é uma atividade humana cujo objetivo é transmitir aos
outros os melhores e mais elevados sentimentos que se atinge na vida,
como pôde a humanidade viver um período tão longo — desde o
tempo em que se deixou de acreditar no ensinamento da Igreja até
hoje — sem essa importante atividade e, em lugar disso, se
contentar com a atividade sem valor da arte que simplesmente garante
prazer?
Para
responder essa questão é necessário, antes de mais nada, corrigir
o erro que as pessoas geralmente cometem de atribuir à nossa arte o
significado de arte verdadeira e universalmente humana. Estamos tão
acostumados a considerar ingenuamente que a melhor raça humana não
é só a caucasiana, mas também, a anglo-saxã, se formos ingleses
ou americanos, a alemã, se formos alemães, a gálio-latina, se
formos franceses, e a eslava, se formos russos, que, quando falamos
de nossa arte, estamos plenamente convencidos de que ela não apenas
é arte verdadeira, mas também que é a melhor e a única. E, no
entanto, além de nossa arte não ser a única, tal como a Bíblia
não é o único livro, ela não é nem mesmo a arte de toda a
humanidade cristã, apenas aquela de uma pequena parcela da
humanidade. Era possível falar de uma arte nacional hebreia, grega
ou egípcia, assim como hoje se pode falar de uma arte chinesa,
japonesa ou indiana comum a toda a nação. Uma arte assim, comum a
toda a nação, existiu na Rússia antes de Pedro, o Grande, e também
em sociedades europeias até o século XIII ou XIV. Mas como as
pessoas das classes privilegiadas dessas sociedades, tendo perdido a
fé na doutrina da Igreja, não acolheram o verdadeiro cristianismo e
ficaram sem religião nenhuma, não é mais possível falar da arte
das altas camadas das nações cristãs como se se tratasse da arte
em geral. Desde que as classes superiores das nações cristãs
perderam a fé no cristianismo da Igreja, sua arte se tornou separada
da do povo e passaram a existir duas artes: a do povo e a dos
senhores. E, portanto, à pergunta de como pôde suceder que a
humanidade tenha vivido um certo período de tempo sem arte real,
tendo-a substituído pela arte que apenas serve ao prazer, cabe a
resposta de que não foi toda a humanidade que viveu sem a arte
verdadeira e nem mesmo uma parte considerável dela, mas apenas as
classes superiores da sociedade cristã europeia, e isso por um curto
período — desde o início da Renascença e da Reforma até a nossa
própria época.
E
a consequência dessa ausência de arte verdadeira mostrou ser
exatamente aquela que teria que ser: a depravação da classe que se
vale dessa arte. Todas as teorias confusas e incompreensíveis de
arte, todos os julgamentos falsos e contraditórios sobre ela, e,
acima de tudo, a estagnação autoconfiante de nossa arte no seu
caminho errôneo — tudo isso é resultado da afirmação, hoje de
uso comum e tomada como verdade incontestável, ainda que notável em
sua óbvia falsidade, de que a arte de nossas classes superiores é a
única verdadeira e universal. A despeito do fato de que essa
afirmação — perfeitamente idêntica à dos devotos de várias
religiões que consideram a sua a única e verdadeira — é
perfeitamente arbitrária e claramente incorreta, ela é calmamente
repetida por todas as pessoas do nosso círculo com total confiança
em sua infalibilidade.
A
arte que possuímos é toda a arte, a única e verdadeira, e, no
entanto, dois terços da raça humana, todos os povos da Ásia e da
África, vivem e morrem sem conhecer essa única arte verdadeira.
Além disso, não mais que 1% de todas as pessoas de nossa sociedade
cristã se beneficia desta arte que chamamos de toda a arte. Os
outros 99% dos europeus vivem e morrem, por gerações, trabalhando
duro, sem jamais provar dessa arte, que, aliás, é de tal espécie
que, mesmo que pudessem ter acesso a ela, não entenderiam nada. Nós,
conforme a teoria estética que professemos, reconhecemos que a arte
ou é uma das mais altas manifestações da Ideia, de Deus, da
Beleza, ou é o mais alto prazer espiritual. Além disso,
reconhecemos que todas as pessoas têm direitos iguais, se não às
bênçãos materiais, ao menos às espirituais; e, enquanto isso, 99%
do povo europeu, geração após geração, vive e morre trabalhando
duro em tarefas necessárias à produção de nossa arte, da qual não
se beneficia, e mesmo assim afirmamos calmamente que a arte que
produzimos é a real, a verdadeira, a única — é o todo da arte.
À
observação de que se nossa arte é a verdadeira todos deveriam
beneficiar-se dela, a objeção usual é que, se nem todos se
beneficiam, não é por culpa da arte, mas da organização errônea
da sociedade; que é possível imaginar que no futuro o trabalho
físico será parcialmente feito por máquinas e se tornará mais
leve por sua distribuição adequada, que o trabalho da produção de
arte será feito em turnos; que não há necessidade de que as mesmas
pessoas constantemente fiquem sob o palco, movimentando cenário,
levantando equipamentos e tocando piano ou tuba, ou compondo os tipos
e imprimindo livros, e que os que fazem tudo isso poderão trabalhar
um pequeno número de horas por dia e, no seu tempo livre, poderão
usufruir de todas as bênçãos da arte.
Assim
dizem os defensores de nossa arte exclusiva. Porém, eu acho que nem
mesmo eles acreditam no que dizem, porque não podem ignorar que
nossa arte refinada só pode emergir da escravidão das massas
populares, e só pode continuar enquanto essa escravidão existir, e
que os especialistas — escritores, músicos, dançarinos e atores —
só podem atingir seu alto grau de perfeição sob a condição do
trabalho pesado dos operários, e que somente nessas condições pode
existir o público requintado que aprecia essas obras. Libertem os
escravos do capital e será impossível produzir uma arte tão
refinada.
Mas,
mesmo que admitamos o inadmissível — isto é, que se encontrem
métodos que tornem possível a todas as pessoas se beneficiarem da
arte (ou o que é considerado arte entre nós) —, surge outra
consideração que mostra por que nossa arte de hoje não pode ser a
arte toda: a saber, que ela é totalmente incompreensível para o
povo. As obras poéticas já foram escritas em latim, mas hoje as
obras de arte são incompreensíveis para o povo, como se fossem
escritas em sânscrito. A resposta habitual a essa proposição é
que, se as pessoas não entendem a nossa arte agora, isso só prova
que são subdesenvolvidas, exatamente como aconteceu em cada novo
estágio da arte. Primeiro, não era entendido, mas depois as pessoas
se acostumavam.
“O
mesmo ocorrerá com a arte de hoje: ela se tornará compreensível
quando todos forem tão instruídos como nós, pessoas de classe
superior, que as produzimos”, dizem os defensores da nossa arte.
Mas essa afirmação obviamente é ainda mais incorreta do que a
primeira, porque sabemos que a maioria das obras de arte de classes
superiores — assim como odes, poemas narrativos, dramas, cantatas,
pastorais, pinturas etc., que as altas classes admiraram em sua época
— nunca foi mais tarde entendida nem admirada pelas grandes massas
e permaneceu o que sempre foi: uma diversão para as pessoas ricas de
seu tempo, as únicas para quem tinham alguma importância. A partir
disso se pode concluir que ocorrerá o mesmo com a nossa arte. E
quando, para provar que as pessoas no devido tempo a compreenderão,
é dito que algumas obras da assim chamada poesia, música ou pintura
clássica — de que as massas não gostavam a princípio —
passaram a ser apreciadas mais tarde, depois que lhe foram oferecidas
de todos os meios, isso somente prova que a multidão, e além do
mais uma multidão urbana, já de início meio corrompida, sempre
pode ser facilmente acostumada, pela deturpação do seu gosto, a
qualquer arte que se queira. E, além disso, essa arte não é
produzida nem escolhida por ela, mas lhe é empurrada à força nos
locais públicos onde essa multidão tem acesso à arte. Para a vasta
maioria dos trabalhadores, nossa arte, inacessível a eles em razão
de seu preço, também lhes é estranha em seu próprio conteúdo,
pois transmite os sentimentos de pessoas muito afastadas das
condições de vida de grande parte da humanidade. Aquilo que
constitui prazer para um homem das classes ricas não é percebido
como prazer por um trabalhador, e nada evoca nele, ou evoca
sentimentos completamente contrários àqueles sentidos por um homem
ocioso e saciado. Assim, por exemplo, os sentimentos de honra,
patriotismo e amorosidade, que constituem o principal conteúdo da
arte de nossos dias, evocam em um trabalhador somente perplexidade,
escárnio ou indignação. De forma que, mesmo que a maioria tivesse
a oportunidade, em seu tempo livre, de ver, ler ou ouvir — tal como
acontece nas cidades, em galerias de pinturas, concertos populares,
livros — tudo aquilo que constitui a flor da arte contemporânea,
não entenderia nada de nossa arte refinada e, mesmo que o fizesse, a
maior parte do que entendesse não só não elevaria sua alma, como
também a corromperia. Assim, para pessoas sinceras e responsáveis,
não há nenhuma dúvida de que a arte das classes altas nunca poderá
se tornar arte do povo todo. Portanto, se a arte é uma coisa
importante, um benefício espiritual tão necessário para todas as
pessoas quanto a religião (como gostam de dizer os admiradores da
arte), ela deveria então ser acessível a todos. E se ela não pode
se tornar arte para todo o povo, temos que admitir uma destas duas
coisas: ou a arte não é tão importante quanto se faz parecer que
é, ou a arte a que damos esse nome não é importante.
Esse
dilema é insolúvel e, desse modo, pessoas inteligentes e imorais o
resolvem audaciosamente negando um lado dele: o direito que as massas
populares têm de se beneficiar da arte. Essas pessoas dão voz
direta àquilo que se encontra no centro da questão: somente os
schöne Geister, ou os eleitos, como eram chamados pelos
românticos, ou super-homens, como foram chamados pelos seguidores de
Nietzsche, podem participar do belo supremo (em seu entendimento) e
se beneficiar dele — ou seja, usufruir do mais elevado prazer da
arte. Os demais, a plebe ignara, incapazes de vivenciá-lo, devem
servir aos sofisticados prazeres dessa raça superior de homens. Os
que expressam tal visão pelo menos não fingem nem desejam combinar
o incombinável; ao contrário, admitem diretamente o que acontece
nesse caso: a nossa arte é somente a arte da alta classe. Esse é,
essencialmente, o modo como a arte foi e é compreendida por todas as
pessoas dedicadas a ela na nossa sociedade.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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