terça-feira, 4 de julho de 2023

O homem que escutava as abelhas | 4


Tem um morador novo no B&B. Seus ombros são tão acentuados e suas costas tão curvas que quando ele se senta na cadeira, encurvado, parece ter asas debaixo da camiseta. Está conversando com o marroquino, e os dois tentam se comunicar numa língua que não conhecem muito bem. O marroquino parece gostar do rapaz. Seu nome é Diomande e ele vem da Costa do Marfim. De tempos em tempos, ele olha para mim enquanto fala, mas não demonstro estar prestando atenção.
A abelha continua viva. Localizei-a no jardim, empoleirada na mesma flor onde a deixei. Mais uma vez, atraí-a para a minha mão e trouxe-a comigo para a sala de visitas, e agora ela se arrasta pelo meu braço. Na maior parte do tempo, meus olhos estão fixos nas portas do pátio. Foco no reflexo de Diomande, e nas sombras salpicadas das árvores atrás dele.
Eu estava trabalhando no Gabão – Diomande está contando –, e me disseram que eu deveria ir para a Líbia, que ali existem muitas oportunidades. Meu amigo diz que houve uma guerra ali, mas que agora está seguro, então decido ir e conseguir um bom trabalho. Pago quinze mil francos CFA12 para ir de carro oito dias pelo deserto, mas fui capturado e posto na prisão. – Ele fala com os cotovelos nos joelhos, e enquanto se mexe, suas omoplatas sobem, e acho que talvez suas asas se abram. Ele é muito alto e muito magro, com os joelhos altos, de modo que está dobrado sobre si mesmo.
A gente ia três dias sem comida – ele continua –, só talvez um pouco de pão e água, para muitos de nós dividir. Eles bateram na gente, bateram na gente o tempo todo. Não sei quem eram, mas então eles querem duzentos mil CFA pela minha liberdade. Ligo para minha família mas dinheiro nunca veio.
Ele ajusta sua posição agora, e pousa os longos dedos marrons sobre os joelhos. Viro as costas para seu reflexo, e dou uma boa olhada nele, na maneira como os nós dos seus dedos se destacam e seus olhos se salientam. Não há carne nesse rapaz. É como se ele tivesse sido comido pelas aves. Parece um cadáver ou um prédio bombardeado. Ele flagra meu olhar, segura-o por um momento, e depois olha para o teto, para a lâmpada exposta.
Então, como foi que você escapou, geezer? – pergunta o marroquino, impaciente por ouvir o resto.
Depois de três mês a milícia rival invadiu a prisão e soltou todos os reféns. Eu estava livre. Caminhei até Trípoli, onde encontrei meu amigo e consegui trabalho.
Fico feliz por você – diz o marroquino.
Mas patrão novo não paga eu, e quando pergunto pelo dinheiro ele diz que vai me matar. Quero voltar para o Gabão, mas não tem como, então entro num barco de atravessadores para cruzar o Mediterrâneo.
O marroquino recosta-se na poltrona, então, e acompanha o olhar do rapaz até a lâmpada no teto.
Você chegou até aqui. Como?
É uma longa história – Diomande diz. Mas não diz mais nada. Parece cansado agora e, provavelmente notando isso, o marroquino dá um tapinha no joelho do rapaz e muda de assunto, contando-lhe sobre os costumes estranhos do povo daqui.
Eles usam tênis com ternos. Quem usa isso junto? E usam roupas de dormir ao ar livre. Por quê?
É agasalho – Diomande diz, apontando para o seu.
Geralmente, o velho está de pijama nesta hora da noite, mas durante o dia ele veste um velho terno azul-acinzentado e gravata.
Espero até eles irem para a cama e saio para o jardim, onde coloco a abelha de volta na flor. O som do trânsito é suave e sopra uma brisa, movendo as folhas. O sensor não me detectou, e a escuridão é tranquilizante, a lua está cheia e alta no céu, e é quando sinto alguém parado atrás de mim. Ao me virar, Mohammed está sentado no chão, brincando com a bolinha de gude, rolando-a nas rachaduras do cimento. Ao lado dele há uma minhoca deslizando para dentro de uma poça. Ele olha para mim.
Tio Nuri – diz –, estou ganhando da minhoca! O nome dela é Habib. Quer dar um oi pro Habib?
Ele pega a minhoca e levanta-a para que eu a veja.
O que está fazendo aqui? – pergunto.
Vim procurar a chave porque quero sair.
Que chave? – pergunto.
Acho que ela está naquela árvore. Está pendurada ali, mas não sei qual.
Viro-me e vejo que tem mais de uma centena de chaves douradas, penduradas na árvore. Elas giram com a brisa, e reluzem ao luar.
Você pega ela pra mim, tio Nuri? – ele diz. – Porque não consigo alcançar, e Habib está ficando cansado.
Olho para Habib, suspenso nos seus dedos.
Claro – respondo. – Mas como sei que chave você quer?
Pegue todas elas e então a gente tenta até achar uma que encaixe.
Entro na cozinha e pego uma tigela. Mohammed espera pacientemente que eu volte, e então começo a pegar as chaves da árvore. Tem uma escada no jardim, e uso-a para pegar as que estão nos galhos mais altos. Logo a tigela está quase cheia e verifico duas vezes para ter certeza de que não sobrou nenhuma chave. Quando me viro, segurando a tigela, Mohammed já não está lá. A minhoca está entrando na poça.
Levo a tigela para dentro e subo com ela para o meu quarto, onde a coloco na mesa de cabeceira do lado de Afra, ao lado da bolinha de gude. Tomo muito cuidado para não acordá-la. Deito-me ao seu lado. Ela está de frente para mim, os olhos fechados e as mãos enfiadas debaixo do rosto. Sei que dorme profundamente porque sua respiração está lenta e profunda. Viro-me para o outro lado e olho no escuro porque não consigo fechar os olhos. Penso no nosso tempo em Istambul, foi onde conheci Mohammed.
Do outro lado do Rio Asi havia uma cerca de arame farpado com um buraco de cerca de dois metros de diâmetro, como uma boca aberta. As pessoas jogavam seus pertences por sobre a cerca, e passavam as crianças pelo buraco. Ainda estava escuro e os atravessadores nos disseram para deitarmos de bruços e rastejar pela terra plana de solo empoeirado e samambaias.
Uma vez na Turquia, caminhamos pelo que pareceu ser uns 150 quilômetros, por plantações de trigo e cevada. Fazia silêncio. Afra segurava no meu braço e tremia, porque o frio era insuportável. Fazia cerca de meia hora que caminhávamos, quando, à distância, vimos uma criança correr para a rua, uma silhueta contra o sol. Ela acenava para alguém, e depois disparou em direção a algumas casas.
Aproximamo-nos de uma aldeia, pequenas casas de madeira com sacadas e venezianas abertas, pessoas olhando pela janela, outras saindo de suas casas, parando ao lado da estrada, os olhos arregalados de surpresa, como se estivessem vendo um circo itinerante. Havia uma longa mesa com copos de plástico e jarras de água. Paramos e bebemos, e mulheres da aldeia trouxeram cobertores. Elas nos deram pão e cerejas e sacolinhas com nozes, depois se afastaram e nos viram ir embora. Depois percebi que a expressão que eu tinha confundido como sendo de surpresa na verdade era de medo, e me imaginei trocando de lugar com elas, vendo centenas de pessoas alquebradas pela guerra dirigindo-se a um futuro incerto.
Andamos por mais uma hora, no mínimo, e o vento ficou mais forte, empurrando-nos para trás. Então, houve um súbito cheiro de esgoto e nos vimos num campo aberto. Havia tendas por toda parte e pessoas dormindo em cobertores, em meio ao lixo.
Encontrei um espaço debaixo de algumas árvores. Havia uma espécie de silêncio ali que me era desconhecido; na Síria, o silêncio continha perigo, podia ser rompido a qualquer momento por uma granada, pelo som de tiroteio, ou pelos passos pesados dos soldados. Em algum lugar à distância, na direção da Síria, a terra ribombava.
O vento soprou das montanhas, trazendo o cheiro de neve. Eu tinha uma imagem na minha mente: o brilho branco do Jabal al-Shaykh, a primeira neve que já vi, muitos anos atrás, a Síria à esquerda e o Líbano à direita, as fronteiras definidas pela cordilheira e o mar bem abaixo. Tínhamos colocado um melão no rio, e ele rachara com o frio. Minha mãe mordia a fruta verde congelada. O que estávamos fazendo ali, no topo do mundo?
Um homem perto de mim disse: – Quando você pertence a alguém e eles se vão, quem é você? – O homem parecia desfigurado, rosto sujo, cabelo despenteado. Tinha manchas na calça e fedia a urina. Havia sons na escuridão, como gritos de animais, e pensei que podia sentir a podridão da morte. Esse homem deu-nos uma garrafa de água e me disse para sentar sobre ela por um tempo, para aquecê-la, antes de bebermos. A noite veio e se foi e o sol nasceu. Havia comida no chão e um novo cobertor. Alguém tinha trazido pão duro, banana e queijo. Afra comeu e depois adormeceu novamente, com a cabeça no meu ombro.
De onde vocês são? – o homem perguntou.
Alepo. E você?
Do norte da Síria. – Mas não disse de onde.
Ele tirou o último cigarro de um maço e acendeu-o. Fumou-o lentamente, olhando para a terra árida. Devia ter sido um homem forte, mas agora não havia carne nele.
Qual é o seu nome? – perguntei.
Perdi minha filha e minha esposa – ele disse, deixando a bituca do seu cigarro cair no chão. E foi tudo o que ele disse a respeito, numa voz monocórdica, inexpressiva. Mas então, pareceu se lembrar de alguma coisa. – Algumas pessoas... – disse, por fim, depois de uma longa pausa –, algumas pessoas já estão aqui há um mês. Seria melhor evitar as autoridades e encontrar um atravessador. Eu tenho um pouco de dinheiro. – Ele olhou para mim, esperançoso, para ver o que eu diria.
Você sabe como? – perguntei.
Conversei com algumas pessoas, e tem um ônibus que pode levar a gente até a próxima cidade, e de lá podemos encontrar um atravessador. Vi pessoas irem e não voltarem. Não quero tentar sozinho.
Quando concordei em ir com ele, me disse que seu nome era Elias.
Pelo resto daquele dia, Elias teve uma missão; falou com algumas pessoas, fazendo chamadas pelo meu celular, que só tinha um restinho de bateria. À tarde, ele tinha arrumado um encontro de nós três com um atravessador, na cidade próxima, e de lá iríamos para Istambul. Foi estranho pensar em como tinha sido fácil combinar, que existia um sistema organizado para aqueles dentre nós com sorte suficiente para poder arcar com aquilo.[...]

Christy Lefteri, in O homem que escutava as abelhas

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