sexta-feira, 23 de junho de 2023

O que é arte? | Capítulo V

O Grito (1893), de  Edvard Munch

O que é arte, então, se descartamos o confuso conceito de beleza? As últimas e mais compreensíveis definições, independentes do conceito de beleza, seriam as seguintes: a arte é uma atividade que já emerge no mundo animal, proveniente da sexualidade e de uma propensão para a brincadeira (Schiller, Darwin, Spencer), acompanhada por uma excitação agradável da energia nervosa (Grant Allen). Essa é a definição fisiológico-evolucionária. Ou, a arte é uma manifestação exterior, por meio de linhas, cores, gestos, sons ou palavras, de emoções vivenciadas pelo homem (Véron). Essa é a definição prática. Ou, segundo a mesma recente definição de Sully, a arte é “a produção de um objeto permanente ou ação passageira, que se presta não somente a proporcionar desfrute ativo ao seu produtor, mas a comunicar impressão prazerosa a um certo número de espectadores ou ouvintes, independentemente de qualquer benefício pessoal a ser auferido disso”.
A despeito da superioridade dessas definições em relação às definições metafísicas baseadas no conceito de beleza, elas ainda estão longe de ser precisas. A primeira delas, fisiológico-evolucionária, é imprecisa porque não fala da atividade que constitui a essência da arte, mas de suas origens. Essa definição pelo impacto fisiológico sobre o organismo humano é imprecisa, ainda, porque muitas outras atividades relativas ao homem podem caber nela, como ocorrem nas novas teorias estéticas que acham que é arte fazer belas roupas e perfumes agradáveis, e até mesmo comida. A definição prática que supõe que a arte é a expressão das emoções é imprecisa porque um homem pode expressar suas emoções por meio de linhas, cores, sons e palavras sem afetar outros com isso, e essa expressão então não será arte.
A terceira definição, de Sully, é também imprecisa porque, na produção de objetos que proporcionam prazer ao produtor e uma impressão agradável aos espectadores ou ouvintes, independentemente de algum benefício para eles, podem ser incluídos a execução de truques de mágica, números de ginástica e outras atividades que não são arte. Por sua vez, muitos objetos que produzem uma impressão desagradável, como uma cena lúgubre e cruel em uma descrição poética ou no teatro, são inquestionavelmente obras de arte.
A imprecisão de todas essas definições resulta do fato de que em todas elas, tal como nas definições metafísicas, o objetivo da arte está colocado no prazer que extraímos dela, e não em seu propósito na vida do homem e da humanidade.
Para definir arte com precisão, devemos antes de tudo parar de olhar para ela como veículo de prazer e considerá-la desta forma: não podemos deixar de ver que a arte é um meio de comunhão entre as pessoas.
Cada obra de arte faz com que aquele que a recebe entre em um certo tipo de comunhão com aquele que a produziu ou está produzindo e com todos aqueles que, simultaneamente ou antes ou depois dele, receberam ou irão receber a mesma impressão artística.
Tal como a palavra, transmitindo os pensamentos e experiências dos homens, serve para unir as pessoas, a arte serve exatamente para o mesmo propósito. A peculiaridade desse meio de comunhão, que a distingue da comunhão por meio da palavra, é que pela palavra um homem transmite seus pensamentos a outro, enquanto que com a arte as pessoas transmitem seus sentimentos umas às outras.
A atividade da arte é baseada no fato de que o homem, ao receber pela audição ou visão as expressões dos sentimentos de outro homem, é capaz de experimentar os mesmos sentimentos daquele que os expressa.
O exemplo mais simples: um homem ri e outro homem se sente alegre; ele chora, e o homem que ouve esse choro se sente triste; um homem está animado, aborrecido, e outro, olhando-o, entra no mesmo estado. Com seus movimentos, o som da sua voz, um homem demonstra alegria, determinação, ou, ao contrário, melancolia, calma — e essa disposição se comunica aos outros. Um homem sofre, expressando-se com gemidos e convulsões — e esse sofrimento é comunicado a outros. Um homem demonstra seu sentimento de admiração, assombro, medo, respeito por certos objetos, pessoas ou fenômenos — e outras pessoas ficam contagiadas, experimentam os mesmos sentimentos de admiração, assombro, medo, respeito pelos mesmos objetos, pessoas ou fenômenos.
A atividade da arte se baseia nessa capacidade que as pessoas têm de ser contagiadas pelos sentimentos de outras pessoas.
Se um homem contagia outro, ou outros, diretamente por sua aparência ou pelos sons que produz no momento em que experimenta um sentimento, se faz alguém bocejar quando ele mesmo sente vontade de bocejar, ou rir e chorar quando ele mesmo ri ou chora por alguma coisa, ou sofrer quando sofre, isso ainda não é arte.
A arte começa quando um homem, com o propósito de comunicar aos outros um sentimento que ele experimentou certa vez, o invoca novamente dentro de si e o expressa por certos sinais exteriores.
Tomemos o caso mais simples: um garoto que uma vez vivenciou, digamos, medo ao encontrar um lobo nos conta sobre esse encontro e, para invocar nos outros o sentimento que experimentou, descreve a si mesmo seu estado de espírito antes do encontro, os arredores, a floresta, sua despreocupação, e então a aparição do lobo, seus movimentos, a distância entre o lobo e ele, e assim por diante. Tudo isso — como se ao contar a história o garoto revivesse os sentimentos que experimentou, contagiando seus ouvintes e fazendo-os reviver tudo que ele, narrador, viveu — é arte. Mesmo que o garoto não tivesse visto um lobo, mas tivesse muitas vezes sentido medo disso e, querendo invocar em outros o sentimento que teve, inventasse o encontro com o lobo, contando-o de tal maneira que por meio de sua narrativa ele invocasse nos ouvintes o mesmo sentimento que teve ao imaginar o lobo — isso também é arte. E, de modo idêntico, é arte se um homem, tendo experimentado na realidade ou em imaginação o horror do sofrimento ou a delícia do prazer, expressa esses sentimentos sobre a tela ou no mármore de tal maneira que outros sejam contagiados por eles. E da mesma forma será arte se um homem que vivenciou ou imaginou sentimentos de regozijo, felicidade, tristeza, desespero, alegria, melancolia, bem como as transições entre esses sentimentos, vier a expressá-los em sons de forma que os ouvintes se contagiem com eles e os vivenciem da mesma maneira como ele os experimentou.
Sentimentos os mais diversos, muito fortes e muito fracos, significativos e sem valor, muito ruins e muito bons, desde que contagiem o leitor, o espectador, o ouvinte, constituem a matéria da arte. O sentimento de autonegação e submissão ao destino ou a Deus, retratado num drama; os enlevos de amantes descritos em um romance; o sentimento de sensualidade descrito em uma pintura; a vivacidade transmitida por uma marcha triunfal na música; a alegria evocada por uma dança; a comicidade causada por uma história engraçada; o sentimento de paz transmitido por uma paisagem vespertina ou uma canção acalentadora — tudo isso é arte.
Desde que os espectadores ou ouvintes sejam contagiados pelo mesmo sentimento que o autor experimentou, trata-se de arte.
Invocar em si mesmo um sentimento certa vez experimentado e, havendo-o invocado, transmiti-lo por meio de movimentos, linhas, cores, sons, imagens expressas em palavras, de forma que outros vivenciem o mesmo sentimento — nisso consiste a atividade da arte. Portanto, arte é a atividade humana que consiste em um homem conscientemente transmitir a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que ele vivenciou, e esses outros serem contagiados por esses sentimentos, experimentando-os também.
A arte não é, como dizem os metafísicos, a manifestação da ideia misteriosa, ou beleza, ou Deus; não é, como os estetas-fisiologistas dizem, uma forma de brincar em que o homem libera um excedente de energia estocada; não é a manifestação de emoções por meio de sinais exteriores; não é a produção de objetos agradáveis; não é, acima de tudo, prazer; é, sim, um meio de intercâmbio humano, necessário para a vida e para o movimento em direção ao bem de cada homem e da humanidade, unindo-os em um mesmo sentimento.
Da mesma forma que, graças à capacidade humana de entender pensamentos expressos em palavras, qualquer homem pode aprender tudo que a humanidade fez por ele no domínio do pensamento, e pode no presente, em virtude da capacidade de entender os pensamentos, participar das atividades de outras pessoas, e pode ele mesmo, graças a essa capacidade, transmitir os pensamentos que recebeu de outros, bem como os seus próprios pensamentos a seus contemporâneos e à posteridade. Assim, a capacidade humana de contagiar-se pelos sentimentos de outras pessoas por meio da arte proporciona ao homem acesso a tudo que a humanidade experimentou antes dele no domínio do sentimento e aos sentimentos vivenciados por seus contemporâneos e por outros homens milhares de anos antes, sendo ainda possível para ele transmitir esses sentimentos a outras pessoas.
Se os homens fossem incapazes de receber todos os pensamentos transmitidos em palavras por aqueles que viveram antes deles, ou de transmitir seus próprios pensamentos a outros, eles seriam como as bestas ou como Kaspar Hauser.
Se não possuíssem essa outra capacidade — a de serem contagiados pela arte —, talvez fossem ainda mais selvagens e, acima de tudo, mais divididos e hostis.
Portanto, a atividade da arte é muito importante; tão importante quanto a fala e da mesma forma amplamente disseminada.
Tal como a palavra nos afeta não apenas em sermões, orações e livros, mas em todas aquelas enunciações nas quais transmitimos nossos pensamentos e experiências uns aos outros, assim também a arte, no sentido amplo da palavra, permeia toda a nossa vida, ao passo que, no sentido estrito da palavra, chamamos de arte somente algumas de suas manifestações.
Estamos acostumados a considerar arte somente o que lemos, ouvimos e vemos em teatros, concertos e exposições, edificações, estátuas, poemas, romances... Mas isso tudo é somente uma pequena parte da arte pela qual nos comunicamos uns com os outros em nossa existência. A vida humana está cheia de obras de arte de vários tipos, de canções de ninar, piadas, mímica, decoração de ambientes, roupas e utensílios, até serviços religiosos e procissões solenes. Tudo isso é atividade da arte. Portanto, no sentido estrito da palavra, não podemos denominar arte toda atividade humana que transmite sentimentos, mas somente aquelas que, por alguma razão, escolhemos entre todas e às quais damos importância especial.
Essa importância especial sempre foi dada, por todo o mundo, àquela porção de atividade que transmite sentimentos derivados de sua consciência religiosa, e é essa pequena parte do todo que foi chamada de arte no sentido pleno da palavra.
Essa era a visão da arte entre os homens da Antiguidade — Sócrates, Platão, Aristóteles. A mesma visão foi partilhada pelos profetas hebreus e os primeiros cristãos; e ela é compreendida da mesma maneira, hoje, pelos muçulmanos e pelos homens religiosos do povo.
Alguns mestres da humanidade, como Platão, em A república, os primeiros cristãos, os muçulmanos ortodoxos e os budistas muitas vezes chegaram a rejeitar a arte em sua totalidade.
As pessoas que têm essa visão, contrária à visão moderna que considera qualquer arte boa desde que dê prazer, pensavam e pensam que a arte, diferentemente da palavra — que é algo que não se precisa escutar —, é tão altamente perigosa em sua capacidade de contagiar as pessoas contra sua vontade que a humanidade perderia muito menos se toda arte fosse banida do que se todo tipo de arte fosse tolerado.
Essas pessoas que rejeitaram toda arte estavam obviamente erradas, porque rejeitaram o que não pode ser rejeitado — um dos meios mais necessários de comunicação, sem o qual a humanidade não pode viver. Mas não estão menos erradas as pessoas de nossa civilizada sociedade europeia, do nosso círculo e da nossa época, ao tolerar toda arte, desde que sirva à beleza — isto é, desde que dê prazer às pessoas.
Antigamente, havia o medo de que entre os objetos de arte houvesse alguns que pudessem corromper, portanto toda arte era proibida. Agora, existe somente o medo de que se possa ser privado de algum prazer proporcionado pela arte, portanto toda arte é patrocinada. E eu acho que o segundo erro é muito maior do que o primeiro, e suas consequências são muito danosas.

Leon Tolstói, in O que é arte?

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