sábado, 24 de junho de 2023

Hollywood | 19


Jon entrou em ação. Fizeram cópias do argumento, enviaram a produtores, agentes, atores. Voltei a mexer com o poema. Também produzi um novo sistema para o hipódromo. Isso era importante para mim, porque me permitia esquecer que devia ser um escritor. Escrever era estranho. Eu precisava escrever, era como uma doença, uma droga, uma forte compulsão, mas não me agradava pensar em mim mesmo como um escritor. Talvez tivesse conhecido escritores demais. Eles levavam mais tempo falando mal uns dos outros do que fazendo seu trabalho. Eram nervosos, fofoqueiros, velhas solteironas; viviam se lamentando, dando facadas, inchados de vaidade. Eram esses os nossos criadores? Sempre fora assim? Provavelmente sim. Talvez escrever fosse uma forma de lamento. Alguns simplesmente se lamentavam melhor que os outros.
De qualquer modo, o argumento circulou e não houve ofertas. Alguns disseram que era interessante, mas a principal queixa era de que não havia público para aquele tipo de filme. Tudo bem mostrar como uma pessoa outrora grande ou incomum era destruída pela bebida. Mas concentrar-se apenas num vagabundo bebendo ou num bando de vagabundos bebendo não fazia muito sentido. Quem estava ligando? Quem ligava para como eles viviam ou morriam?
Mas eu recebi um telefonema de Jon:
Escuta, Mack Austin pegou o argumento e gostou. Quer dirigir, e quer o mesmo cara que eu no papel principal.
Quem?
Tom Pell.
É, ele faria um bom bêbado...
Pell está maluco pelo argumento. É maluco por sua obra, leu tudo que você escreveu. Está tão maluco pelo argumento que diz que trabalha nele por um dólar.
Nossa...
Só insiste que Mack Austin dirija. Eu não gosto desse Mack Austin. É meu inimigo.
Por quê?
Oh, a gente teve uns problemas.
Por que não se beijam e fazem as pazes?
NUNCA! MACK AUSTIN JAMAIS DIRIGIRÁ O MEU FILME!
Tudo bem, Jon, vamos esquecer isso.
Não, espere, quero arrumar uma reunião em sua casa entre Mack Austin, Tom Pell e eu. E você, é claro. Talvez você consiga fazer Tom Pell mudar de ideia e fazer o filme sem Austin. Ele é um grande ator, você sabe.
Eu sei. Então convide eles. Ele vai trazer Ramona?
Não.
Tom se casara com Ramona, famosa cantora pop.
Bem, quando será melhor?
Eles concordaram amanhã à noite, às oito e meia, se estiver bem pra você.
Você joga rápido.
Neste jogo, a gente joga rápido ou morre.
Não é como xadrez?
É mais como gamão entre idiotas.
Um dos idiotas vence?
E um perde.

Descobri um pouco mais sobre o caso entre Jon Pinchot e Mack Austin. Embora Jon tivesse feito a maior parte de seus filmes na Europa, e os filmes de Austin fossem americanos, a turma do cinema frequentava os mesmos lugares em Hollywood. Jon e Mack Austin comiam no mesmo restaurante da moda. Não sei bem ao certo quem estava bebendo e quem não, mas parece que se iniciou uma discussão entre os dois diretores em mesas não muito próximas. Papo do ofício, vocês sabem. Técnica. Origens. Formação. Perspectiva. Etc.
A coisa prosseguia entre as mesas, diante de uma boa plateia de gente da “indústria”.
Finalmente, Mack levantou-se e gritou para Jon:
VOCÊ SE INTITULA DIRETOR? NÃO PODE DIRIGIR NEM O TRÂNSITO!
Bem, eu não sei. Dirigir o trânsito é um serviço que exige grande habilidade.
De qualquer modo, outras pessoas haviam antes acusado Mack em público de não poder dirigir nem o trânsito. Agora ele passava adiante o cumprimento. Vale tudo em ódio e em Hollywood.
Mais tarde eu soube de outras histórias semidocumentadas de choques entre Mack e Jon.
De qualquer modo, a reunião se realizava...

INTERIOR. CASA DO ESCRITOR. 20:15.
Jon chegara um pouco adiantado.
Espere só até ver Austin – disse. – Largou as drogas e o álcool. Parece um pneu furado, uma meia vazia...
Eu acho sensacional – disse Sarah – que ele tenha se livrado. É preciso coragem.
Legal – disse Jon.

Eles chegaram lá pelas 20:35. Tom de blusão de couro. Mack numa jaqueta de couro de bezerro com franjas. Usava uma meia dúzia de correntes de ouro. Acabadas as apresentações, servi vinho a Tom. Ele se abancou à mesa do café.
Tom começou.
Eu vi o argumento. Adoro. Quero enfiar meus bicúspides naquela porra. Já sinto o gosto. É o tipo de papel que eu gosto.
Obrigado, meu chapa. A sua foi a única mordida que recebemos.
Tom e eu temos até um investidor. Estamos prontos pra rolar – disse Mack.
Tem certeza de que não quer um drinque, Mack? – perguntei.
Não, obrigado.
Vou pegar um refrigerante pra você – disse Sarah. – Ou prefere chá?
Um refrigerante está ótimo.
Sarah foi buscar algo para deixar Mack à vontade. Nós tínhamos refrigerantes naturais. Os melhores.
Tomei minha bebida de vez, servi outra. Começava a sentir uma certa futilidade em todo tipo de acerto ou acordo.
Eu preciso de Mack como diretor. Conheço o trabalho dele. Confio nele – disse Tom.
Não confia em mim? – perguntou Jon.
Não é isso. É que eu sinto que posso trabalhar mais intimamente com Mack.
Eu sou o único que vou dirigir este filme – disse Jon.
Escuta – disse Tom. – Sei que este filme significa muito pra você. A gente pode criar uma posição pra você. Será bem pago e poderá exercer bastante controle. Por favor, aceite. Eu quero ver essa coisa rolando. Por favor, tente entender.
Sarah voltava com o refrigerante de Mack.
Eu sei que posso trabalhar bem com Tom – disse Mack.
Você não pode... – começou Jon.
...dirigir nem o trânsito – concluiu Mack.
A discussão prosseguiu interminável. Horas. Sarah, Jon e eu continuamos bebendo. Tom também. E Mack traçando os refrigerantes naturais.
Vocês são todos cabeçudos – disse Sarah. – Certamente a gente pode chegar a algum acordo.
Mas tudo continuava exatamente como no início. Ninguém cedia. E eu não tinha ideias. Não podia romper o impasse.
Começamos até mesmo a falar de outras coisas. Trocamos várias histórias engraçadas. A bebida rolava.
Lá para o fim, não me lembro quem contava a história, mas chegou a Mack Austin. E o atingiu em cheio, com refrigerantes naturais e tudo. Ele caiu para trás, gargalhando aos berros. As correntes de ouro saltavam.
Depois ele se recompôs.
Logo em seguida, já era hora de nos separarmos. Tom e Mack precisavam sair. Nos despedimos. Depois que o carro deles desceu de ré a estradinha de acesso à casa, Jon me olhou:
Você ouviu aquela risada falsa? Viu como as porras daquelas correntes de ouro saltavam no pescoço dele? De que estava rindo? Você viu aquelas porras daquelas correntes de ouro?
É, vi, sim – eu disse.
Ele estava nervoso – disse Sarah. – Era o único que não estava bebendo. Já estiveram numa sala cheia de bêbados quando não estão bebendo?
Não – eu disse.
Escuta – me disse Jon. – Posso usar o telefone?
Claro...
Preciso ligar pra Paris! Já!
Quê?
Não se preocupe. Ligo a cobrar. Quero falar com meu advogado. Sobre uma cláusula adicional em meu testamento...
Vá em frente.
Jon foi ao telefone e começou a fazer os arranjos para uma ligação. Eu me aproximei e reabasteci os copos deles. Depois voltei.
É terrível – disse Sarah. – Lá se vai o filme.
Bem, quase alguma coisa já é melhor do que nada.
É?
Pensando bem, não tenho tanta certeza...
Jon fez sua ligação. Tomara mais que alguns drinques e estava excitado. Nós o ouvíamos facilmente.
PAUL! É, É JON PINCHOT! É, É URGENTE! QUERO UM ADITIVO EM MEU TESTAMENTO! ESTÁ PRONTO? SIM, EU ESPERO!
Olhou-nos.
Isto é muito importante...
Depois:
É, PAUL! TEM UM FILME AÍ. EU TENHO O CONTROLE. CHAMA-SE A DANÇA DE JIM BEAM, ESCRITO POR HENRY CHINASKI! MUITO BEM. ANOTE O SEGUINTE! EM CASO DE MINHA MORTE, ESTE FILME JAMAIS DEVERÁ SER DIRIGIDO POR MACK AUSTIN! ESTE FILME PODE SER DIRIGIDO POR QUALQUER UM NA TERRA, EXCETO MACK AUSTIN! PEGOU ISSO, PAUL? É, MUITO OBRIGADO, PAUL. SIM, ESTOU BEM. COMO VAI SUA SAÚDE? TUDO BEM, QUALQUER UM, MENOS MACK AUSTIN! MUITÍSSIMO OBRIGADO, PAUL! BOA NOITE! BOA NOITE!
Depois disso, tomamos mais um grande gole juntos. E Jon tinha de ir embora. Ele parou na porta.
Você ouviu aquela risada falsa? Viu aquelas correntes de ouro saltando?
Vi, Jon...
E então ele se foi e a noite acabara. Fomos chamar os gatos. Tínhamos cinco gatos e não podíamos dormir até recolher todos os cinco pra dentro de casa.
Os vizinhos nos ouviam a chamá-los tarde da noite ou no início da madrugada. Tínhamos vizinhos bacanas. E os cinco gatos não tinham porra de pressa nenhuma pra se recolher.

Charles Bukowski, in Hollywood

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