Não
te arrependas de ser generoso; a pratinha rendeu-me uma confidência
de Dona Plácida, e conseguintemente este capítulo. Dias depois,
como eu a achasse só em casa, travamos palestra, e ela contou-me em
breves termos a sua história. Era filha natural de um sacristão da
Sé e de uma mulher que fazia doces para fora. Perdeu o pai aos dez
anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros misteres de
doceira, compatíveis com a idade. Aos quinze ou dezesseis casou com
um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe uma
filha.
Viúva,
com pouco mais de vinte anos, ficaram a seu cargo a filha, com dois,
e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de sustentar a três pessoas.
Fazia doces, que era o seu ofício, mas cosia também, de dia e de
noite, com afinco, para três ou quatro lojas e ensinava algumas
crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isto iam-se
passando os anos, não, não a beleza, porque não a tivera nunca.
Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia.
– Se
eu pudesse encontrar outro marido, disse-me ela, creia que me teria
casado; mas ninguém queria casar comigo.
Um
dos pretendentes conseguiu fazer-se aceito; não sendo, porém, mais
delicado que os outros, Dona Plácida despediu-o do mesmo modo, e,
depois de o despedir, chorou muito. Continuou a coser para fora e a
escumar os tachos. A mãe tinha a rabugem do temperamento, dos anos e
da necessidade: mortificava a filha para que tomasse um dos maridos
de empréstimo e de ocasião que lixa pediam. E bradava:
– Queres
ser melhor do que eu? Não sei donde te vem essas fidúcias de pessoa
rica. Minha camarada, a vida não se arranja à toa; não se come
vento. Ora esta! Moços tão bons como o Policarpo da venda,
coitado... Esperas algum fidalgo, não é?
Dona
Plácida jurou-me que não esperava fidalgo nenhum.
Era
gênio. Queria ser casada. Sabia muito bem que a mãe o não fora, e
conhecia algumas que tinham só o seu moço delas; mas era gênio e
queria ser casada. Não queria também que a filha fosse outra coisa.
Trabalhava muito, queimando os dedos ao fogão, e os olhos ao
candeeiro, para comer e não cair. Emagreceu, adoeceu, perdeu a mãe,
enterrou-a por subscrição, e continuou a trabalhar. A filha estava
com quatorze anos; mas era muito fraquinha, e não fazia nada, a não
ser namorar os capadócios que lhe rondavam a rótula. Dona Plácida
vivia com imensos cuidados, levando-a consigo, quando tinha de ir
entregar costuras, e a gente das lojas arregalava e piscava os olhos,
convencida de que ela a levava para colher marido ou outra coisa.
Alguns diziam graçolas, faziam cumprimentos; a mãe chegou a receber
propostas de dinheiro...
Interrompeu-se
um instante, e continuou logo:
– Minha
filha fugiu-me; foi com um sujeito, nem quero saber... Deixou-me só,
mas tão triste, tão triste, que pensei morrer. Não tinha ninguém
mais no mundo e estava quase velha e doente. Foi por esse tempo que
conheci a família de Iaiá: boa gente, que me deu que fazer, e até
chegou a me dar casa. Estive lá muitos meses, um ano, mais de um
ano, agregada, costurando. Saí quando Iaiá casou. Depois vivi como
Deus foi servido. Olhe os meus dedos, olhe estas mãos... E
mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas
da agulha. – Não se cria isto à toa, meu senhor; Deus sabe como é
que isto se cria... Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor
também... Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola...
Ao
soltar a última frase, Dona Plácida teve um calafrio.
Depois,
como se tomasse a si, pareceu atentar na inconveniência daquela
confissão ao amante de uma mulher casada, e começou a rir, a
desdizer-se, a chamar-se tola, “cheia de fidúcias”, como lhe
dizia a mãe; enfim, cansada do meu silêncio, retirou-se da sala. Eu
fiquei a olhar para a ponta do botim.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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