quinta-feira, 22 de junho de 2023

As rãs | 4



Professor, a segunda criança a nascer pelas mãos da minha tia fui eu.
Quando minha mãe entrou em trabalho de parto, minha avó cumpriu os seus ritos de sempre: lavou as mãos, pôs uma roupa limpa, acendeu três incensos no altar dos ancestrais, fez três reverências e enxotou os homens da casa. Não era a primeira vez que minha mãe dava à luz. Antes de mim vieram dois irmãos e uma irmã. “Você tem bastante experiência”, disse minha avó a minha mãe, “é carroça acostumada à estrada, vá deixando o bebê sair aos poucos.” Minha mãe contrapôs: “Sogra, não me sinto bem, dessa vez tem alguma coisa diferente”. Minha avó discordou: “O que é que pode haver de diferente? Será que vai sair daí um qilin?”.
A intuição da minha mãe estava correta. Quando meus irmãos nasceram, saiu primeiro a cabeça, mas, no meu caso, saiu primeiro uma perna.
Quando viu aquela perna, minha avó ficou apavorada. Lembrou-se do ditado camponês que diz: “Criança que nasce pela perna é alma sofredora que retorna”. Sabe o que é uma alma sofredora? Se uma família causou sofrimento a alguém em vidas passadas, esse alguém pode reencarnar como filho e provocar sofrimento na mãe durante o parto. Se não morrer junto com a mãe nesse momento, pode adiar sua morte até certa idade para infligir maior perda material e emocional a toda a família. Fingindo tranquilidade, minha avó disse: “Este menino já nasce com o pé na estrada, quando crescer, vai correr o mundo em missões oficiais. Não se preocupe, tenho uma solução”. Minha avó foi até o pátio, pegou uma bacia de cobre, segurou-a pela borda, pôs-se diante do kang e começou a bater na bacia com um rolo de macarrão, como se fosse um gongo, pééém-pééém. Batia e se esgoelava: “Anda logo… anda rápido… tem recado urgente que o patrão mandou levar, anda logo senão vai apanhar…”.
Percebendo a gravidade da situação, minha mãe bateu na janela com um espanador para chamar a atenção da minha irmã, que acompanhava no pátio toda aquela movimentação: “Filha, depressa, vá chamar a sua tia!”.
Minha irmã era muito inteligente, ela correu até o escritório da aldeia e pediu a Yuan Rosto que telefonasse para o posto de saúde. Até hoje guardo comigo aquele velho telefone à manivela, foi esse aparelho que me salvou a vida.
Naquele 6 de junho, o rio Jiao encheu. A água cobriu a superfície da ponte, mas os redemoinhos que se formavam sobre as pedras do calçamento davam uma pista de sua posição. O desocupado do Du Pescoço, que pescava na beira do rio, diz ter visto minha tia descer voando a ribanceira do outro lado e atravessar a ponte, as rodas da bicicleta jogavam água a um metro de altura. A correnteza era rápida, se minha tia fosse arrastada, professor, eu não estaria aqui.
Minha tia, ensopada, entrou correndo pela porta de casa.
A chegada dela produziu em minha mãe o efeito de um calmante. Minha mãe conta que a tia foi logo afastando minha avó para o lado enquanto caçoava: “Como é que a criança vai ter coragem de sair com essa barulheira toda?”. Minha avó quis se justificar: “Criança gosta de animação, como não vai querer sair ao ouvir essa algazarra?”. Minha tia conta que puxou minha perna como quem tira uma cenoura da terra. Sei que ela diz isso de brincadeira. Depois que Chen Nariz e eu nascemos pelas mãos da minha tia, as nossas mães se tornaram divulgadoras voluntárias do trabalho dela. Procuravam convencer as pessoas narrando a própria experiência. A esposa de Yuan Rosto e o desocupado do Du Pescoço falavam a todo mundo da alta perícia de minha tia no voo de bicicleta. Assim ela ganhou renome. As “avós”, por sua vez, logo perderam clientela e se tornaram parte da história.
Entre 1953 e 1957, o país viveu um período de aumento da produção e prosperidade econômica. Os bons ventos também chegavam até nossa terra, colheitas generosas seguiam-se ano a ano. As pessoas tinham o que comer e o que vestir, viviam felizes, e as mulheres competiam para ver quem tinha mais filhos. Minha tia ficou exausta de tanto trabalhar. Nas dezoito aldeias do Nordeste de Gaomi, cada viela tinha o rastro da sua bicicleta, cada pátio, as marcas dos seus pés.
De 4 de abril de 1953 a 31 de dezembro de 1957, minha tia realizou um total de mil seiscentos e doze partos, assistiu ao nascimento de mil seiscentos e quarenta e cinco bebês, seis deles morreram, isso porque cinco eram natimortos e um sofria de doença congênita. Estes eram, na verdade, números excelentes, bem próximos da perfeição.
Em 17 de fevereiro de 1955, minha tia filiou-se ao Partido Comunista. Naquele dia, ela fez o seu milésimo parto. Aquele bebê viria a ser o nosso colega Li Mão.
Minha tia conta que a professora Yu foi a parturiente mais tranquila que ela já viu. Ela diz que, enquanto se ocupava do parto lá embaixo, a professora Yu lia uma cartilha escolar para preparar a aula.
Quando a velhice chegou, minha tia sempre se lembrava com saudade daquele tempo. Foi uma era de ouro para a China e também para minha tia. Não sei quantas vezes a ouvi dizer, nostálgica, com um brilho nos olhos: “Naquele tempo, eu era considerada um bodisatva de carne e osso, a deusa da fertilidade, exalava aroma de flores, atraía enxames de abelhas e borboletas por onde passava. Hoje em dia, ai ai, hoje em dia só atraio mosca…”.
Meu nome também foi escolhido por minha tia: o nome oficial é Wan Perna, mas em casa me chamavam de Corre Corre.
Peço desculpas, professor, por não ter esclarecido antes: Wan Perna é meu nome oficial, Girino é meu pseudônimo.

Mo Yan, in As rãs

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