Kate
estava na fila do Burger King. Era mais um dia falho de verão em
Belfast, no qual um casaco leve nunca bastava. Passava as mãos pelos
braços, que estavam levemente arrepiados, levantando seus poucos
pelos loiros. Bill estava atrás dela e reparava, encantado, na nuca
de Kate, que era muito mais comprida do que o normal.
Ela
tinha 18 anos e ele acabara de completar 20. Apaixonaram-se assim que
ela se virou com a bandeja, que equilibrava a batata frita apoiada no
refrigerante, e deu de cara com ele. Bill, na verdade, já havia se
apaixonado quando deu de nuca com ela. Nem precisou da cara.
Tratava-se
de um típico romance de Burger King, sem maiores complicações. Não
havia crises de ciúmes, desconfiança nem longas discussões. Eram
simples como sorvete e hambúrguer. Gostavam-se, riam, beijavam-se e
passeavam por aquela estranha cidade, frequentemente abrigados em um
guarda-chuva amarelo.
Passaram-se
dois meses até que resolveram encarar o assunto. Eram jovens, mas já
haviam vivido o suficiente para saber que aquilo não seria simples.
No melhor estilo Romeu e Julieta, Bill era católico e Kate era
protestante. Ou melhor: a família dele era católica e a dela era
protestante. Eles já nem eram muita coisa. Eram apenas jovens que
acreditavam em coisas mais simples como o novo álbum do Ed Sheeran e
a necessidade de encontrar um bom emprego para sobreviver. Ainda
assim, sabiam que não seria fácil.
A
marcha da Ordem Laranja seria no fim de semana seguinte, mas, mesmo
assim, resolveram contar aos pais sobre o namoro recente. Não havia
momento menos propício para fazê-lo do que aquele, que marcava a
longa e dolorida divisão religiosa do país. Mas eles não podiam
mais esperar. Amor jovem nunca pode esperar. Contaram, cada um em sua
casa, na mesma hora. Explicaram-se, justificaram-se, prometeram. E,
curiosamente, católicos e protestantes, por serem tão diferentes,
reagiram exatamente da mesma forma: acabem com isso agora. Agora.
Como
não poderia deixar de ser numa história como esta, Bill e Kate
resolveram fugir. O destino escolhido era Londres, onde, em tese,
poderiam ser livres. Planejaram tudo às pressas e com pouco
dinheiro. Saíram de suas casas com mochilas nas costas. Era,
efetivamente, o dia da marcha da Ordem Laranja. Algo quase simbólico
para aquela rebeldia. Encontraram-se perto da Queen’s University e
caminharam apressados rumo à estação de trem.
Quando
passavam por uma das ruas isoladas pela polícia local para que a
marcha protestante não passasse em frente a uma igreja católica,
ouviram gritos. Cerca de seis homens embriagados espancavam-se em
nome da fé. Foi quando um deles arremessou uma garrafa de vidro. A
garrafa voou incerta, até chegar com toda força à longa nuca de
Kate. A velocidade entre o golpe, o desmaio, o tombo para a frente, a
queda, o esmagamento da frente do crânio pela pancada contra a
calçada e a morte de Kate foi tão curta quanto o tempo que os
homens levaram para avançar contra Bill. Os bêbados protestantes
julgando-o católico e os bêbados católicos julgando-o protestante.
Bill foi atingido em quase todos os pontos do corpo. Teve a sorte de
ficar desacordado logo com o primeiro soco no rosto. Caído no chão,
recebeu incontáveis chutes, perdeu dentes, quebrou costelas. Por
sorte, Bill também não sobreviveu.
Nenhum
dos dois teve tempo de entender o que aconteceu nem de chorar a perda
de tamanha paixão. Seus corpos foram recolhidos e enterrados em
cemitérios diferentes, em pontos opostos da cidade, honrando o fato
de um ser católico e a outra protestante. Ambos tiveram missa de
sétimo dia, para que a mesma fé que lhes matou agora assegurasse
que eles entrassem serenos no reino de Deus.
Os
pais dele culparam os protestantes pela morte do filho, sobretudo a
finada namorada, tão morta quanto perigosa, do alto dos seus 18
anos. Os pais dela culparam os católicos pela dolorosa perda,
especialmente o rapaz, que tirou a filha do caminho correto para
levá-la até a morte.
As
famílias encontraram conforto na igreja para poderem seguir adiante,
com o peito cheio de saudades. E, em nome de Deus, também cheio de
ódio.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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