Ou
vaticanices. Não suporto ver os senhores cardeais e os senhores
bispos trajados com um luxo que escandalizaria o pobre Jesus de
Nazaré, mal tapado com a sua túnica de péssimo pano, por muito
inconsútil que tivesse sido e certamente não era, sem recordar o
delirante desfile de moda eclesiástica que Fellini, genialmente,
meteu em Oito e meio para seu e nosso gozo. Estes senhores
supõem-se investidos de um poder que só a nossa paciência tem
feito durar. Dizem-se representantes de Deus na terra (nunca o viram
e não têm a menor prova da sua existência) e passeiam-se pelo
mundo suando hipocrisia por todos os poros. Talvez não mintam
sempre, mas cada palavra que dizem ou escrevem tem por trás outra
palavra que a nega ou limita, que a disfarça ou perverte. A tudo
isto muitos de nós nos havíamos mais ou menos habituado antes de
passarmos à indiferença, quando não ao desprezo. Diz-se que a
assistência aos actos religiosos vem diminuindo rapidamente, mas eu
permito-me sugerir que também serão em menor número até aquelas
pessoas que, embora não sendo crentes, entravam numa igreja para
desfrutar da beleza arquitectónica, das pinturas e esculturas,
enfim, de um cenário que a falsidade da doutrina que o sustenta
afinal não merece.
Os
senhores cardeais e os senhores bispos, incluindo obviamente o papa
que os governa, não andam nada tranquilos. Apesar de viverem como
parasitas da sociedade civil, as contas não lhes saem. Perante o
lento mas implacável afundamento desse Titanic que foi a
Igreja Católica, o papa e os seus acólitos, saudosos do tempo em
que imperavam, em criminosa cumplicidade, o trono e o altar, recorrem
agora a todos os meios, incluindo o da chantagem moral, para
imiscuir-se na governação dos países, em particular aqueles que,
por razões históricas e sociais, ainda não ousaram cortar as
sujeições que persistem em atá-los à instituição vaticana.
Entristece-me esse temor (religioso?) que parece paralisar o governo
espanhol sempre que tem de enfrentar-se não só a enviados papais
mas também aos seus “papas” domésticos. E digo ainda mais: como
pessoa, como intelectual, como cidadão, ofende-me a displicência
com que o papa e a sua gente tratam o governo de Rodriguez Zapatero,
esse que o povo espanhol elegeu com inteira consciência. Pelos
vistos, parece que alguém terá de atirar um sapato a um desses
cardeais.
José Saramago, in O caderno
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