terça-feira, 23 de maio de 2023

O homem e a sociedade


O nosso mundo civilizado não passa de uma mascarada – Delicadeza – Amizade caricata – O cão, único amigo do homem – Orgulho e vaidade – Isolamento do gênio

As coisas passam-se no mundo como nas comédias de Gozzi, em que aparecem sempre as mesmas pessoas com idênticas intenções e idêntico destino; o assunto e os fatos diferem sem dúvida em cada intriga, mas o espírito dos acontecimentos é o mesmo, as personagens de uma peça também nada sabem do que se passou na precedente, onde contudo também eram atores: por isso, após toda a experiência das comédias anteriores, Pantaleão não se tornou nem mais destro nem mais generoso, nem Tartaglia mais honesto, nem Briguela mais corajoso, nem Colombina mais virtuosa.
O nosso mundo civilizado não passa de uma grande mascarada. Encontram-se aí cavaleiros, frades, soldados, doutores, advogados, padres, filósofos, e que mais se encontram ainda? Não são, porém, o que representam: são simples máscaras sob as quais se ocultam geralmente especuladores de dinheiro (moneymakers). Um afivela a máscara da justiça e do direito com o auxílio de um advogado, para ferir melhor o seu semelhante; outro, com o mesmo fim, escolheu a máscara do bem público e do patriotismo; um terceiro, a da religião, da fé imaculada. Para toda espécie de desígnios secretos, mais de um se ocultou sob a máscara da filosofia, como também da filantropia etc. As mulheres têm menos por onde escolher: servem-se, a maior parte das vezes, da máscara da virtude, do pudor, da simplicidade, da modéstia. Há também máscaras gerais, sem caráter especial, como os dominós nos bailes de máscaras, e que se encontram em toda parte: essas simulam a honestidade rígida, a delicadeza, a simpatia sincera e a amizade caricata. Quase sempre não há, como já disse, senão puros industriais, comerciantes, especuladores debaixo de todas essas máscaras. Desse ponto de vista, a única classe honesta é a dos negociantes, porque se apresentam como são e passeiam de rosto descoberto, por isso os colocaram no ponto inferior da escala.
O médico vê o homem em toda a sua fraqueza; o jurista o vê em toda a sua maldade; o teólogo, em toda a sua imbecilidade.
Assim como basta uma folha a um botânico para reconhecer toda a planta, assim como um único osso era suficiente para Cuvier reconstruir todo o animal, assim um só ato característico da parte de um homem pode fazer com que se chegue ao conhecimento exato do seu caráter, e, portanto, reconstituí-lo numa certa medida, embora se tratasse de uma coisa insignificante; nos casos importantes, os homens acautelam-se; nas coisas pequenas, pelo contrário, seguem a sua índole sem darem por isso. Se alguém, à proposta de uma bagatela, mostra pelo seu procedimento egoísta, sem a mínima consideração pelos outros, que o sentimento de justiça é estranho ao seu coração, ninguém deve confiar-lhe o mais insignificante valor sem as necessárias garantias… Segundo o mesmo princípio, é preciso romper imediatamente com essa gente que se intitula os bons amigos quando tem, mesmo nas coisas mais fúteis, um caráter mau, falso ou vulgar, a fim de evitar quaisquer partidas que possam pregar nos casos graves. Diria outro tanto dos criados: antes só que entre traidores.
Deixar transparecer a cólera ou o ódio nas palavras ou no rosto é inútil, perigoso, imprudente, ridículo, banal. Só se deve trair a cólera ou o ódio pelas ações. Os animais de sangue frio são os únicos que têm peçonha.
Delicadeza é prudência, indelicadeza é estupidez; criar inimigos inutilmente e de peito feito é loucura, é como quem deita fogo à própria casa. Porque a delicadeza é como os tentos do jogo, uma moeda manifestamente falsa; ser econômico dessa moeda é falta de espírito; ser pródigo, pelo contrário, é dar prova de bom senso.
A nossa confiança nos homens não tem geralmente outras causas senão a preguiça, o egoísmo e a vaidade: a preguiça, quando o aborrecimento de refletir, de vigiar, de proceder, nos leva a confiar em alguém; o egoísmo, quando a necessidade de falar dos nossos negócios nos impele a fazer confidências; a vaidade, quando temos qualquer coisa vantajosa a dizer a nosso respeito. Nem por isso deixamos de exigir que honrem a nossa confiança.
É prudente dar a perceber algumas vezes a todos, homens e mulheres, que se pode muito bem passar sem eles; esse fato fortifica a amizade e, mesmo junto da maior parte dos homens, não é mau mostrar de vez em quando na conversa um tal ou qual desdém a seu respeito; farão assim maior caso de nossa amizade: chi non istima vien stimato, quem não estima é estimado, diz um provérbio italiano. Se encontrarmos em alguém um grande valor real, devemos esconder-lhe a nossa descoberta como se fosse um crime. Isso não é precisamente divertido; mas é assim mesmo. Os cães mal suportam a grande amizade; menos ainda os homens podem fazê-lo.
O cão, o único amigo do homem, tem um privilégio sobre todos os outros animais, um traço que o caracteriza, é esse movimento da cauda tão benévolo, tão expressivo e tão profundamente honesto. Que contraste a favor dessa maneira de saudar que lhe deu a natureza, quando se compara com as reverências e as horrorosas caretas que os homens trocam como sinal de delicadeza; essa prova de terna amizade e de dedicação da parte do cão é mil vezes mais segura, pelo menos para o presente.
O que me torna tão agradável a companhia do meu cão é a transparência do seu ser. – O meu cão é transparente como o vidro. – Se não existissem cães, não gostaria de viver.
Não há nada que traduza melhor a ignorância do mundo do que alegar, como uma prova dos merecimentos e do valor de um homem, o fato de ter amigos; como se os homens concedessem a amizade consoante o valor e o merecimento, como se não fossem antes semelhantes aos cães que estimam aquele que os afaga ou lhes dá apenas ossos, sem maior solicitude. – Aquele que melhor sabe afagar os homens, embora fossem os animais mais horrendos, é esse que tem muitos amigos.
Nem amar, nem odiar”, é metade da sabedoria humana; “nada dizer e nada crer” a outra metade. Mas com que prazer se volta costas a um mundo que exige semelhante sabedoria.
Os amigos dizem-se sinceros; mas os inimigos é que o são: portanto dever-se-ia tomar-lhes a crítica como um remédio amargo, e aprender com eles a conhecermo-nos melhor.
Pode suceder sentirmos a morte dos nossos inimigos e dos nossos adversários, mesmo passado grande número de anos, quase tanto como a dos nossos amigos – é quando vemos que nos fazem falta para serem testemunhas dos nossos brilhantes sucessos.
A diferença entre a vaidade e o orgulho consiste em que este é uma convicção bem firme da nossa superioridade em todas as coisas; a vaidade, pelo contrário, é o desejo de despertar nos outros essa persuasão, com a esperança secreta de chegar por fim a convencer a nós mesmos.
O orgulho tem, pois, origem numa convicção interior e direta que se possui do próprio valor; a vaidade procura apoio na opinião alheia para chegar à estima de si próprio. A vaidade é faladora, o orgulho silencioso. Mas o homem vaidoso deveria saber que a alta opinião dos outros, alvo dos seus esforços, se obtém mais facilmente por um silêncio contínuo do que pela palavra, embora se tivessem para dizer as coisas mais lindas. – Não é orgulhoso quem quer, o mais que se pode é simular o orgulho, mas como todo papel de convenção, não logrará ser sustentado até o fim. Porque é apenas a convicção profunda, firme, inabalável que se tem de possuir qualidades superiores e excepcionais que dá o verdadeiro orgulho. Essa convicção, embora seja errônea, ou fundada apenas em vantagens exteriores, em nada prejudica o orgulho, se é séria e sincera, porque o orgulho tem raízes na nossa convicção, e não depende, assim como sucede com qualquer outro conhecimento, do nosso bel-prazer. O seu pior inimigo, quero dizer, o seu maior obstáculo, é a vaidade, que apenas solicita os aplausos alheios para formar uma alta opinião de si mesma, enquanto o orgulho faz supor que esse sentimento está já completamente arraigado entre nós. Há quem censure e critique o orgulho, esses sem dúvida nada possuem de que se possam orgulhar.
A natureza é o que há de mais aristocrático no mundo; toda diferença que a situação ou a riqueza estabelece entre os homens na Europa e as castas na Índia é pequena em comparação com a distância que, do ponto de vista moral e intelectual, a natureza marcou irrevogavelmente; e, na aristocracia da natureza como nas outras aristocracias, há dez mil plebeus para um nobre e milhões para um príncipe; a grande multidão é o todo, plebs, mob, rabble, a canalha.
Portanto, digamo-lo de passagem, os patrícios e os nobres da natureza deveriam, como os dos Estados, misturar-se pouco com a plebe, e viver tanto mais afastados e inacessíveis quanto mais elevados são.
A tolerância, que muitas vezes se nota e se louva nos grandes homens, é sempre resultado do mais profundo desprezo pelo resto da humanidade: quando um grande espírito se compenetra desse desprezo, deixa de considerar os homens como seus semelhantes, e de exigir deles o que se exige dos semelhantes. Usa então para com eles a mesma tolerância que tem com os outros animais, aos quais não temos que censurar a sem-razão nem a bestialidade.
Quem tem uma ideia da beleza, quer física quer intelectual, não experimenta com a vista ou o conhecimento novo desse ente que se chama o homem, outra impressão, cem vezes contra uma, a não ser a de uma amostra completamente nova, verdadeiramente original e que nunca teria imaginado, de um ente composto de fealdade, de insipidez, de vulgaridade, de perversão, de estupidez, de maldade. Quando me encontro no meio de caras novas, recorda-me a tentação de Santo Antônio de Téniers e de quadros análogas, onde a cada nova deformidade monstruosa que se me depara admiro a novidade das combinações imaginadas pelo pintor.
É a maldição do homem de gênio, que, na própria medida em que parece aos outros grande e admirável, esses lhe parecem pequenos e mesquinhos. Contudo, tem de calar toda a vida essa opinião, como eles calam a sua. Entretanto, é condenado a viver numa ilha deserta, onde não encontra ninguém que se lhe assemelhe, e sem outros habitantes senão macacos e papagaios. E é ainda vítima da ilusão, que lhe faz tomar de longe um macaco por um homem.
Devo confessá-lo sinceramente: a vista de qualquer animal regozija-me e satisfaz-me o coração; principalmente os cães, e todos os animais em liberdade, pássaros, insetos etc. Pelo contrário, a presença dos homens excita quase sempre em mim uma pronunciada aversão; porque, com poucas exceções, oferecem-me o espetáculo das deformidades mais horríveis e variadas: fealdade física, expressão moral de paixões baixas e ambições desprezíveis, sintomas de loucura e de perversidade de todas as espécies e grandezas; enfim, uma corrupção sórdida, fruto e resultado de costumes degradantes; feliz por encontrar aí os animais.

Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo

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