terça-feira, 16 de maio de 2023

Mundo Justo

Ilustração: Leya Mira Brander


Foi, foi naquele tempo que eu descobri, e de lá pra cá, ano após ano, eu só confirmo, é assim, invariável, essa lógica do mundo, se a gente ganha alguma coisa, por mérito ou por sorte, no minuto seguinte, pronto, trem de um lado, trem do outro, como se pra compensar, pra manter os nossos pés bem cimentados na terra, mas eu ainda não sabia, nem desconfiava, era a época de aprender sem ir até o fundo, pra começar eu nem me lembro de onde me veio o gosto pelo basquete, quase ninguém se interessava, todos os garotos queriam ser craques de futebol, e eu, de repente, louco pra ver a trajetória da bola lá no ar, girando às alturas e caindo, perfeita, dentro do cesto, sem tocar o aro, chuá, mais bonito ainda se fosse de longe, de três pontos, vamos, vamos, use a tabela se precisar!, o Urso gritava, o Urso se chamava Nelson, peludo daquele jeito, quem ia chamá-lo pelo nome?, e ele até que gostava, não deixa o cara arremessar, cerca ele, olha o rebote, o rebote, o Urso era rude com a gente, cobrava empenho, mas aí, de uma hora pra outra, o Urso falava macio, a vida também fazia as suas contas nele, regendo o justo das coisas, uma perda aqui, um ganho correspondente lá. A vó morava com a gente, não leve isso tão a sério!, ela dizia, sentada na cadeira da varanda, quando me via voltar triste, é só um jogo, menino!, e a mãe, na cozinha, pulando o olhar de uma panela a outra, o cheiro bom da comida sendo feita, que cara é essa?, nem sempre se ganha, filho, vai, vai tomar seu banho, e o pai, a lição de casa, a lição, é isso o que interessa!, e eu no quarto, me enxugando, o Edu no beliche, lá nos seus quietos, sempre mergulhado num livro, e, de repente, ele de volta ao nosso mundo, como foi o jogo?, quantos pontos você fez?, e aí eu já me sentia bem de novo, por estar em casa, entre a família, todos na compreensão, e o Edu mais, porque o Edu não só perguntava, o Edu torcia, ele alegre se eu alegre, ele me consolando se eu desanimado, o Edu, apesar de mais novo, já sabia antes de mim, não tenho dúvida, aquela lei estava acima das outras, da gravidade, da termodinâmica, de todas, o Edu, de tanto se enfurnar naqueles livros, sabia me ler, letra por letra, o Edu, quando eu chegava com a vitória no rosto, me sentindo o Michael Jordan, fiz cinco cestas de três, sete de lance livre, ele estourava de felicidade, como se fosse o próprio pivô do time, mas, em seguida, o Edu se metia, tchibum, no livro novamente, e ficava quieto, como se dizendo com o seu silêncio, agora se prepare, no fim do dia tudo vai empatar. Eu não associava uma coisa com a outra, que a vida num instante a gente não tem no instante seguinte, eu feliz com o meu desempenho no jogo e o sono, na via oposta, demorando pra vir, pra dar o troco, e no meio dele umas cenas assustadoras, do mundo agindo no seu maior mal, minha imaginação ainda miúda se comparada com a maldade disseminada pelos homens — isso eu descobri bem depois —, eu sem conhecer a precisão desse aparelho, e agora, agora eu posso ver o seu mecanismo inteiro, como se o véu, que cobre suas vísceras, fosse vidro, tão transparente, agora eu até posso ver seu coração funcionando, tic-bem-me-quer, tac-mal-me-quer, tac-bem-me-quer, tic-mal-me-quer, a ordem dos fatores não altera as contas exatas, sempre o mesmo resultado, sempre. Porque, se era o contrário, e o nosso time tinha se saído bem, e eu, cestinha ou não, voltava eufórico, aí tudo seguia por outra artéria, pra depois, claro, se encontrar lá na frente e refazer o equilíbrio, pesos alinhados, a vó, entre as samambaias, menino, é só um jogo!, e a mãe com a costura sobre os joelhos, hoje vocês ganharam, não?, e o pai, mais tarde, quantos pontos, campeão?, e eu, no quarto, começando a ver o outro lado já atuando, pra diminuir o placar, o Edu no beliche, encorujado, sem forças pra segurar um livro, pra perguntar, trinta a quinze, uma lavada, mano, e a diferença caindo até tudo se igualar na noite funda, o Edu daquele jeito, tosse, falta de ar, tosse, a partida fora das minhas mãos, eu, igual a todos na plateia, tendo de aceitar. E assim foi, mas eu nem notando, se a gente está de olho num alvo, numa pessoa, deixa escapar o entorno, as outras pessoas, no centro da quadra ninguém é o “ao redor”, e aí o Urso montou o time do colégio pra disputar o torneio regional, eu era dos mais novos, mas já bem alto pra minha idade, pernas compridas, puxou o seu avô, a mãe dizia, e o Urso, você vai ser o pivô, e eu pensei, caralho, que responsa!, e foi exatamente no dia em que recebemos o boletim e, pra compensar, tinha lá aquela nota vermelha, cinco em matemática, e aí eu pedi pro pai comprar uma bola, o aro eu mesmo adaptei com um balde velho e preguei na parede do quintal, e o pai, só se você der a virada em matemática, promete?, e eu, prometo!, e, então, na prova seguinte, oito em matemática, eu comecei a treinar arremesso em casa, jogava até no escuro, pra não depender dos olhos, às vezes a mãe já chamando pra jantar, as luzes da cidade acesas, e eu lá, firmando a mão, chuá, cesta de dois, chuá, cesta de três, com tabela, sem tabela, enterrada, eu aprendendo a acertar sem ver o aro, o corpo todo a minha mira, e se tinha alguém me marcando aí é que eu não errava, em caminho livre se aprende pouco, as pessoas no convívio é que nos aumentam. Eu chamava o Edu, vem, mano, joga comigo, e ele, dentro de um livro, só as sobrancelhas de fora, mas eu não sei jogar, e eu, não tem problema, é só pra me atrapalhar, e a gente ali, aquele solzão na cabeça, ele com as mãos na minha cara, desajeitado, mas feroz como marcador, me atrapalhando bem, e era o que eu precisava, e, aí, depois, em troca, eu tinha de ouvir ele me contar uma história, íamos perto da linha de trem, sentávamos debaixo de uma árvore, o Edu se punha a ler em voz alta, enquanto andava sobre os trilhos, e eu, que não era nada paciente, ficava ali, escutando ele, uma vida inteira pra quem não passava de três segundos no garrafão, e no começo eu ainda comigo mesmo, pensando em jogadas, em lances do fundo da quadra, até que de repente as palavras, então só palavras, saíam de sua própria pele e eu, agarrando-me nelas, captava o variado do mundo, as palavras iam me alargando a consciência, tudo maior do que eu via, as montanhas-estátuas lá adiante, o canavial ondulando ao vento, o céu azul e sério sobre as nossas cabeças, eu sem notar claramente, mas já pressentindo que as histórias também seguiam aquela lei, o sol nos entristecia numa página, as sombras nos alegravam na outra, o Edu, daquele jeito, distraía a realidade pra eu flagrar o ponto frágil dela. E o campeonato lá, semana sim, semana não, a gente tinha um jogo aqui, ou nas cidades vizinhas, e ninguém dava nada pela nossa equipe, mesmo depois de sete rodadas e sete vitórias, sorte, adversários fracos, motivos não faltavam pra diminuir nosso avanço, só o Urso devia saber que a gente ia longe, o Urso não tinha ganho nada até então, sequer chegara às oitavas, mas daquela vez o time tinha mesmo bons jogadores, garra pra vencer, e todos obedeciam o Urso, o corta-luz, faz o corta-luz, arremessa, arremessa, marcação por zona, o Urso, pilhado, ele devia saber que era a sua vez, a vida toda de perdedor, tava na hora da balança pender pro lado dele, a lógica, como uma cobra, serpenteava no meio dos fatos, juntava uma pessoa com a outra feito fios, tecia suas infinitas combinações e o resultado, sempre exato, vinha não quando a gente queria, mas no tempo dele, a certeza dentro da certeza, como camadas de cebola. Então, numa partida, eu cestinha, quinze pontos, e à noite a chuva, as goteiras na casa toda, quem é que dormia?; eu num daqueles dias ruins, como se um desaprendiz, e, depois, a travessa enorme de batata, tanto tempo que mãe não fritava pra nós; e a gente ganhando no último minuto dos maristas de Ribeirão, e o pai nos nervos, vou esconder a bola, arrancar o aro do quintal, duas notas vermelhas no boletim; e aí, sempre assim, o lado “A” dos fatos e depois o lado “B”, ou vice-versa, até que chegamos à final, contra os meninos de Franca, a melhor de três, o primeiro jogo aqui, trinta e seis a trinta e dois pra nós — e a vó vomitando dois dias seguidos, tinha de comer tanta carne de porco?, o pai ralhava —, e o segundo jogo na quadra deles, onde os profissionais do Francana treinavam, eles encapetados naquele dia, marcavam homem a homem, armavam a jogada sem pressa, tinham um ala que era igual o Oscar, de onde arremessava ele acertava, chuá, o Helio Rubens na arquibancada, devia ter ajudado os meninos lá, levamos de quarenta a vinte e oito, eu, que tinha tudo pra brilhar, errei bola fácil, seis lances livres, a quarta falta no início do terceiro quarto, o Urso me puxou pro banco e lá eu fiquei até o final do jogo, encolhido, a derrota doendo. Mas, naquela noite, veio o inesperado, pra igualar os dois pratos da balança, apesar de que ele, o fato, estava ali, noutros dias, esperando a gente vir pra se mostrar, a família ao redor da tevê, assistindo à novela, o verão forte de suar dentro de casa, e a mãe, ajudando a vó a se sentar na cadeira lá fora, aqui tá mais fresco, e o pai, atrás das duas, ventinho bom, e eu, encolhido no sofá, caramujando, pra desviar da tristeza da tarde, também saí, arrastei uma cadeira até eles, e o Edu veio por último, pra não ficar sozinho na sala, se bem que o Edu era ele mesmo, em qualquer lugar, um livro na mão e ele desgrudado desse nosso mundo, mundo que o pai dizia ser sólido igual barra de ferro, mas eu discordava dele, eu achava que o real não se pegava, tinha seus contornos definidos, a igreja ali na frente igreja, o canavial lá adiante canavial, a pedra na mão pedra, mas, às vezes, eu sentia que o mundo era miragem, como quando, de relance, eu mirava a cesta e atirava a bola, sabendo que não ia acertar, que o aro de metal estava nos meus olhos e não lá no alto, pregado na tabela, eu achava que a gente, todas as pessoas no nosso tempo maior, viam o mundo por uma neblina de sol, as coisas sem ser o que eram, de verdade, pra nós. Aí a mãe contou um episódio, o pai fez uma pergunta, a vó já no cochilo, ela sempre com ela, se preparando, a vó no aceite de tudo, e, de repente, o Edu, do meu lado, a voz baixinha, apontando lá pros altos, e, então, eu vi, elas todas, e eram tantas, tantas, espetadas no céu, as estrelas, as estrelas, até doía a gente ver, de tão bonitas, por si só, e no conjunto, espalhadas. O Edu, muito do silencioso, lia uma por uma, bem natural, como as palavras, e elas deviam dar num texto que ele entendia, porque ele grudado inteirinho naquela página da noite, e aí eu me peguei a imitá-lo, e fixei tão fundo o olhar nelas, que, do nada, me senti subindo, subindo, como se fosse pra uma enterrada, o nariz tocando o azul escuro do céu! Tudo igual de novo, o justo justo, e aí o terceiro jogo era em campo neutro, Jaboticabal, a gente ainda com a lembrança da derrota, todo mundo quieto, no seu sozinho, o pressentimento, não vai dar, os caras são melhores, e até o Urso, a gente ouvia a mentira no grito dele, vamos lá, vocês já ganharam uma vez!, e, pronto, o jogo começou! A lei estava lá, funcionando, alheia ao barulho das torcidas, eles na frente, dez a oito, depois a gente, catorze a doze, falta aqui, falta ali, o ala deles fazendo uma cesta de três, chuá, e eu também, chuá, e eu de novo, chuá, mais três, no placar vinte e dois a vinte e dois, o Urso pedindo pressão na quadra toda, e eu, assim, do nada, esqueci daquela responsa, com o pé na diversão, jogando sem peso nenhum, como lá em casa, no escuro, sabendo, sem precisar olhar onde estava o aro, e chuá, chuá, e mais uma, chuá, de três pontos, o Urso rindo, o técnico deles roendo as unhas, caralho, o que deu nesse moleque?, e eu, num giro, com ajuda da tabela, mais dois, e eles, claro, querendo me quebrar, eu no rebote dentro do garrafão, cotovelada no rosto, e ela lá, a justiça fria, fria, o pivô deles expulso, a gente ampliando, depois umas bolas perdidas, eles de novo, vingativos, empate, trinta e cinco a trinta e cinco. E assim foi até o final, eu uma enterrada, falta no nosso ala, mais dois pontos de lance livre, uma de três pra eles, e aí deu no que deu, quarenta e seis a quarenta e um pra nós, quem diria, campeões, campeões, desculpa aí, Helio Rubens. Então, na alegria da comemoração, nas tantas coisas que se faz quando a gente está nela, em grupo, todos naquela hora de grandeza, de rir de si e dos demais, um mais eufórico provocando o Urso que ia sentado no primeiro banco, sem falar nada, o Urso, acho que ele nem acreditava ainda na nossa vitória, os quilômetros, os quilômetros foram se encolhendo, e eis que já estávamos chegando na cidade, um quarteirão a mais — o colégio. Ali, aquele vozerio de despedida, o time se desfazendo, dois pra aquela rua, três pra aquela outra, e eu sozinho, voltando ao mundo, devagar, e, de repente, dava pra ver, entre as casas lá embaixo, uma aglomeração de gente, pros lados da linha de trem, e, no mais, a cidade no silêncio, sem vento pra tirar o jeito de estátua das árvores, nenhum galho a cair na minha frente, tudo no seu resguardo pra eu ouvir, pra eu descobrir. E aí, não sei por que, me veio a certeza, a justiça se fazendo à revelia da gente, pela ordem dessa lei, e aí eu reduzi o passo, não querendo aceitar aquilo que vinha, já no avançado da realidade, e pensei primeiro na vó, podia ser com ela, pela idade, mas não era, eu sabia; pensei no pai, mas o pai não, ele sobrava de saúde; pensei na mãe, mas a mãe, eu me sentia no ventre dela de novo, não querendo vir à vida, me demorando, pra não saber. E aí, lá embaixo, eu vi de novo, por um outro ângulo, aquela gente toda perto da linha de trem, e, como se tudo luz, eu vi no fundo desse meu ver, na plena claridade, o Edu, o Edu com um livro na mão, andando sobre os trilhos, trem de um lado, que ele via, trem do outro que ele não viu, o Edu, o Edu, ele sabia do resultado bem antes de mim.

João Anzanella Carrascoza, in Aquela Água Toda

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