[…]
Afastou
o livro, pensou que os versos de Pound podiam ficar para depois, e
resolveu gozar uma noite em que nada se devia esperar de sua parte.
Uma noite de abril, o céu ainda claro. Aquela sala era calma,
geralmente calmante e, assim como os três outros cômodos do
apartamento, guardava trinta anos de memórias. Salas onde se viveu
muito tempo acabam parecendo praias sujas: difícil saber de onde
veio este ou aquele caco.
Ela
sabia exatamente de onde provinha cada tralha teatral: de que peça
ou de que ator. Mas no parapeito da janela havia uma tigela cheia de
pedrinhas coloridas que havia apanhado às portas de uma cidade na
Provença, onde fora passear com os dois filhos, então com doze e
treze anos. Como era o nome daquela cidade? Visitara a mesma região
diversas vezes, e sempre colhera pedras para trazer para casa.
Cordões de contas em todos os tons de vermelho presos em forma de
leque numa prancha que ocupava boa parte de uma parede. Por que
guardava aquilo? Pilhas de livros sobre teatro subiam junto às
paredes: fazia anos que não abria alguns deles. E também o pôster
do Mardi Gras. Estava ali, olhando para ela, havia décadas,
aquele jovem arrogante, sexy, com a roupa de losangos vermelhos e
pretos e aquele ar de não me toques. Parecia-se com seu filho —
bem, quer dizer, há muito tempo. George era agora um cientista quase
de meia-idade. Atualmente, quando de fato olhava a reprodução
(afinal, não olhamos muito para as coisas que temos nas paredes),
seus olhos examinavam o outro jovem do quadro, inseguro, com seus
pensativos olhos escuros, na roupa folgada de Pierrô. Sua filha, aos
quinze anos, havia pedido uma fantasia de Pierrô, e ela, mãe de
Cathie, entendera que era uma espécie de afirmação. Sou como
ele. Preciso de um disfarce. Queria não ser insegura, mas sim como o
Arlequim, que sabe que é lindo. Cathie agora não tinha nada de
insegura, uma bem-sucedida matrona, com filhos, emprego e um marido
satisfatório.
Sarah
sabia que via aquele quadro como retrato de seus próprios filhos.
Por que o mantinha ali? Muitas vezes, os pais sentem um carinho
secreto por fotos de suas crias que já não têm nada a ver com a
idade delas, e elas nem sempre são crianças atraentemente
desamparadas.
Tinha
de se livrar de toda aquela tralha… então, de repente, sentou-se
ereta na cadeira, depois se levantou e começou a caminhar pela sala.
Não era a primeira vez que lhe vinha a ideia. Anos antes, olhara em
torno daquela sala, cheia de coisas que acabaram indo parar ali por
uma razão ou outra, e pensara: Tenho de me livrar disso tudo.
O
pôster estava ali porque sua filha, Cathie, o trouxera para casa.
Não tinha nada a ver com ela, Sarah. O que podia chamar de
seu? Os livros, os livros de referência: instrumentos de trabalho. E
o resto da casa? Uma prolongada ronda, na época, repetida agora, a
fizera repassar pratos com conchas apanhadas pelas crianças décadas
antes, um armário que ainda guardava as roupas velhas delas,
cartões-postais presos com percevejos num quadro de cortiça,
enviados por pessoas em férias. Suas roupas? Podia afirmar que eram
suas porque as tinha escolhido? Até que sim, mas haviam sido ditadas
pela moda.
Naquela
noite, anos antes, tinha chegado à inquietante conclusão de que
muito pouco daqueles quatro grandes cômodos se achava ali por uma
ponderada escolha sua. Escolha daquela parte de si própria que
considerava como sendo ela mesma. Não, e decidira vasculhar as salas
e jogar tudo fora… bom, quase tudo: ali estava uma coisa que
ficaria, mesmo que todo o resto fosse para a lata de lixo. Era uma
fotografia de verdade, que se levava a sério. Um homem agradável,
um tanto preocupado talvez, ou cansado? — uma rede de finas rugas
em torno de olhos azuis francos e camaradas, fios brancos entre os
cabelos louros (cuja maciez de seda ainda podia sentir nos dedos),
provavelmente um primeiro sinal do ataque do coração que o mataria
tão jovem, aos quarenta anos. Sentado com os braços em torno de
duas crianças, um menino e uma menina, de oito e nove anos. Os três
sorrindo para Sarah. A foto estava numa moldura de prata, art déco,
não do gosto de Sarah, mas que lhe tinha sido dada pelo marido, que
a ganhara da mãe. Será que devia jogar fora a moldura, já que
nunca gostara dela?
Por
que não tinha feito uma faxina completa? Porque havia estado ocupada
demais. Alguma peça nova no teatro, provavelmente. Trabalhava tanto,
sempre.
Sarah
parou diante de um espelho. Viu uma mulher bonita, aparentando
meia-idade, com um bom corpo. Os cabelos, sempre presos por questão
de conveniência — não podia se dar ao trabalho de ir a
cabeleireiros —, eram descritos no passaporte como louros, mas
eram, antes, de um amarelo sem graça, como latão sem polir. Com
toda a certeza ela já devia ter pelo menos um ou outro fio branco.
Mas essa tonalidade quase nunca fica grisalha, nem branca, pelo menos
até a velhice propriamente dita. Enquanto jovens, aqueles que têm
os cabelos dessa cor almejam tonalidades mais vivas e podem
tingi-los. Quando mais velhos, agradecidos, deixam-nos em paz e são
acusados de tingi-los. Ela quase nunca se olhava no espelho: não se
preocupava com a aparência. Por que deveria? Consideravam-na sempre
vinte anos mais nova que sua idade real. Num outro espelho, além da
porta aberta de seu quarto, parecia ainda mais nova. Torcendo o corpo
conseguia ver-se refletida nele. Tinha as costas eretas e era cheia
de vitalidade. O osteopata com quem se tratara por causa de dores nas
costas (que agora pareciam voltar a se manifestar) perguntara se
havia sido bailarina. Os dois espelhos estavam ali porque décadas
antes seu marido dissera: “Sarah, essas salas são muito escuras.
Não dá para deixá-las mais claras?”. As paredes foram então
pintadas de um branco brilhante, mas tinham esmaecido, e as cortinas
que haviam sido brancas eram agora cor-de-creme escuro. Quando o sol
entrava, o quarto se enchia de luz, sombra, reflexos em movimento, um
espaço de sugestões e possibilidades. Sem sol, os espelhos
mostravam a mobília pairando numa luz imóvel como água. Uma luz
perolada. Repousante. Gostava desses cômodos, não podia imaginar
nada pior do que ter de deixá-los. Podiam ser criticados por estarem
em mau estado. Era o que seu irmão dizia, mas ela achava a casa dele
chique e horrenda. Fazia anos que nada mudava ali. As salas se
fundiam suavemente em aceitação: do fato de ela estar sempre tão
ocupada e, no fundo, não muito interessada, e do modo como os anos
se acumulavam, deixando depositados sedimentos, livros e fotografias,
cartões-postais e coisas do teatro.
Aquele
lixo todo tinha de ser jogado fora… Ali na parede de seu quarto
havia um grupo de fotos. Algumas eram de sua avó e seu avô na
Índia, posadas e formais, cumprindo seu dever, às quais havia
acrescentado um recorte de revista, com uma moça vestida de acordo
com a moda do ano em que Sarah Anstruther partira para se casar com o
noivo, que ia muito bem no Serviço Civil Indiano. Essa moça não
era a avó de Sarah Durham, mas todas as fotos que Sarah guardava
dessa mulher que jamais conhecera mostravam uma jovem matrona
encarando o mundo com competência, e a desconhecida tímida e
medrosa era — Sarah Durham tinha quase certeza — muito mais
relevante. Uma moça de dezoito anos, viajando para um país de que
nada sabia, onde iria se casar com um jovem que mal conhecia, para
tornar-se uma memsahib… bastante comum, naquela época, mas
que coragem.
A
vida de Sarah Durham não havia tido nenhuma escolha tão dramática.
Uma biografia reduzida, do tipo que se lê nas orelhas dos livros ou
em notas de programas teatrais, diria assim:
Sarah
Durham nasceu em 1924 em Colchester. Dois filhos. O irmão estudou
medicina. Frequentou algumas escolas bastante conceituadas para
moças. Na universidade estudou francês e italiano, depois passou um
ano na Universidade de Montpellier estudando música, morando com uma
tia casada com um francês. Durante a guerra, foi motorista para o
movimento França Livre, em Londres. Em 1946, casou-se com Alan
Durham e tiveram dois filhos. Ele faleceu, deixando-a viúva aos
trinta e poucos anos. Ela continuou vivendo em Londres, com os
filhos.
Uma
mulher calma e razoável… verdade que a morte de Alan a havia
lançado na infelicidade por algum tempo, mas isso acabara passando.
Era assim que via as coisas agora, sabendo que estava escolhendo não
lembrar a miséria daquela época. Hipócrita memória… gentil
memória que lhe permitia evocar uma vida tranquila.
Voltou
à sala de trabalho e leu outra vez aquela passagem exemplar do
livro, aquela que começava com “Envelhecer com graça…”. O
trecho concluía um capítulo e o seguinte começava assim: “Aquilo
de que mais gostei em minha viagem à Índia foram as manhãs, antes
de o calor piorar e termos de ficar dentro de casa. Quando afinal
resolvi não me casar com Rupert, tenho hoje certeza de que era o
calor e não a ele que recusava. Não o amava, mas não sabia disso
então. Ainda não havia aprendido o que era amar”.
Pela
terceira vez, leu “Envelhecer com graça…” até o fim do
capítulo. É, aquilo servia bem. Aos sessenta e cinco anos, via-se
dizendo a amigos mais jovens que envelhecer não era nada, bastante
agradável até, pois, ainda que se perca uma coisa ou outra, outros
prazeres dos quais os jovens nem suspeitam acabam surgindo, e nos
surpreendemos muitas vezes nos perguntando qual será a próxima
surpresa. Dizia essas coisas de boa-fé, e, quando observava os
torvelinhos emocionais de quem era até uma só década mais jovem do
que ela, permitia-se ficar arrepiada diante da ideia de passar por
tudo aquilo de novo — fórmula que incluía o amor. Quanto a amar,
ocorreu-lhe que fazia vinte anos que se apaixonara pela última vez,
ela que se apaixonava com tanta facilidade e — tinha de admitir —
até com certa avidez. Não conseguia acreditar que pudesse amar de
novo. Também isso ela dizia com complacência, esquecendo a dura lei
segundo a qual acabamos passando por aquilo que desprezamos.
Não
ia sentar-se e trabalhar… ocorreu-lhe que uma das razões para
aquele exagerado não a mais uma noite trabalhando naquilo que fazia
o dia inteiro era seu — sim, não havia outra palavra — medo
daquela música. Aqueles lamentos de outros tempos eram como uma
droga. Será que o jazz realmente a dominara como a Condessa Dié e
Bernard, Pierre e Giraut? E aquela mulher que agora a ocupava —
Julie Vairon, cuja música jazia ali naquelas pilhas amarelecidas
sobre a mesa? Não, ela desconfiava da música. Estava em boa
companhia, afinal; muitos dos grandes e sábios consideravam a música
um amigo dúbio. Sempre escutara música com um certo espírito de:
você não vai me dominar, nem pense nisso!
Não:
nada de trabalho e nada de música. Estava tão inquieta que podia…
subir uma montanha, andar vinte quilômetros. Sarah descobriu que
estava arrumando a sala, que sem dúvida precisava de arrumação.
Podia aproveitar e passar o aspirador… por que não nos quatro
cômodos? Na cozinha. No banheiro. Por volta da meia-noite, o
apartamento era um modelo de perfeição. Qualquer um pensaria que
aquela mulher se orgulhava de suas virtudes de dona de casa. Em vez
disso, tinha uma faxineira que vinha uma vez por semana, e só.
Com
toda a certeza não estava nervosa por ter de se encontrar — como
teria de fazer amanhã — com Stephen Ellington-Smith, chamado de
brincadeira na companhia de Nosso Anjo. Não se lembrava de ter
jamais ficado nervosa com esse tipo de encontro. Afinal, era sua
função encontrar-se com patrocinadores, benfeitores e anjos e
abrandá-los, era o que fazia o tempo todo.
Doris Lessing, in Amor, de novo
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