sexta-feira, 14 de abril de 2023

Recolhimento

Ilustração: Leya Mira Brander


Era o mais velho de todos naquele serviço. Habituara-se a chegar cedo, não apenas por zelo, mas porque sua natureza pedia. Como se estivesse sempre nos preparos para nunca ser pego, assim, de repente — mesmo que demorasse horas para o telefone tocar. Às vezes, só mesmo no meio da tarde vinha um pedido. Mas ele era o que era. E sabia que precisava apenas esperar: enquanto nada acontecia ali — só a conversa entre ele e os outros funcionários, que iam chegando devagarzinho —, em algum canto da cidade, um condomínio de luxo ou uma casa na periferia, o fato inevitavelmente se sucedia — a vida no seu fim —, e logo alguém ligaria, solicitando a remoção. Aí seria a sua vez de sair da mesmice, em direção à triste novidade.
Aquela era mais uma manhã, normal como outras, a se abrir lá fora, para os espaços do mundo — e para ele, naquela repartição quase sem mobília, só com seus vazios. Estava sozinho bebendo devagar o café num copo de plástico, o sol se espraiando pelas paredes, quando recebeu o chamado. A voz aflita do outro lado; podia até imaginar o rosto de seu dono. Pelo tom, discernia o tamanho do assombro, embora, velho como era, soubesse que as perdas, só quem as detém pode avaliar com precisão a sua grandeza.
Anotou o endereço, rua Piracuama, Perdizes. Não conhecia, mas não seria difícil encontrar: tinha um mapa da cidade e costumava definir um caminho de antemão. Era um homem previdente. A tarefa também exigia agilidade. Subir ao apartamento, apanhar o corpo e descer. E para não alargar a dor, procurava retirá-lo de lá o mais rápido possível. Essa era a parte mais difícil de seu trabalho. Cachorro ou gato?, ele perguntou ao telefone. Cachorro, a voz respondeu. E, ainda que não fosse seu costume, quis saber o detalhe, Grande ou pequeno?, como se o procedimento variasse de acordo com o tamanho do animal. Pequeno, foi a resposta.
Sem demora, escreveu no quadro de avisos um recado para os companheiros, informando que fora atender a um chamado. Estudou uma rota e a traçou. Colocou o avental e, antes de partir, verificou dentro do furgão se havia ali tudo de que era preciso. Havia, sim. E era tão pouco…
O sol fulgurava pela cidade, insensível a qualquer acontecimento — e tantos, naquele instante, ocorriam em simultâneo —, ascendendo imperceptivelmente ao céu da manhã, alguns raios a ricochetear na lataria do furgão que ele dirigia, metade do braço para fora.
Era muito cedo e o trânsito seguia moroso e contínuo, como a sua memória: repassando as etapas de outros atendimentos, a selecionar neles uns pormenores iguais ao desse caso — se encontraria facilmente vaga para estacionar, se haveria elevador de serviço, se os donos estavam em casa ou só a empregada. Antecipava-se em pensamento, deixando o fato de lado; assim poderia ser mais eficiente na retirada e reduzir o incômodo para todos.
A realidade, no entanto, era imprevisível. Por mais vivência que tivesse naquele serviço — e, às vezes, julgava, pelas centenas de casos atendidos, que já havia visto de tudo —, cada remoção tinha lá a sua diferença. Sempre algo inesperado lhe dava singularidade: a posição do bicho, a cor ou a raça, o dono atônito entre o alívio e a brutalidade da despedida.
Por isso, ele mesmo não tinha mais animal em casa. Aquela hora, do recolhimento, doía como uma lâmina enterrada para sempre na consciência. Ele agia rápido: entrava na casa, pegava o animal, Assine aqui, por favor, e desaparecia. Às vezes nem descia pelo elevador, seguia pela escada mesmo. Colocava o corpo no furgão, dava a partida e arrancava às pressas, como se tivesse ainda uma vida sob sua guarda.
Estava calmo e seguro seguindo à risca seu itinerário, como nesses anos todos. Era só mais uma coleta. Um cachorro pequeno. Certamente de uma criança, já a caminho da escola. Ou de uma jovem que saía para o trabalho. Um cachorro pequeno. Não devia pesar muito. Serviço fácil. Para pouco ou nenhum comentário mais tarde, com os companheiros.
Não demorou a chegar em Perdizes e, enveredando-se por suas ladeiras estreitas, a encontrar a rua Piracuama. Seguiu por ela devagar, conferindo os números até que chegou a um prédio revestido de pastilhas. Conseguiu estacionar na frente dele. Ali a manhã fluía a favor, leve e silenciosa, ao contrário da avenida de onde ele saíra, pesada e barulhenta. Sempre que ia a bairros distantes, fora das zonas comerciais, admirava-se ante essas variâncias da cidade: em certos pontos, a vida pulsante, em luta; em outros, a paz, em repouso.
Estacionou o furgão, apanhou as luvas e a manta para envolver o animal. Dirigiu-se à portaria e se apresentou. O porteiro pediu que aguardasse, enquanto o anunciava pelo interfone. Permaneceu ali, obediente, esperando para fazer o seu trabalho. Observou a fachada do prédio e começou a contar os andares com os olhos; parou no segundo. Lá, num dos apartamentos, devia estar o corpo do pequeno cão, destituído do que lhe dava presença — o latido, o faro, o rabo em abano.
Pode subir, o porteiro disse, destravando o portão. Onde é o elevador de serviço? O porteiro respondeu, Por ali, indicando com a mão. No hall, mirando os objetos ao redor — que revelavam o perfil de quem lá morava, gente de classe média —, ele se fixou no espelho, no vaso, no tapete; como se fosse possível ter, àquela altura, alguma distração.
O elevador chegou ao térreo silenciosamente. Ele entrou, deu com outro espelho à sua frente, a iluminação fraca sobre sua cabeça, o sol atrasado naquele espaço que ainda represava sombras da noite. Vamos lá, disse a si mesmo, e foi colocando as luvas.
A porta dos fundos do apartamento estava encostada. Uma mulher, ao vê-lo saindo do elevador, abriu-a. Tinha os olhos vermelhos, a brasa da tristeza já viva, queimando. Trocaram umas palavras mínimas — que outras não eram necessárias — e ele entrou. Estendeu a guia de remoção para que ela assinasse e nem precisou perguntar onde estava o animal: jazia de borco na área de serviço, lá mesmo onde era o seu canto quando vivo.
Aproximou-se do corpo, o pelo negro abundante. Reconheceu a raça: shih tzu. Esses eram dóceis, silenciosos, discretos. Ao seu lado, uma cumbuca vazando ração, uma outra cheia de água. Notou que, apesar de bem cuidado, o cão era velho: tinha as garras quebradas e lhe faltavam uns dentes. Ajoelhou e abriu a manta para recolhê-lo. Ouviu às suas costas um choro baixinho, que lhe pareceu de criança — e devia mesmo ser, porque escutou a voz da mulher, ordenando, Vai pra lá, querida.
Enrolou o cachorro na manta e o soergueu: ainda estava quente. Sem perder tempo, seguiu para a cozinha. Pegou a guia de remoção que a mulher lhe estendeu e entrou no elevador que permanecera no andar, à sua espera. Começou a descer. Percebeu, atônito, o coração do animal em seu último pulso. E estremeceu com aquela verdade. A vida nunca tinha parado para ele viver aquilo. O cachorro se esvaíra em suas mãos. Apertou-o entre os braços e se encolheu. Outra vez humano.

João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda

Nenhum comentário:

Postar um comentário