Ilustração: Leya Mira Brander
Era
o mais velho de todos naquele serviço. Habituara-se a chegar cedo,
não apenas por zelo, mas porque sua natureza pedia. Como se
estivesse sempre nos preparos para nunca ser pego, assim, de repente
— mesmo que demorasse horas para o telefone tocar. Às vezes, só
mesmo no meio da tarde vinha um pedido. Mas ele era o que era. E
sabia que precisava apenas esperar: enquanto nada acontecia ali —
só a conversa entre ele e os outros funcionários, que iam chegando
devagarzinho —, em algum canto da cidade, um condomínio de luxo ou
uma casa na periferia, o fato inevitavelmente se sucedia — a vida
no seu fim —, e logo alguém ligaria, solicitando a remoção. Aí
seria a sua vez de sair da mesmice, em direção à triste novidade.
Aquela
era mais uma manhã, normal como outras, a se abrir lá fora, para os
espaços do mundo — e para ele, naquela repartição quase sem
mobília, só com seus vazios. Estava sozinho bebendo devagar o café
num copo de plástico, o sol se espraiando pelas paredes, quando
recebeu o chamado. A voz aflita do outro lado; podia até imaginar o
rosto de seu dono. Pelo tom, discernia o tamanho do assombro, embora,
velho como era, soubesse que as perdas, só quem as detém pode
avaliar com precisão a sua grandeza.
Anotou
o endereço, rua Piracuama, Perdizes. Não conhecia, mas não
seria difícil encontrar: tinha um mapa da cidade e costumava definir
um caminho de antemão. Era um homem previdente. A tarefa também
exigia agilidade. Subir ao apartamento, apanhar o corpo e descer. E
para não alargar a dor, procurava retirá-lo de lá o mais rápido
possível. Essa era a parte mais difícil de seu trabalho. Cachorro
ou gato?, ele perguntou ao telefone. Cachorro, a voz
respondeu. E, ainda que não fosse seu costume, quis saber o detalhe,
Grande ou pequeno?, como se o procedimento variasse de acordo
com o tamanho do animal. Pequeno, foi a resposta.
Sem
demora, escreveu no quadro de avisos um recado para os companheiros,
informando que fora atender a um chamado. Estudou uma rota e a
traçou. Colocou o avental e, antes de partir, verificou dentro do
furgão se havia ali tudo de que era preciso. Havia, sim. E era tão
pouco…
O
sol fulgurava pela cidade, insensível a qualquer acontecimento — e
tantos, naquele instante, ocorriam em simultâneo —, ascendendo
imperceptivelmente ao céu da manhã, alguns raios a ricochetear na
lataria do furgão que ele dirigia, metade do braço para fora.
Era
muito cedo e o trânsito seguia moroso e contínuo, como a sua
memória: repassando as etapas de outros atendimentos, a selecionar
neles uns pormenores iguais ao desse caso — se encontraria
facilmente vaga para estacionar, se haveria elevador de serviço, se
os donos estavam em casa ou só a empregada. Antecipava-se em
pensamento, deixando o fato de lado; assim poderia ser mais eficiente
na retirada e reduzir o incômodo para todos.
A
realidade, no entanto, era imprevisível. Por mais vivência que
tivesse naquele serviço — e, às vezes, julgava, pelas centenas de
casos atendidos, que já havia visto de tudo —, cada remoção
tinha lá a sua diferença. Sempre algo inesperado lhe dava
singularidade: a posição do bicho, a cor ou a raça, o dono atônito
entre o alívio e a brutalidade da despedida.
Por
isso, ele mesmo não tinha mais animal em casa. Aquela hora, do
recolhimento, doía como uma lâmina enterrada para sempre na
consciência. Ele agia rápido: entrava na casa, pegava o animal,
Assine aqui, por favor, e desaparecia. Às vezes nem descia
pelo elevador, seguia pela escada mesmo. Colocava o corpo no furgão,
dava a partida e arrancava às pressas, como se tivesse ainda uma
vida sob sua guarda.
Estava
calmo e seguro seguindo à risca seu itinerário, como nesses anos
todos. Era só mais uma coleta. Um cachorro pequeno. Certamente de
uma criança, já a caminho da escola. Ou de uma jovem que saía para
o trabalho. Um cachorro pequeno. Não devia pesar muito. Serviço
fácil. Para pouco ou nenhum comentário mais tarde, com os
companheiros.
Não
demorou a chegar em Perdizes e, enveredando-se por suas ladeiras
estreitas, a encontrar a rua Piracuama. Seguiu por ela devagar,
conferindo os números até que chegou a um prédio revestido de
pastilhas. Conseguiu estacionar na frente dele. Ali a manhã fluía a
favor, leve e silenciosa, ao contrário da avenida de onde ele saíra,
pesada e barulhenta. Sempre que ia a bairros distantes, fora das
zonas comerciais, admirava-se ante essas variâncias da cidade: em
certos pontos, a vida pulsante, em luta; em outros, a paz, em
repouso.
Estacionou
o furgão, apanhou as luvas e a manta para envolver o animal.
Dirigiu-se à portaria e se apresentou. O porteiro pediu que
aguardasse, enquanto o anunciava pelo interfone. Permaneceu ali,
obediente, esperando para fazer o seu trabalho. Observou a fachada do
prédio e começou a contar os andares com os olhos; parou no
segundo. Lá, num dos apartamentos, devia estar o corpo do pequeno
cão, destituído do que lhe dava presença — o latido, o faro, o
rabo em abano.
Pode
subir, o porteiro disse, destravando o portão. Onde é o
elevador de serviço? O porteiro respondeu, Por ali,
indicando com a mão. No hall, mirando os objetos ao redor —
que revelavam o perfil de quem lá morava, gente de classe média —,
ele se fixou no espelho, no vaso, no tapete; como se fosse possível
ter, àquela altura, alguma distração.
O
elevador chegou ao térreo silenciosamente. Ele entrou, deu com outro
espelho à sua frente, a iluminação fraca sobre sua cabeça, o sol
atrasado naquele espaço que ainda represava sombras da noite. Vamos
lá, disse a si mesmo, e foi colocando as luvas.
A
porta dos fundos do apartamento estava encostada. Uma mulher, ao
vê-lo saindo do elevador, abriu-a. Tinha os olhos vermelhos, a brasa
da tristeza já viva, queimando. Trocaram umas palavras mínimas —
que outras não eram necessárias — e ele entrou. Estendeu a guia
de remoção para que ela assinasse e nem precisou perguntar onde
estava o animal: jazia de borco na área de serviço, lá mesmo onde
era o seu canto quando vivo.
Aproximou-se
do corpo, o pelo negro abundante. Reconheceu a raça: shih tzu. Esses
eram dóceis, silenciosos, discretos. Ao seu lado, uma cumbuca
vazando ração, uma outra cheia de água. Notou que, apesar de bem
cuidado, o cão era velho: tinha as garras quebradas e lhe faltavam
uns dentes. Ajoelhou e abriu a manta para recolhê-lo. Ouviu às suas
costas um choro baixinho, que lhe pareceu de criança — e devia
mesmo ser, porque escutou a voz da mulher, ordenando, Vai pra lá,
querida.
Enrolou
o cachorro na manta e o soergueu: ainda estava quente. Sem perder
tempo, seguiu para a cozinha. Pegou a guia de remoção que a mulher
lhe estendeu e entrou no elevador que permanecera no andar, à sua
espera. Começou a descer. Percebeu, atônito, o coração do animal
em seu último pulso. E estremeceu com aquela verdade. A vida nunca
tinha parado para ele viver aquilo. O cachorro se esvaíra em suas
mãos. Apertou-o entre os braços e se encolheu. Outra vez humano.
João Anzanello Carrascoza, in Aquela água toda
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