domingo, 16 de abril de 2023

Capítulo dezanove – A farda devolvida

Quando já não havia outra tinta no mundo o poeta usou do seu próprio sangue.
Não dispondo de papel, ele escreveu no próprio corpo.
Assim, nasceu a voz, o rio em si mesmo ancorado.
Como o sangue.
Sem foz nem nascente.
Lenda de Luar-do-Chão –

Em Luar-do-Chão não se bate à porta, por respeito. Quem bate à porta já entrou. E já entrou nesse espaço privado que é o quintal, o recinto mais íntimo de qualquer casa. Por isso, à entrada do quin tal de meu pai eu bato palmas e grito: – Dá licença? Estou visitando Fulano Malta por mando do Avô Mariano. Em poucas linhas ele me instruiu: vá ao quarto de desarrumas e procure uma caixa preta que está na prateleira de cima. Leve essa mala a meu filho Fulano.
Eis-me, pois, sobraçando a mala, esperando que meu pai me acene da varanda. E lá vem ele, limpando o rosto na manga da camisola. Franze os olhos, esgravatando na luz a ver se venho sozinho. Entro no quarto, meus pés escolhendo entre a desarrumação da sala. Antes de me sentar, passo a mala para seus braços sonolentos.
Foi o Avô que mandou entregar.
Não parece espantado pelo póstumo daquela ordem. Sua intriga é com o conteúdo. Toma o peso, chocalha o conteúdo.
Vou abrir! O anunciar do acto é sinal que está indeciso. Pretende a minha cumplicidade. Abre. Dentro está uma farda, a sua velha farda de guerrilheiro. A sua reacção é violenta, levanta-se, todo esbravejado: – Não quero isso. Não quero mais essa porcaria.
Pronto, pai. Não fique assim.
Onde é que ele arranjou isso? Encolho os ombros enquanto ele avoluma a reclamação. O que iria fazer com aquilo? Negócio com o Museu da Revolução? Reclamar privilégios, apropriar-se de terras? Fazer o quê? E quem me mandou abrir armários, desses onde se guardam os passados? Devia, sim, ter aprendido com ele que não esventrava gaveta. Porque ele, Fulano Malta, estava avisado: há armários que se abrem e saem de láestremunhados vapores, cacimbos cheios de agouros.
Mantenho-me calado, esperando que ele esfrie. Assim sucede. Fulano senta-se, de olhar vazio no uniforme derramado pelo chão. Olha para mim como se eu fosse estranho.
Seu Avô não me queria deixar partir para a guerrilha. Agora, manda-me isto de volta?! Fazia trinta anos que meu pai anunciara que iria fugir e juntar-se à luta de libertação. Eu ainda não era nascido. A reunião foi a três: meu pai, minha mãe e o Avô Mariano. Minha mãe fungava, em resignação. A reacção do mais-velho foi de descrença. Que esses que diziam querer mudar o mundo pretendiam apenas usar da nossa ingenuidade para se tornarem nos novos patrões. A injustiça apenas mudava de turno.
Não é que eu não tenha fé na humanidade. Deixei foi de acreditar nos homens. Entende?
E falou. O velho Mariano falou, argumentando tudo por extenso. Que o mundo não mudaria por disparo. A mudança requeria outras pólvoras, dessas que explodem tão manso dentro de nós que se revelam apenas por um imperceptível pestanejar do pensamento.
Se quer mudar o mundo tem um mundo inteiro para ser mudado aqui, em Luar-do-Chão.
Eu vou, pai.
E a razão da sua decisão estava ali consumada num simples panfleto que ele tirou de um saco, todo enrodilhado. Aproximou-se da luz do xipefo e leu, tudo soletrado: – “Não basta que seja pura e justa a nossa causa. É preciso que a pureza e a justiça existam dentro de nós.” – Esse que escreveu isso é um homem bom. Mas está sozinho.
E Fulano prosseguiu, puxando a corda da razão. Que os descontentes todos se haviam unido e estavam movendo o mundo para um outro futuro.
Tenho medo desse futuro, meu filho. Um futuro feito por descontentes?
O Avô se erguera, confiante em suas razões. Ele já tinha visto os homens. E aqueles não eram diferentes dos que ele conhecera antes. Começamos por pensar que são heróis. Em seguida, aceitamos que são patriotas. Mais tarde, que são homens de negócios. Por fim, que não passam de ladrões.
Nem todos são assim, pai.
A maior parte, meu filho. A maior parte...
Para mim basta que haja apenas um que seja puro.
Falaram assim há trinta anos. Meu pai lembra o episódio como se ainda medisse contas com seu velho pai. Tudo aquilo recorda em voz alta. Mas não fala para mim. Dirige-se para a farda, derramada no chão. Tento aliviar tristeza, ofereço ombro para repartir peso.
O Avô é assim, o senhor já sabe.
Isso é verdade. Esse Ma ria no, ninguém aguenta zangar-se com ele.
O pai acredita que ele morreu ao tirar a fotografia?
Ora, ele morreu?
Bem, que tenha ficado assim, como está...
Não tinha certeza. Talvez esse findamento tivesse início antes, na véspera do fatídico retrato. Entre os maneirismos de Mariano havia esse que era ele nunca usar o guarda-fato para pendurar o seu único fato escuro. Pendurava-o num gancho do tecto como se faz com as roupas nas palhotas, lá no campo. A todos nós aquilo fazia espécie: com armários embutidos na parede, varões e cabides a descontar pelos dedos, que sentido fazia manter roupa suspensa do tecto? – É que, assim, evito dobra e previno amarrotos.
Ora, pai!..
Além do mais, dessa maneira, o fato apanha as brisas.
Nenhuma roupa pode ficar imóvel, envelhecendo no escuro. Exposta à luz, aquela indumentária se animava pelas aragens. Quando isso sucedia, o Avô ficava embevecido a olhar o movimento do vestuário, em fantasmagórico balanço. E ele, então, dizia: – Lá vão minhas vestes passeando.
Quando nessa tarde o velho Mariano pediu que o ajudassem a despendurar o fato lá do prego, um susto calafriou a família. Vestiu-o à frente de todos. E nunca mais o tirou.
Então, pai, não se desabotoa?
Amanhã vamos tirar a fotografia, com a família toda. Assim, já se ganha tempo.
E dormiu vestido. O arrepio cresceu pela casa inteira. Como se soubéssemos que ele se estava despedindo, já envergando suas indumentárias finais. Porque o usual nele, nestes últimos tempos, era o desleixo. Às vezes, até saía para a rua de pijama. A Avó muito se afligia. Mas ele respondia: – Se a morte é um sono então eu já vou trajado nas conveniências.
Meu pai sorri, encantado com a lembrança. Poderíamos ficar ali uma eternidade evocando episódios do mais-velho. Mas faz-se tarde e Fulano Malta já me acompanha à porta. Traz na mão a boina de guerrilheiro, com uma estrela vermelha costurada.
Quer? Antes que eu responda ele lança-me o barrete militar. Ajeito-o na cabeça, por ironia. Meu pai nem sequer sorri. Olha para mim, mas não me vê. Está ausente, levado pela tristeza. Ele que tanto lutara por criar um mundo novo, acabou por não ter mundo nenhum.
Minha tristeza, lhe confesso, é nunca ter sido pai.
Não me teve a mim?
Ah, sim, claro. Não ligue…

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

Nenhum comentário:

Postar um comentário