Quando
já não havia outra tinta no mundo o poeta usou do seu próprio
sangue.
Não
dispondo de papel, ele escreveu no próprio corpo.
Assim,
nasceu a voz, o rio em si mesmo ancorado.
Como
o sangue.
Sem
foz nem nascente.
– Lenda
de Luar-do-Chão –
Em
Luar-do-Chão não se bate à porta, por respeito. Quem bate à porta
já entrou. E já entrou nesse espaço privado que é o quintal, o
recinto mais íntimo de qualquer casa. Por isso, à entrada do quin
tal de meu pai eu bato palmas e grito: – Dá licença? Estou
visitando Fulano Malta por mando do Avô Mariano. Em poucas linhas
ele me instruiu: vá ao quarto de desarrumas e procure uma caixa
preta que está na prateleira de cima. Leve essa mala a meu filho
Fulano.
Eis-me,
pois, sobraçando a mala, esperando que meu pai me acene da varanda.
E lá vem ele, limpando o rosto na manga da camisola. Franze os
olhos, esgravatando na luz a ver se venho sozinho. Entro no quarto,
meus pés escolhendo entre a desarrumação da sala. Antes de me
sentar, passo a mala para seus braços sonolentos.
– Foi
o Avô que mandou entregar.
Não
parece espantado pelo póstumo daquela ordem. Sua intriga é com o
conteúdo. Toma o peso, chocalha o conteúdo.
– Vou
abrir! O anunciar do acto é sinal que está indeciso. Pretende a
minha cumplicidade. Abre. Dentro está uma farda, a sua velha farda
de guerrilheiro. A sua reacção é violenta, levanta-se, todo
esbravejado: – Não quero isso. Não quero mais essa porcaria.
– Pronto,
pai. Não fique assim.
– Onde
é que ele arranjou isso? Encolho os ombros enquanto ele avoluma a
reclamação. O que iria fazer com aquilo? Negócio com o Museu da
Revolução? Reclamar privilégios, apropriar-se de terras? Fazer o
quê? E quem me mandou abrir armários, desses onde se guardam os
passados? Devia, sim, ter aprendido com ele que não esventrava
gaveta. Porque ele, Fulano Malta, estava avisado: há armários que
se abrem e saem de láestremunhados vapores, cacimbos cheios de
agouros.
Mantenho-me
calado, esperando que ele esfrie. Assim sucede. Fulano senta-se, de
olhar vazio no uniforme derramado pelo chão. Olha para mim como se
eu fosse estranho.
– Seu
Avô não me queria deixar partir para a guerrilha. Agora, manda-me
isto de volta?! Fazia trinta anos que meu pai anunciara que iria
fugir e juntar-se à luta de libertação. Eu ainda não era nascido.
A reunião foi a três: meu pai, minha mãe e o Avô Mariano. Minha
mãe fungava, em resignação. A reacção do mais-velho foi de
descrença. Que esses que diziam querer mudar o mundo pretendiam
apenas usar da nossa ingenuidade para se tornarem nos novos patrões.
A injustiça apenas mudava de turno.
– Não
é que eu não tenha fé na humanidade. Deixei foi de acreditar nos
homens. Entende?
E
falou. O velho Mariano falou, argumentando tudo por extenso. Que o
mundo não mudaria por disparo. A mudança requeria outras pólvoras,
dessas que explodem tão manso dentro de nós que se revelam apenas
por um imperceptível pestanejar do pensamento.
– Se
quer mudar o mundo tem um mundo inteiro para ser mudado aqui, em
Luar-do-Chão.
– Eu
vou, pai.
E
a razão da sua decisão estava ali consumada num simples panfleto
que ele tirou de um saco, todo enrodilhado. Aproximou-se da luz do
xipefo e leu, tudo soletrado: – “Não basta que seja pura e justa
a nossa causa. É preciso que a pureza e a justiça existam dentro de
nós.” – Esse que escreveu isso é um homem bom. Mas está
sozinho.
E
Fulano prosseguiu, puxando a corda da razão. Que os descontentes
todos se haviam unido e estavam movendo o mundo para um outro futuro.
– Tenho
medo desse futuro, meu filho. Um futuro feito por descontentes?
O
Avô se erguera, confiante em suas razões. Ele já tinha visto os
homens. E aqueles não eram diferentes dos que ele conhecera antes.
Começamos por pensar que são heróis. Em seguida, aceitamos que são
patriotas. Mais tarde, que são homens de negócios. Por fim, que não
passam de ladrões.
– Nem
todos são assim, pai.
– A
maior parte, meu filho. A maior parte...
– Para
mim basta que haja apenas um que seja puro.
Falaram
assim há trinta anos. Meu pai lembra o episódio como se ainda
medisse contas com seu velho pai. Tudo aquilo recorda em voz alta.
Mas não fala para mim. Dirige-se para a farda, derramada no chão.
Tento aliviar tristeza, ofereço ombro para repartir peso.
– O
Avô é assim, o senhor já sabe.
– Isso
é verdade. Esse Ma ria no, ninguém aguenta zangar-se com ele.
– O
pai acredita que ele morreu ao tirar a fotografia?
– Ora,
ele morreu?
– Bem,
que tenha ficado assim, como está...
Não
tinha certeza. Talvez esse findamento tivesse início antes, na
véspera do fatídico retrato. Entre os maneirismos de Mariano havia
esse que era ele nunca usar o guarda-fato para pendurar o seu único
fato escuro. Pendurava-o num gancho do tecto como se faz com as
roupas nas palhotas, lá no campo. A todos nós aquilo fazia espécie:
com armários embutidos na parede, varões e cabides a descontar
pelos dedos, que sentido fazia manter roupa suspensa do tecto? – É
que, assim, evito dobra e previno amarrotos.
– Ora,
pai!..
– Além
do mais, dessa maneira, o fato apanha as brisas.
Nenhuma
roupa pode ficar imóvel, envelhecendo no escuro. Exposta à luz,
aquela indumentária se animava pelas aragens. Quando isso sucedia, o
Avô ficava embevecido a olhar o movimento do vestuário, em
fantasmagórico balanço. E ele, então, dizia: – Lá vão minhas
vestes passeando.
Quando
nessa tarde o velho Mariano pediu que o ajudassem a despendurar o
fato lá do prego, um susto calafriou a família. Vestiu-o à frente
de todos. E nunca mais o tirou.
– Então,
pai, não se desabotoa?
– Amanhã
vamos tirar a fotografia, com a família toda. Assim, já se ganha
tempo.
E
dormiu vestido. O arrepio cresceu pela casa inteira. Como se
soubéssemos que ele se estava despedindo, já envergando suas
indumentárias finais. Porque o usual nele, nestes últimos tempos,
era o desleixo. Às vezes, até saía para a rua de pijama. A Avó
muito se afligia. Mas ele respondia: – Se a morte é um sono então
eu já vou trajado nas conveniências.
Meu
pai sorri, encantado com a lembrança. Poderíamos ficar ali uma
eternidade evocando episódios do mais-velho. Mas faz-se tarde e
Fulano Malta já me acompanha à porta. Traz na mão a boina de
guerrilheiro, com uma estrela vermelha costurada.
– Quer?
Antes que eu responda ele lança-me o barrete militar. Ajeito-o na
cabeça, por ironia. Meu pai nem sequer sorri. Olha para mim, mas não
me vê. Está ausente, levado pela tristeza. Ele que tanto lutara por
criar um mundo novo, acabou por não ter mundo nenhum.
– Minha
tristeza, lhe confesso, é nunca ter sido pai.
– Não
me teve a mim?
– Ah,
sim, claro. Não ligue…
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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