segunda-feira, 13 de março de 2023

Ouro de tolo | Raul Seixas, 1973


Em plena ditadura militar, esta original balada pop, quase um pastiche irônico de Bob Dylan e Roberto Carlos, ousou questionar, pelo deboche e o sarcasmo, o “milagre econômico” e o Brasil Grande da ditadura. Narrada na primeira pessoa, em tom confessional e fazendo paralelos com a vida do cantor, a letra desfila as conquistas e as dúvidas de um sujeito “bem-sucedido”, com salário no banco, carro do ano, apartamento em Ipanema, “depois de passar fome por dois anos na Cidade Maravilhosa”. As realizações materiais e os sonhos de consumo não anestesiam a indignação do personagem com a miséria, as mentiras e as ilusões que o cercam. Miséria também moral e espiritual, de um “ser humano ridículo, limitado / que só usa dez por cento de sua cabeça animal”.
Ouro de tolo” foi instantâneo e retumbante sucesso popular, da noite para o dia transformou Raul num ídolo pop, graças ao humor sarcástico e contundente da letra, à melodia envolvente e ao arranjo que misturava elementos de balada romântica, folk, toada sertaneja e poesia de cordel.
Eu é que não me sento / no trono de um apartamento / com a boca escancarada cheia de dentes / esperando a morte chegar”, provocava Raul.
Na virada dos anos 1950 para os 1960, enquanto muitos de seus contemporâneos e futuros colegas na música se encantavam com a voz e o violão de João Gilberto, o jovem Raul Santos Seixas (1945-1989) estava ligado no rock elétrico de Elvis Presley e companhia e foi o sócio no 1 do Elvis Presley Fã-Clube da Bahia.
A partir da segunda metade dos anos 1960, quando colegas de geração, como Caetano, Gil, Chico, Edu Lobo e Milton Nascimento, começavam a conquistar o Brasil consagrados nos grandes festivais de música, Raul ralava no underground com seus primeiros grupos de rock. Ainda em Salvador, à frente da banda Raulzito e Os Panteras, conseguiu um contrato com a gravadora Odeon, mas, lançado em 1968, o disco homônimo passou em branco.
Em 1971, voltou a investir em sua carreira, no disco coletivo Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10, ao lado de Miriam Batucada, Sérgio Sampaio e Edy Star. Hoje cultuado e já anunciando algo do estilo que o consagraria em seguida, o projeto fracassou nas rádios e nas lojas.
Em 1972, Raul classificou duas músicas para a final brasileira do Festival Internacional da Canção, “Let me sing, let me sing”, metade rock e metade baião, que ele mesmo cantou, com um look de Elvis Presley, e “Eu sou eu, Nicuri é o Diabo”, com o grupo Os Lobos. Não ganhou, mas conquistou o público e a imprensa e ganhou um contrato da Philips/Polygram, então a principal gravadora da MPB.
Assim como no álbum coletivo, essas duas canções apontavam para a fusão orgânica de pop e ritmos nordestinos que “Ouro de tolo” iria consolidar. Lançada num compacto em maio de 1973, abriu caminho para o revolucionário álbum Krig-ha, Bandolo!, que chegou ao mercado dois meses depois. Mais do que sinônimo de rock no Brasil, depois desse pulo de pantera, ele criou seu próprio e inconfundível estilo que até hoje ecoa no grito de guerra de seus fãs em shows de qualquer artista: Toca Raul!

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

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