Velhos
chapéus de junco em forma de cone se moviam na zona de arrebentação.
Borrifos de água erguiam-se das ondas, desde a extremidade dos
rochedos que contornavam a praia até a orla de areia, onde as ondas
quebravam com força para depois retornar.
A
superfície da água estava coberta de espuma branca, devido à chuva
incessante. Uma mistura de gotas de chuva e borrifos das ondas
escorria pelos buracos no chapéu de Isaku. Havia apenas uma estreita
faixa de areia naquela parte da costa rochosa, e ali, também,
pessoas com chapéus de junco encontravam-se ocupadas recolhendo
pedaços de madeira trazidos pelo mar.
Isaku
esperou que a onda recuasse, então entrou na água e pegou um pedaço
de madeira preso entre duas pedras. A julgar pelo formato em arco e
pelos orifícios de pregos, deveria ser de um barco naufragado. A
tábua estava firmemente presa às pedras, e seria difícil um menino
de nove anos conseguir soltá-la com facilidade, mas quando Isaku
apoiou o pé firmemente em uma das pedras e puxou, a madeira começou
a se soltar.
Isaku
correu de volta para a praia quando viu outra onda se aproximando,
lançando gotículas de água no ar. Ouviu-a arrebentando às suas
costas, e a água do mar jorrou ruidosamente sobre seu chapéu.
Quando a onda começou a recuar novamente em direção do mar, ele
entrou na água espumante e agarrou o pedaço de madeira outra vez.
Depois
de várias tentativas, ele conseguiu mover um pouco a grande peça de
madeira mais para perto, e por fim uma onda a carregou até a praia.
Isaku agarrou-se nela para impedir que fosse levada pela onda
seguinte. Enfiando os dedos nas depressões da madeira, ele puxou-a
na direção da trilha que levava à aldeia.
Debaixo
da chuva, outras pessoas caminhavam pela trilha carregando pedaços
de madeira nas costas. A peça que Isaku puxava era consideravelmente
maior que as dos outros, e era dura, de boa qualidade. Parecia-lhe um
desperdício usá-la para queimar um corpo quando podia ser usada
para fazer fogo em casa.
Quando
Isaku chegou à trilha, uma mulher com chapéu de junco saiu da casa
da família enlutada e o ajudou a carregar o pedaço de madeira.
Juntos, puxaram-na para dentro da casa e a deixaram perto de uma
pilha desarrumada de madeira no piso de terra, na parte mais baixa da
sala.
Isaku
desamarrou o chapéu e sentou-se na pilha de lenha, olhando ao redor.
O falecido era um homem idoso, com mais de cinquenta anos, chamado
Kinzo. Seu corpo estava nu, exceto por uma tira de pano que cobria o
baixo-ventre. Quando Kinzo ficara doente demais para andar, ele
perdera o apetite, e nos últimos dias a família não lhe oferecia
nada além de água. Ninguém dava comida a uma pessoa que se tinha
certeza que ia morrer.
Os
defuntos que eram enterrados sentados eram colocados nessa posição,
com as costas amarradas a uma tala funerária, as pernas dobradas nos
joelhos e também amarradas com corda rústica de palha antes de o
rigor mortis se instalar.
Os
ossos de Kinzo estavam visíveis sob a pele; seu abdome estava
esticado, rijo. A cabeça pendia ligeiramente para baixo e para a
frente, revelando o ramo de cânhamo amarrado a uma cruz colocada nos
ralos cabelos grisalhos para afastar os espíritos maus.
A
mãe de Isaku estava limpando o esquife no chão, ao lado do cadáver.
Uma grande panela de cozido de legumes, fornecidos pelos habitantes
da vila, borbulhava sobre o fogo, o odor bafejando para baixo até o
chão de terra.
A
chuva se intensificou, abafando o barulho das ondas. Isaku olhou para
a mão da mulher que mexia o cozido com uma concha.
Na
manhã seguinte a chuva parou e um dia claro, típico de outono, se
abriu.
As
pessoas saíram de suas casas e se reuniram na casa da família
enlutada.
Lá
dentro, as mulheres idosas da vila entoavam sutras com vozes
sussurrantes.
Isaku
deixou a casa de Kinzo levando nas costas uma carga de madeira
recolhida do mar. Ele juntou-se aos homens que também carregavam
madeira nas costas pela trilha estreita que ia da vila até a
montanha.
A
face escarpada do morro, marcada por trechos de rocha aparente,
erguia-se ameaçadoramente sobre a aldeia. As dezessete casinhas
pareciam agarrar-se à faixa estreita da orla para não serem
empurradas para o mar. Talvez em conseqüência da constante
exposição à brisa salgada do oceano, as paredes de madeira das
casas eram brancas, como que salpicadas por algum tipo de pó. Os
telhados de sapé eram mantidos no lugar por pedras igualmente
embranquecidas. Ao redor das casas, nas áreas onde o solo era menos
inclinado, havia campos de plantação em terraços. Mesmo com adubo,
o solo rochoso oferecia uma colheita escassa, apenas algumas
variedades simples de milho miúdo.
Isaku
seguiu os homens, saindo da trilha e entrando na floresta. O solo
estava úmido por causa da chuva e havia aqui e ali uma poça de
lama; às vezes era difícil manter-se em pé. Por fim, a vegetação
foi se tornando menos densa e eles saíram para uma clareira onde
havia uma fileira de lápides de pedra e de madeira. Os homens
empilharam a lenha e os galhos secos ao lado do crematório, que
consistia em um nicho de três paredes de pedra, a um canto da
clareira.
Isaku
sentou-se em uma pedra, perto dos homens. O suor lhe escorria da
testa e pela nuca, mas a brisa do mar produzia um efeito refrescante.
Ele olhou para sua pilha de lenha.
O
longo e estreito cortejo fúnebre se afastava da casa de Kinzo pela
trilha que acompanhava a orla. Na frente, uma bandeira branca
desfraldava-se no alto de um bambu; logo atrás vinha o caixão,
suspenso sobre uma vara grossa. Um grupo de crianças formava o final
do cortejo.
— Eu
não quero morrer como ele — sussurrou um dos homens.
Kinzo
havia ficado em casa desde o verão. Certo dia ele escorregara e
batera as costas numa pedra quando pescava polvos com uma lança, nos
recifes. Incapacitado para o trabalho, ele se tornara um fardo para a
família. Em uma aldeia que lutava contra a fome, um inválido era
considerado morto.
As
pessoas lamentariam durante algum tempo, mas como acreditavam em
reencarnação, aceitariam rapidamente a perda. A vida era dada às
pessoas pelos deuses e, com a morte, o espírito partia para um lugar
distante nos mares mas depois de algum tempo retornava à aldeia,
para abrigar-se no útero de uma mulher e reencarnar numa criança. A
morte era apenas um período de sono profundo antes do retorno do
espírito; lamentações excessivas perturbavam o repouso da pessoa
morta. As lápides dos túmulos ficavam de frente para o mar para
guiar os espíritos na direção certa, quando chegasse o momento de
regressar.
O
cortejo começou a avançar com mais lentidão ao alcançar a trilha
na encosta do morro. Enquanto observava a procissão, Isaku pensou no
pai. Naquela primavera, seu pai tinha vendido a si mesmo como servo
por três anos para um agente de transporte em um porto do sul que
acolhia embarcações que faziam o roteiro leste-oeste. Seu pai
partira com disposição, e sem dúvida agora estava trabalhando nos
barcos. Aparentemente, ele tomara a decisão de tornar-se servo no
fim do ano anterior, quando mais uma menina nascera. Isaku era o mais
velho, a seguir vinham Isokichi e a menina Kane.
Isaku
ouvira dizer que havia lugares onde se matavam os recém-nascidos,
mas na sua aldeia não faziam isso. Uma gestação significava que o
espírito de alguém que morrera havia retornado à aldeia, e o
infanticídio era algo inadmissível, mesmo que a família estivesse
a ponto de morrer de fome.
Em
várias ocasiões, Isaku havia visto o corpo do pai mover-se de forma
ritmada em cima da mãe, à noite, na semi-escuridão da casa deles,
as pernas dela abertas e dobradas nos joelhos, os quais de súbito se
esticavam para o alto. Ele sabia que estavam convidando os espíritos
dos ancestrais para retornarem, mas sabia também que a chegada de
outra criança tornaria a família ainda mais pobre.
Ao
sul da aldeia ficavam os penhascos de um cabo que se projetava
abruptamente mar adentro. O único caminho para o mundo exterior era
a trilha que atravessava a montanha rumo ao norte. A trilha era
íngreme e rochosa, beirava duas ravinas profundas e depois subia por
uma encosta íngreme, cortando um bosque de árvores e vinhas. A
aldeia devia o seu isolamento ao solo árido. Os habitantes
percorriam essa trilha para chegar a outros vilarejos a fim de trocar
frutos do mar por produtos agrícolas e outros alimentos. Mas isso
não era suficiente para satisfazer a fome da população.
Uma
maneira simples de evitar que a família morresse de fome era a
servidão por contrato. No primeiro povoado do outro lado da
montanha, havia um mercador de sal que também trabalhava como
intermediário. Ele pagava uma boa quantia por um contrato. A família
usava o dinheiro para comprar grãos, que levavam para casa.
Muitas
das filhas eram vendidas, mas às vezes o pai da família vendia a si
mesmo. Uma garota de catorze anos chamada Tatsu deixara a vila na
mesma ocasião que o pai de Isaku, com um contrato de dez anos de
servidão em troca de sessenta momme de prata, porém seu pai
recebera o mesmo valor por um contrato de três anos, o que era sem
dúvida um negócio muito bom. Seu pai era conhecido na aldeia por
ser um homem muito forte, além de um timoneiro experiente.
— Vou
voltar daqui a três anos. Não deixe as crianças morrer de fome
enquanto eu estiver fora.
O
pai de Isaku havia olhado demoradamente para ele e para a mãe,
parados diante da porta do escritório do intermediário.
Sua
mãe comprara uma quantidade de grãos com parte do dinheiro, e os
dois retornaram para a aldeia pela trilha montanhosa, carregando a
carga nas costas. Isaku ficara impressionado com o feito do pai, de
ter conseguido tanto dinheiro, e desejava ter um corpo admirável
como o dele.
Todos
os homens que tinham parado para descansar no cemitério haviam
vendido filhos e filhas para ser servos. No outono anterior, o homem
franzino sentado do lado de Isaku vendera a esposa por um contrato de
cinco anos. Aqueles que haviam carregado a madeira e os galhos até o
cemitério e os quatro que levavam o caixão eram os únicos homens
remanescentes nas casas da aldeia.
Assim
que avistaram os primeiros componentes do cortejo adentrando a
floresta, os homens se levantaram. Ajeitaram as brasas no crematório
e removeram a terra e as cinzas que bloqueavam os orifícios para a
passagem do ar nas paredes de pedra. Depois de desamarrar os feixes
de galhos secos, colocaram a madeira em cruzes paralelas contra as
paredes internas.
Um
sino badalou melancolicamente, indicando que o cortejo estava se
aproximando. A mãe de Isaku carregava o bambu com a bandeira branca
enrolada sob o braço, e o ergueu alto quando saíram para a
clareira. Atrás do homem que tocava o sino vinham as mulheres
idosas, entoando os surras, à frente do caixão. A mãe de Isaku
fincou o bambu no solo e o caixão foi colocado ao lado do
crematório. Os carregadores se sentaram no chão, abrindo as camisas
e enxugando o suor da testa. Os homens que haviam preparado a pira
desprenderam o caixão da vara usada para transportá-lo e o levaram
até a pira. Seguindo as instruções dos homens, Isaku distribuiu
pedaços de lenha nos espaços entre os galhos.
A
fumaça ergueu-se assim que o galho de cânhamo em chamas foi lançado
sobre a lenha, e logo os galhos estavam pegando fogo. Os que estavam
sentados se levantaram e formaram um círculo junto às paredes. O
sino tocou, e novamente os sutras foram recitados.
Quando
a pilha de madeira entrelaçada pegou fogo, o caixão foi envolvido
pelas chamas. A brisa do mar fazia as labaredas dançar, produzindo
estalos e espalhando fagulhas.
Isaku
e os homens haviam molhado algumas esteiras de palha no riacho, que
agora jogavam no alto da pira, abafando as chamas para garantir que o
corpo queimasse direito. Finalmente, o caixão se desmanchou e chamas
multicoloridas começaram a se erguer do corpo exposto. Mais madeira
foi colocada na pira, e mais esteiras molhadas em cima.
Depois
que o corpo queimou até diminuir de tamanho, espigas de milho miúdo
tostadas foram passadas de mão em mão. Isaku comeu enquanto olhava
o fogo. As últimas pequenas chamas coloridas saltaram quando os
homens cutucaram o corpo com varas, até que o fogo apagou por
completo, e o corpo assumiu uma tonalidade viva de vermelho, de
carvão em chamas.
O
sol começou a se pôr.
A
família de Kinzo iria passar a noite sob o teto de esteiras de palha
improvisado sobre os galhos das árvores, no limite da clareira; na
manhã seguinte, recolheriam os ossos. Os habitantes da vila juntaram
as mãos em prece e então começaram a se afastar lentamente em
direção à aldeia.
Isaku
conduziu sua mãe corpulenta pela trilha da floresta, Ela havia
batido nele repetidamente no passado. Era surpreendentemente forte, e
às vezes seus bofetões o deixavam temporariamente surdo de um
ouvido. Ela batia nele por vários motivos, mas na maioria das vezes
por ser preguiçoso.
— Olhe
os peixes! — admoestava ela — Eles nunca diminuem a velocidade.
Ela
era uma figura assustadora, mas ao mesmo tempo Isaku sentia uma
espécie de segurança, pois sabia que podia confiar plenamente
naquela mãe que batia nele sem dó.
Seguiram
pela floresta e depois desceram a trilha da montanha. A paisagem era
iluminada pela luz fraca do fim de tarde, e o mar brilhava. Eles
podiam avistar os corvos voando em círculos ao redor do pequeno
cabo.
A
mãe de Isaku conversava com as mulheres idosas, enquanto seguiam
trilha abaixo. Isaku estava feliz; pela primeira vez, tinha ajudado
os homens a levar lenha para o crematório, para um funeral. Estava
começando a ser tratado como adulto; em pouco tempo estaria
carregando o caixão, junto com os homens. Mas era pequeno para sua
idade, e de constituição franzina. Seu pai iria retornar dali a
dois anos e meio e, como os outros meninos e meninas adolescentes da
aldeia, Isaku sem dúvida seria mandado para a servidão no lugar do
pai, fingindo ser dois ou três anos mais velho do que era realmente.
Se até lá ele não crescesse, o intermediário ou o recusaria ou o
aceitaria em troca de um pagamento insignificante.
Como
costumava fazer, Isaku andou pela trilha na ponta dos pés, tentando
parecer mais alto. Então as mulheres diante dele pararam, assim como
os habitantes da aldeia que vinham atrás. Todos, ao mesmo tempo,
olharam para a esquerda. Isaku também olhou.
À
distância, entre duas montanhas baixas com faces rochosas, ele podia
avistar uma encosta coberta de vegetação.
— As
montanhas começaram a ficar vermelhas — sussurrou a mulher idosa a
seu lado.
As
encostas cintilavam à luz do sol que descia no horizonte, mas o topo
de uma delas, que se erguia acima das outras, parecia ter uma
tonalidade clara de vermelho. Dois dias de chuva tinham mantido o
cume rodeado por nuvens, mas durante esse período as árvores deviam
ter começado a adquirir uma coloração avermelhada.
O
olhar de Isaku deteve-se no cume da montanha. A cada ano, as cores do
outono apareciam primeiro naquele local, espalhando-se depois pelas
outras encostas e então ganhando velocidade como uma avalanche,
tingindo de vermelho a superfície das montanhas enquanto se
espalhavam. Em breve atravessariam vales profundos, tomariam as
colinas e logo coloririam as montanhas atrás da vila. Quando isso
acontecesse, o marrom-amarelado das folhas a ponto de cair poderia
ser visto se espalhando nas encostas mais distantes. […]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
Nenhum comentário:
Postar um comentário