Amigos
dizem-me: pinte o teto de sua cozinha de azul, assim não entrarão
moscas.
Desço
a escada sonhador e perplexo; será verdade? Quem descobriu que
moscas não amam teto azul, esse delicadíssimo segredo da construção
civil, fino mergulho na sensibilidade aérea do inseto aborrecido
para nós, mas em si mesmo respeitável como todo ser?
Faz
o homem sua casa e não quer moscas, pinta de azul seu teto, moscas
chegam até a janela, olham lá dentro para cima, pensam: pintou de
azul o teto, ele não nos ama, adeus.
A
relação mosca-homem é incessante no mundo, tanto que o homem a
chama oficialmente Musca domestica, celebrando seu amor à
casa do homem, imaginando talvez que não havia moscas antes de haver
casas, como certamente não existiam andorinhas sem beirais para
viver e fios telefônicos onde se encontrarem as amigas e bater um
papo olhando a tarde, uma criança nascida em Brasília que não sair
de lá morrerá sem ver andorinhas, triste sina.
Cuida
o leitor que estou escrevendo bobagens, e é certo. Mas eu sei das
bobagens minhas, elas têm um enredo íntimo. Estou escrevendo assim
à toa e já estou vendo para onde vou indo; comecei a falar de
mosca, já passei para andorinhas, o resto é fácil de imaginar,
estou pensando nessa andorinha cigana que apareceu na minha varanda e
sozinha, sozinha, não fez verão, mas fez uma súbita, ainda úmida,
inquietante primavera, com seus ventos e frias luas.
Vai
durar? Tenho a secreta certeza de que não, mas me pergunto às
vezes, e dirijo aqui esta pergunta aos homens que sabem as coisas,
que são os homens poetas: acaso se pode prender mulher como quem
prende passarinho na gaiola? Nosso deleite com mulher e passarinho
não se estraga assim no seu mais íntimo sentido, que é de ter num
instante o que é em si mesmo uma elusiva criatura — a posse do
evanescente? Na minha varanda já apareceu canário, até beija-flor,
até uma deusa, ó tu, Diana, caçadora de brisas, que presides ao
destino das nuvens errantes e das espumas do mar.
Sei
como faço: fico sério, trêmulo por dentro, mas dono do mundo e de
mim, sentindo na cabeça a leve mão de Deus e o cicio inaudível de
Sua voz dizendo: “Eis aí.”
Assim
também A ouvirei quando reconhecer que foi a Morte que desceu em
minha varanda: “Eis aí.” E me irei, talvez com um pouco de pena
de mim, mas sem medo e sem verdadeira tristeza, me irei como se vão
as moscas ao recuarem, atônitas, perante o teto azul de uma cozinha.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
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