Nas
chamadas férias grandes, saturado de provas e de padres, eu ia pra
Paquetá colecionar mulher. Dito assim, reconheço, fica um tanto
pretensioso. Porque eu não apanhava ninguém. Elas queriam rapazes
“mais velhos”. Mas eu continuava minha coleção com método e
carinho.
Eis
o método: montava na Amélia, minha bicicleta, e percorria,
incansável, praias, pracinhas, ruas esquecidas, barrancos do outro
lado da Ilha, o vôlei no quintal da Fulana, o violão na varanda da
Beltrana, e me intrujava em pic-nics, fazia a ronda em lojas e
lanchonetes, esperava barcas apinhadas, tocaiava o portão do Iate,
voltava pro movimento da Ponte – até que o apito da última barca,
sumindo por trás da Ilha dos Lobos, selava o fim de mais um dia de
intensas pesquisas. Ayôu, Amélia! Ia pros Coqueiros, sentava na
areia embaixo daquelas estrelas todas e ficava meio sufocado (muito
tempo depois, li em “Chance” que um personagem do Conrad sentia
algo parecido). Ficava olhando o ponto imaginário onde, lá longe,
além das luzes dos petroleiros, o ar e a noite eram uma coisa só.
Aquela escuridão ferida de estrelas cúmplices, a ligação total
entre as duas sombras primordiais, a sensação de que podia ser
sugado para dentro daqueles princípios, na noite, tudo aquilo me
deixava muito louco. Aí, quase numa de horror, eu pedalava a mil pra
casa, me metia sorrateiramente na dragoflex e começava a relaxar...
Tirava
um papel com o mapa do tesouro do bolso do blusão e conferia as
joias (poxa, Abi, foi sem querer...) do dia: a moreninha de “testa
alta” visível sob o short branco de Alambari Luz, a doméstica (ou
seria babá, Henrique) de maiô verde na Rua do Cemitério, a bunda
balzaquiana que chegou na barca das sete, a lourinha de bruços na
boia de pneu de avião na Praia da Guarda... No fim do inventário,
memória, coberta e alma jaziam devidamente lavradas no sonho
acordado.
Uma
noite, numa seresta, as musas se fundiram numa só.
– Como
é o teu nome?
– Maria.
– Você
é linda!
– São
seus olhos...
Começamos
a namorar, ela muito quieta, eu muito apaixonado. Várias serestas
depois, fomos andando devagarinho pros lados da Praia das Águas e
transamos de um jeito sem jeito, impetuosos, mas cheios de cuidado,
amor de crianças. Com a cabeça dela no peito, olhei tranquilo a
profusão de estrelas e pensei: ôi, minhas camaradas. O mar e a
noite continuavam engalfinhados na mais pura sacanagem.
No
fim de fevereiro, Maria e as férias terminaram.
Mas
fevereiro é um mês danado pra voltar, e num Carnaval aceitei o
convite de um amigo pra um pagode discreto: cervejinha, papo, ver as
escolas na televisão, uma sinuca pra quem tivesse a fim. Meu amigo,
que não tinha nenhuma intenção de ser também amigo da onça,
queria que eu conhecesse umas pessoas, tudo gente fina, vizinhos do
mesmo condomínio, numa praia pros lados de Cabo Frio. Tomei umas
caipirinhas pra aquecer os motores e fui torcer pelo Salgueiro em
reduto de mangueirense. Cheguei, tal-e-coisa, muita animação, um ou
dois já de porre, prazer, oba, cumequié, salve, e...
– Oi,
Maria! Há quanto tempo...
– É.
Como vai?
– Vou
indo. Sabe que escrevi sobre Paquetá um dia desses e me lembrei...
– Ah,
deixa eu te apresentar: esse é o Carlos, meu marido.
– Fala,
Carlos...
– Então
você é que é o tal!
– O
tal?
– Maria
sabe todas as suas músicas...
– Pára
com isso, Carlos. O Aldir sempre foi muito tímido.
Sorriu
daquele jeito quieto e intenso. Não pude evitar:
– E
você continua maravilhosa.
– São
seus olhos...
Depois
que ela foi embora, bebi de cair.
Semana
passada, entrei no Tangará pra uma batida. Quando pedia a terceira,
uma voz amargurada me perguntou se eu tava bebendo pra esquecer
alguém.
– Oi,
Maria.
Estava
um pouco alta, tensa, envelhecida. Eu tentei dizer algumas coisas
gentis, mas devem ter soado vazias porque Maria procurava meus olhos
e não dizia nada. Me deu um beije repentino no rosto e fugiu pela
Álvaro Alvim.
Tomei
um táxi pra Zona Sul e fiquei curtindo um chope à beira-mar. As
mesmas estrelas e os dois grandes sacanas, lá longe, abraçados na
escuridão. Levantei o copo e brindei a você, Maria. Você, quieta e
intensa, continua a mesma. São meus olhos, Maria, meus olhos é que
estão envelhecendo.
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo
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