quarta-feira, 22 de março de 2023

Cartas na Rua | UM

1

Tudo começou como um erro.
Era época de Natal e ouvi do bêbado lá da colina, que aplicava esse truque todo Natal, que eles contratariam qualquer desgraçado, então eu fui, e a próxima coisa que me lembro é de estar com essa sacola de couro sobre meus ombros, vagando à toa por aí. Que emprego, pensei. Moleza! Eles davam a você apenas um ou dois pacotes de cartas e se você desse um jeito de se livrar deles, o carteiro regular lhe daria outro pacote para carregar, ou talvez você voltasse lá para dentro e o panaca da seção lhe desse outro, mas, na maior parte das vezes, bastava fazer uma média, seguir no seu ritmo, ir empurrando os tais cartões de Natal pelos buracos das caixas de correspondência.
Acho que foi no meu segundo dia como empregado temporário de Natal que esse mulherão apareceu e passou a me acompanhar enquanto eu entregava as cartas. O que quero dizer com mulherão é que seu rabo era grande e as tetas eram grandes e que ela era grande em todos os lugares em que deveria ser. Ela me pareceu meio louca, mas fiquei olhando para o seu corpo e não me incomodei.
Ela falava e falava e falava. Então o negócio se revelou. O marido era militar em uma ilha distante, e ela se sentia solitária, você sabe, e vivia em uma pequena casa de fundos, sozinha.
Onde fica a casinha? — perguntei.
Ela escreveu o endereço em um pedaço de papel.
Também estou sozinho — eu disse —, passo mais tarde por lá e aí conversamos.
Eu estava meio enrolado, mas minha parceira passava metade do tempo fora, em algum lugar, e eu ficava de fato só. Eu estava disponível para aquele rabão parado ao meu lado.
Está bem — ela disse —, até de noite.
Ela era das boas, ótima na cama, mas, como todas as fodas ocasionais, depois da terceira ou quarta noite eu perdia o interesse e não voltava mais.
Mas não conseguia parar de pensar, meu Deus, tudo o que esses carteiros têm de fazer é entregar cartas e trepar. Esse é o serviço ideal para mim, ah, sim sim sim.

2

Então fiz o exame, passei, fiz o exame físico, passei, e lá estava eu: um carteiro em estágio probatório. O começo foi fácil. Mandaram-me para o Posto de West Avon e foi exatamente como no Natal, só que não consegui uma trepada. Todo dia eu esperava por uma foda, mas nada acontecia. O supervisor era gente fina e eu me poupava, fazendo uma entrega aqui e outra ali. Eu nem sequer usava uniforme, só um quepe. Vestia minhas roupas de sempre. Também, do jeito que minha parceira Betty e eu bebíamos, dificilmente sobrava dinheiro para roupas.
Até que fui transferido para o Posto de Oakford.
O supervisor era um cavalo chamado Jonstone. Precisavam de ajuda por ali e logo entendi por quê. Jonstone gostava de usar camisas vermelho-escuras — o que significava sangue e perigo. Havia sete substitutos — Tom Moto, Nick Pellegrini, Herman Stratford, Rosey Anderson, Bobby Hansen, Harold Wiley e eu, Henry Chinaski. O horário de apresentação era às cinco da manhã e eu era o único bêbado por ali. Sempre bebia até depois da meia-noite; e lá ficávamos sentados, marcando ponto às cinco da manhã, esperando a hora chegar, esperando algum dos carteiros regulares ligar alegando alguma doença. Eles em geral ficavam doentes quando chovia ou durante uma forte onda de calor, ou então no dia seguinte a um feriado, quando o peso da correspondência dobrava.
Havia quarenta ou cinquenta rotas diferentes, talvez mais, cada uma distinta da outra, e você jamais seria capaz de decorar todas elas. Era preciso estar com o malote arrumado e pronto antes das oito para os despachos por caminhão, e Jonstone não aceitava desculpas. Os substitutos organizavam seus itinerários pelos cantos, partiam sem almoçar e morriam nas ruas. Jonstone nos fazia começar com trinta minutos de atraso — girando em sua cadeira com sua camisa vermelha — “Chinaski, pegue a rota 539”. Começávamos com meia hora de atraso e ainda assim esperavam que entregássemos toda a correspondência e voltássemos a tempo. E uma ou duas vezes por semana, já em frangalhos, liquidados e fodidos, tínhamos de fazer as coletas noturnas e o horário programado era impossível de ser cumprido — o caminhão não podia ir tão rápido. Você tinha de pular quatro ou cinco caixas de correio no primeiro turno e no segundo elas estariam tão abarrotadas que você, já fedendo, corria com o suor empapando os sacos. Eu me ferrava bonito. Jonstone não podia estar mais contente.

3

Os próprios substitutos tornavam a existência de Jonstone possível ao obedecerem suas ordens impossíveis. Eu não podia entender como um homem tão óbvio em sua crueldade podia ocupar um cargo desses. Os carteiros regulares não se importavam, o cara do sindicato menos ainda, de modo que escrevi um relatório de trinta páginas num dos meus dias de folga, enviei uma cópia a Jonstone e levei a outra à Central Federal. A recepcionista me disse para esperar. Eu esperei e esperei e esperei. Esperei por uma hora e meia, depois fui levado até um homenzinho grisalho, com olhos cinzentos como cinza de cigarro. Não me convidou sequer para sentar. Começou a gritar comigo assim que passei pela porta:
Você é um filho da puta metido a espertinho, não é?
Preferia que o senhor não me xingasse, senhor.
Você é um desses filhos da puta sabichões, que têm vocabulário e gostam de ficar se exibindo por aí!
Ele esfregou o relatório na minha cara. E berrou:
O SR. JONSTONE É UM GRANDE HOMEM!
Não seja bobo. O cara é obviamente um sádico.
Há quanto tempo trabalha nos Correios?
Há três semanas.
O SR. JONSTONE ESTÁ NOS CORREIOS HÁ TRINTA ANOS!
E o que uma coisa tem a ver com a outra?
Eu disse, O SR. JONSTONE É UM GRANDE HOMEM!
Creio que o desgraçado queria mesmo me matar. Ele e Jonstone deviam ser amantes.
Está bem — eu disse —, Jonstone é um grande homem. Esqueça essa merda toda agora.
Então fui embora e resolvi tirar o dia seguinte de folga. Sem remuneração, é claro.

Charles Bukowski, in Cartas na Rua

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