Veja
a vida como é: eu tenho dois corações e só vivi a vida por
metade.
Nasci
no dia em que, no céu, dois sóis brilharam.
E
no entanto, para mim, foi sempre noite.
– Avô
Mariano –
A
terra pode amolecer por força do amor? Só se o amor for uma chuva
que nos molha a alma por dentro. Mas você não devia meter palavra
em pensamentos desses. Porque isso é ideia de bicho, meu filho. Só
o bicho sabe que não há chuvas, diferentes e variadas. A chuva é
só uma. É sempre a mesma chuva, apenas interrompida de quando em
quando. A terra, assim fechada, é assunto que lhe escapa a si, aos
bichos, aos vivos. Porque não tem causa de suceder. Só tem motivo
de acontecer.
Esta
terra começou a morrer no momento em que começámos a querer ser
outros, de outra existência, de outro lugar. Luar-do-Chão morreu
quando os que a governam deixaram de a amar. Mas a terra não morre,
nem o rio se suspende. Deixe, o chão voltará a abrir quando eu
entrar, sereno, na minha morte. É por isso que você me deve
escutar.
Me
escute, meu filho.
Sempre
tive pensamento baço, com juízo seco. Porque eu, meu neto Mariano,
eu era ainda muito novo quando desatei a envelhecer. Tal como agora:
comecei a morrer ainda vivo. Ir falecendo, assim sem dar conta, isso
não me dava custo. Mas ficar velho, sim. Esse entorpecimento não me
dava apenas tristeza. Pior, me dava vergonha. Esse declínio me
vergava a um peso que vinha de dentro, como se estivesse engravidando
do meu próprio falecimento e sentisse a presença crescente, dentro
de mim, desse feto que era a minha própria morte. Até pensei na
tristeza de minha nora, sua falecida mãe, que sabia que o bebé
estava já morto na sua barriga. Ainda assim ela acariciava o ventre
olhando a lua cheia como se faz para chamar boa sorte para os
nascentes. Sua mãe, Dona Mariavilhosa, era uma mulher de valor e
grandeza. Morreu no rio que é um modo de não morrer. Ela queria ter
tido muitos filhos. Você foi, afinal, o único. Todo o tempo está
em suas mãos, fosse um mar feito de uma só onda. Você deve ir
visitar a campa dela. Tirava umas mãos-cheias dessa terra que a
cobre e espalhava por aí pelos campos a ver se purificava esses
paradeiros.
Viu?
Sempre acabamos por desembocar nelas, as malfiguradas mulheres. No
princípio, elas estavam fora de minhas razões. À medida que a
idade me consumia eu ia ficando mais capaz de entender as mulheres.
Quando menos as podia amar, mais eu ganhava um outro afecto por essas
criaturas. Menos eu precisava de corpo para saltar por cima de suas
belezas, mais elas me ficavam próximas, quase parecidas.
Até
que cheguei a esse ponto em que a idade se converte numa doença.
Vezes houve que me ocorreu o suicídio. Mas eu lá derramava uma
garrafita e, num instantâneo segundo, já estava preparado para
acreditar outra vez. Depois, porém, voltava a recair. Pudesse Deus
levar-me, assim como a João Felizbento, o tonto dos jornais, que
colectava papéis velhos no bairro dos brancos. Ele foi carregado por
Deus como se, dessa vez, fosse ele o jornal velho. Gostava que me
acontecesse assim, vertido em coisa já sem uso, bastando a Deus se
debruçar para apanhar esse inutensílio.
Houve
vezes em que deitei esperança em doença: uma enfermidade que me
levasse, irremediável. Certas ocasiões, essa esperança quase se
cumpria: acordava todo inchado e dava graças, esperando que minhas
águas interiores crescessem como uma maré de Setembro. E passava o
dia controlando o dedo maiúsculo engordado como o peixe mussopo. O
chinelo desaparecia, vincado entre as papudezas. Nessas alturas,
dispensava os atacadores. Saía à rua, apenas de chinelos. Descalço
é que não. Um negro não anda descalço senão por punição,
condenado à revivência do passado. A pobreza é andar rente ao
chão, receoso não de pisar, mas de ser pisado. Que o espinho
maldoso se crava não no pé, mas no coração da pessoa.
Enfim,
de minha alma restou o quê? Um amontoado de saudades. Minha alma é
um ferro-velho, na sucata do mecânico João Celestioso. A saudade é
uma ferrugem, raspa-se e por baixo, onde acreditávamos limpar,
estamos semeando nova ferrugem. Era o que, agora, mais me dava
sofrimento. Saudade do bom copo, saudade de ter corpo e não o
sentir, saudade até de mijar bem do alto de mim. Saudade dos sabores
da vida, desses temperos que me esperavam. Não era a refeição que
eu comia, era a própria vida que era servida, em pratos sempre
luzidinhos.
O
que eu lhe digo, meu neto: apesar de desacendido ainda me resta um
fulgor, sombra de um bom espírito. Tanto é que, no momento em que
me veio esta morte, um feitiço atravessou toda a vila. Meus olhos
expiravam, meu peito esbatia e, nesse exacto instante, as fogueiras
tremeluziram nas casas como se ventasse uma súbita e imperceptível
aragem. E depois se apagaram, sopradas por essa sombra espessa. Se
extinguiram no mesmo segundo em que se acenderam as máquinas que me
fotografaram.
Perguntou
sobre as razões do meu apagamento. Pois foi assim que sucedeu. E não
se ocupe nem se preocupe. Porque você, meu neto, está cumprindo
bem. Amparando sua Avó, sossegando os seus tios, amolecendo medos e
fantasmas. Está quase completo o que tinha que fazer junto da
família. Quase. Falta, porém, ainda o mais doloroso.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
Nenhum comentário:
Postar um comentário