quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

A próxima aldeia

Meu avô costumava dizer: “A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que — totalmente descontados os incidentes desditosos — até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa”.*

O texto parece querer transmitir uma sabedoria de vida, do tipo: vita brevis, ars longa. Como fiador da validade dessa sentença, figura o avô de um eu. Esse eu permanece indistinto e só fala pela voz do seu antepassado. Fica também indeterminado em que contexto a frase é pronunciada e para o que exatamente ela serve de argumento. O avô é testemunha, mas não está muito claro do que ele é testemunha. Ele relata, mas na medida do possível evita um julgamento sobre a coisa relatada. O neto, seu porta-voz, está presente, mas também não toma posição.
A fala do avô, em discurso direto, tem na aparência um caráter negativo. Ou seja: essa fala remete à incomensurabilidade entre um plano de vida e o tempo disponível, ou, caso se queira, à desproporção entre o desejo individual e a ordem do mundo onde esse desejo se manifesta.
O relato parece testar a possibilidade de alguém experimentar o distante como algo próximo. Nele parece afirmado o modelo provinciano e horizontal da família enquanto sociedade. Está ausente o aparato kafkiano da comunicação hierarquizada segundo um sistema rígido de regras e uma ordem temporal consolidada.
A título de curiosidade, Brecht viu nesse relato a imagem da solidariedade coletiva: é verdade que para um só a cavalgada é longa demais, mas um outro que partisse a cavalo acabaria chegando ao objetivo. Para Benjamin, a postura do avô no texto consagra, num retrospecto da memória, a lei da vida que lhe é própria, ou seja, essa lei só vale para o avô (como a entrada na lei para o homem do campo) e não tem poder de coação sobre os netos.

A “situação narrativa” do texto é simples. Um eu, que não dá a conhecer mais que isso, ou seja, que é um eu que narra, reproduz o que o seu avô costumava dizer quando, já velho, fazia reflexões sobre sua vida passada. Esse eu, no entanto, só aparece indiretamente, na forma do pronome possessivo meu (“meu avô”). De algum modo isso induz o leitor a ocupar, mesmo que involuntariamente, um lugar vazio. É como se o avô se tornasse o avô de cada leitor — sobretudo porque cada um desses leitores poderia pôr na boca do seu próprio avô a primeira frase do texto — “A vida é espantosamente curta” —, que articula uma experiência de ordem geral.
Mas a situação específica do eu-narrador também mimetiza ou absorve a situação relatada do avô. Para tornar isso mais claro, bastaria parafrasear a frase-moldura do texto (“Meu avô costumava dizer”) da seguinte maneira: “Eu costumo contar às pessoas, com prazer, o que meu avô sempre dizia antigamente”. Se assim fosse, as palavras do avô se preencheriam de um conteúdo que parece independente de qualquer particularidade. Essas palavras do avô se apresentariam (e no caso talvez se apresentem) como um pensamento formulado de maneira definitiva que pode ser repetido à vontade. É perceptível, entretanto, que existe uma distância entre o que o avô diz e o que o neto poderia também dizer, porque se trata no texto das palavras de um homem idoso, para quem a vida não é senão uma lembrança. O avô fala como se para ele a vida já tivesse chegado ao fim. O “neto” — e com ele o leitor — só pode realizar a experiência do avô intelectualmente, e não por intermédio da prática efetiva. Portanto essa experiência continua inapreensível para quem ainda não encerrou ou está a ponto de encerrar a vida. A comprovação disso pode ser dada pelo exemplo (“eu por exemplo”) por meio do qual o avô mostra por que ele julga a vida “espantosamente curta”. O avô utiliza aqui uma construção de frase evidentemente elaborada. Essa frase, antes de completar o seu sentido, atravessa um caminho sinuoso, marcado por várias orações subordinadas. É como se o avô desdobrasse, passo a passo, em articulações lógico-sintáticas sempre renovadas, o seu conhecimento. É como se nessa manobra ele empurrasse para a frente a surpresa que reserva para o fim. De fato é só com as últimas palavras que a frase oferece a sua chave. Mas isso não acontece para satisfazer uma expectativa do leitor, e sim para lhe apresentar uma questão irrespondível. Na realidade, o que o avô quer dizer com vida espantosamente curta (onde o tempo é medido pelo espaço) é alguma coisa que ultrapassa de longe as nossas conjecturas. Senão vejamos...
O neto calcula a vida como um espaço de tempo sólido, que se estende pelo futuro à sua disposição. Ele pode cotejar o tempo que é necessário para ir a cavalo até a próxima aldeia com o tempo de vida que presumivelmente tem à mão e constatar que não há motivo para temores. Aliás, não haveria motivo para temores mesmo que ele eventualmente fosse retido no caminho por “incidentes desditosos”, uma vez que ele poderia a cada novo dia cavalgar outra vez até a próxima aldeia. A situação do avô é completamente outra: para ele a vida já é uma espécie de matéria de memória. Isso quer dizer que o tempo se tornou para ele uma grandeza irreal, com a qual ele já não pode contar. O que existe e ainda tem um significado é aquilo que a sua lembrança atual admite em relação à vida que passou. Essa é a sua nova medida e a evidência disso é que a sua lembrança é capaz de tão pouca coisa que o tempo necessário para ir a cavalo até a próxima aldeia de longe já não basta. Dito de outro modo, a limitação do avô é de tal ordem que ele próprio “mal compreende” a decisão tomada nesse sentido (ir a cavalo até a aldeia mais próxima) por um jovem. Ou seja: é claro que o avô ainda a entende — no mínimo a partir da sua experiência vivida. Mas é evidente que, agora, ele, avô, não poderia tomar uma decisão dessas. A fórmula “quase não compreendo” precisa portanto ser matizada. O que acontece é que o avô está há muito tempo livre de ambições como ir a cavalo até a próxima aldeia ou empreender coisas maiores. É nesse caso que não se pode falar em temor da parte dele. O que é incompreensível para o avô é a temeridade daqueles que, com tanta naturalidade, se movem na vida como numa cavalgada até a próxima aldeia, achando que chegam sempre ao lugar de destino pelo caminho tomado.
Nesse ponto é preciso reconhecer que os lances paradoxais desse pequeno texto — desse épico em miniatura — são a expressão do seu sentido. Em outros termos, a luz que responde pelo efeito de estranhamento desse fragmento de Kafka, sob a qual parece se dissolver o conceito de tempo, aponta para outra coisa. Pressente-se que o que aqui não é mais possível é que alguém alcance o seu objetivo recorrendo a um caminho que se realiza no tempo. Na verdade é como se o objetivo estivesse além do tempo — e nesse caso o avô, com a sua “falta de sentido do tempo”, parece estar mais próximo do objetivo inalcançável, ao contrário do que a princípio parece.
Há pelo menos uma reflexão de Kafka que pode dar sustentação a essa leitura. Ele diz o seguinte: “Existe um alvo, mas não existe um caminho; aquilo que nós chamamos de caminho é hesitação”. Ou então: “No mundo existe muita esperança, mas não para nós”. Não é à toa que Adorno considera Kafka o maior prosador contemporâneo.

Texto inédito.
* Esse texto foi escrito entre fins de 1916 e inícios de 1917 e faz parte do livro Ein Landarzt (Um médico rural), publicado na Alemanha em 1919. É a mais curta das catorze peças incluídas no livro. In: Um médico rural, Companhia das Letras, 1999. Tradução de Modesto Carone.

Modesto Carone, in Lição de Kafka

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