segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Diálogo feroz

Alô, Mestre! Não repare se entrei sem me anunciar. Vi a porta aberta, e, como sabe, a juventude tem pressa.
Está-se vendo. Posso saber por que motivo o encontro a esta hora da manhã em minha cozinha?
Mas está na cara: o rosto da mocidade é um espelho de seus desejos. Em segundo lugar, o apartamento do Mestre só tem quarto e kitchenette, e o senhor estava nesta última.
É, mas, de qualquer modo, a etiqueta…
Não vamos perder tempo com esses resíduos do século xix. O senhor já foi moço, talvez…
Mancebo, sua insolência é igual à de Alfred de Vigny ao visitar Royer-Collard, quando este não queria recebê-lo. E, ao que parece, você não é um segundo Vigny.
Mas o senhor talvez seja o próprio Royer-Collard, de quem aliás nunca ouvi falar nem bem nem mal. Posso contar com o seu voto?
Que voto? Não me meto em política.
Mestre, não pense que tem à sua frente um candidato a vereador pelo Distrito. Minha ambição é mais pura. Sonho com a Academia, ou melhor, a Academia me faz cócega em sonhos.
Continue sonhando.
Não posso. Meu sonho é da espécie explosiva, e exige confirmação imediata na realidade. O Mestre será meu padrinho.
Que idade você tem, meu filho?
Vinte e dois.
E quando chegou do Pará?
Há duas semanas. Como vê, já perdi um tempo precioso. Duas semanas na vida de um homem, na era atômica…
Mas não há vaga, menino.
Como não? Há a do Filogônio e a do Mamede.
O Filogônio baixou num terreiro e legou a vaga a um afilhado. Foi uma doação solene, e temos que respeitar a vontade dos mortos, já que ninguém respeita a dos vivos. Quanto ao Mamede, há uma combinação de escrutínios que dará a vitória, na quinta rodada, a um desembargador do Guaporé, candidato desde 1908. É justo.
Quer dizer que não posso aspirar nem a uma vitória moral?
São as mais difíceis, rapaz. Você está exigindo muito.
Por isso é que o Brasil não vai adiante. Os novos são governados pelos velhos, e os velhos pelos mortos. E eu que tinha grandes planos para a Academia.
Pode-se saber quais eram?
Primeiro, substituir o chá com sequilhos por uísque e salgadinhos. É uma vergonha para as letras esse regime de donas de casa reunidas em confeitaria.
Insensato, quando chegamos à Academia já renunciamos ao fígado.
Levaríamos a literatura ao povo, através de comícios, atos públicos, manifestos contra o artipurismo, a invasão da Guatemala e os vícios da burguesia.
Espero estar morto antes de chegar esse dia. Ofereço-lhe a minha vaga.
Tomo nota do oferecimento, mas vai ver que o Mestre não fala isso de coração. Já a prometeu a outros.
Cet âge est sans pitié! Vocês são capazes de matar um cristão para fazer-lhe o elogio.
Não exagere, Mestre, o elogio não é o nosso fraco. Posso lhe garantir que nos detestamos cordialmente uns aos outros. Mas voltando à vaca-fria: nenhuma esperança para as próximas vagas?
Insofrido, seu jeito franco merece retribuição. Saiba que as próximas vagas, a julgar pelos eletrocardiogramas e pelas informações das empregadas, serão abertas pelo Fredolindo, pelo Sesóstris, pelo Janduí e pelo Cabeção. Estão prometidas a quinhentos escritores e jornalistas, mas aposto no Fioravanti, no Pituquinha, no general Porfírio e na Violeta.
Mas a Violeta não pode eleger-se. É mulher, e vive na Europa!
Ser mulher não é defeito insanável. O estatuto não permite, mas dá-se um jeito. Houve um papa chamado Joana. Ela vive na Europa, mas alguns colegas nossos também vivem. Vamos fazer uma experiência com a Violeta, e se ela promete não escrever nada, outras escritoras terão sua vez. Sou contra escrever.
Protesto! A geração de 1954, que eu represento, e que é uma geração sacrificada, lutará nas praias, nas ruas e nas casas pela democratização da Academia! Vocês, velhotes…
Rua!

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

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