domingo, 22 de janeiro de 2023

Construção | Chico Buarque, 1971


Marco divisor em sua obra e carreira, com essa canção e o disco de mesmo nome lançado em 1971, Chico Buarque (1944) mostrou aos seus (poucos) críticos que era muito mais do que um continuador de Noel Rosa ou um ótimo letrista que também fazia músicas. A densa e pesada “Construção” é uma engenhosa e sofisticada composição de estrutura matemática que remete a João Cabral de Melo Neto, montada com permutações de palavras-chave sobre uma marcação rítmica obsessiva e crescente, para desenvolver em rimas proparoxítonas e virtuosísticas a história trágica da morte de um operário de construção.
Numa canção cinematográfica, com imagens dramáticas de um cotidiano massacrante, a letra construída por Chico, além do rigor literário, mostra sinais da estética da Poesia Concreta, desenvolvida pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e por Décio Pignatari, que tanto influenciaram e apoiaram os tropicalistas.
E tropeçou no céu como se ouvisse música / E flutuou no ar como se fosse sábado / E se acabou no chão feito um pacote tímido / Agonizou no meio do passeio náufrago / Morreu na contramão atrapalhando o público.”
Fundamental para a potência da gravação de Chico foi a grandiosidade épica e ruidosa do arranjo do tropicalista-concretista Rogério Duprat, grande maestro da vanguarda musical paulistana que teve papel fundamental nos trabalhos que Caetano, Gil e os Mutantes fizeram durante a Tropicália.
No mesmo disco, mostrando sua evolução e amadurecimento musical e poético, Chico ainda apresentava músicas poderosas como a irada “Deus lhe pague” (que décadas depois seria gravada por grupos de heavy metal), a opressiva “Cotidiano”, a belíssima “Olha, Maria” (com Tom Jobim) e “Samba de Orly” (com Toquinho), mas foi a faixa-título que mais se destacou, apontando para os caminhos que a obra de Chico iria seguir.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário