sábado, 21 de janeiro de 2023

Cartas para minha avó

Foi um período profundamente triste, meu pai sofreu muito, mas também houve descoberta. Ali naquele hospital, vó, foi a primeira vez que o vi chorar. Mesmo com muita dor, ele não chorava. O único dia em que chorou foi quando foi fazer um exame em um andar diferente do hospital. Fui acompanhando o auxiliar de enfermagem que empurrava sua maca e, enquanto aguardávamos, meu pai fez um sinal para que eu me aproximasse. Assim que cheguei meu ouvido perto de sua boca, ele disse: “Eu estou sofrendo porque fiz sua mãe sofrer”. Surpreendida por aquela ação e compadecida de sua situação, tentei desconversar e dizer que não era nada daquilo. Ele insistiu: “Não, filha, eu sei. Eu estou sofrendo porque fiz sua mãe sofrer”. E chorou calado. Eu segurei o choro durante o tempo do exame e enquanto o acompanhava de volta ao quarto. Só então me tranquei no banheiro para chorar toda aquela tristeza.
O quadro dele foi se agravando a ponto de só conseguir ficar à base de morfina. Os médicos já haviam conversado comigo sobre a gravidade, que não havia cura, mas que fariam o possível para que ele pudesse ter dignidade até o fim. Mesmo assim, vó, eu não queria aceitar. Fazia apenas um ano desde a morte da minha mãe e eu não conseguia conceber ficar órfã de pai também. À época eu era espírita kardecista e todos os dias rezava a oração para salvar moribundos.
Eu me sentia esgotada emocionalmente. Era uma jovem de vinte e dois anos enfrentando muitas tristezas de uma só vez, mas todos os dias estava lá, mesmo me aborrecendo por vezes com os amigos e com a namorada dele. Com o Evangelho na mão, eu seguia firme.
Um dia um grupo de auxiliares de enfermagem me chamou para a sala onde ficavam. Uma moça me ofereceu uma xícara de chá de camomila e um homem gentil, negro, de voz doce, me disse:
Você precisa deixar seu pai ir. Já fez tudo o que podia por ele. Trabalhamos aqui há anos e vimos muitas pessoas morrerem sozinhas, completamente abandonadas. Seu pai, não, ele teve você. Todos nós comentamos, até a equipe médica comenta da sua devoção. Mesmo tão jovem, esteve aqui dia após dia. Mas você precisa deixar ele ir.”
Desabei no choro. Pela primeira vez eu podia chorar sem ninguém me pedir pra parar. E chorei todo o choro represado, o choro pela morte da minha mãe, as lágrimas barradas pelo “você precisa ser forte”. Pessoas que não me conheciam me enxergaram como humana, perceberam meu sofrimento e meu pedido de socorro silencioso. Aquele choro me tirou da anestesia, do “estou bem, meu pai vai ficar bom”. Hoje percebo que muita gente não me ofereceu ajuda porque realmente acreditava que eu daria conta de tudo.
Fiquei ali chorando e, entre um gole e outro de chá de camomila, entendi que precisava aceitar aquela situação. Eu tinha medo da perda, não conseguia vislumbrar uma vida sem alguém pra me orientar. Mas meu pai estava convivendo com dores agudas, já estava respirando com ajuda de aparelhos, o olhar estava perdido. “Fique aqui na nossa sala o tempo que precisar, se liberte do peso”, disseram os enfermeiros. Pareciam anjos que você havia mandado em meu socorro, vó.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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