Dera-se
que Iô Isnar trouxera-me a caçar a anta, na rampa da serra. Sobre
sua trilha postávamo-nos em ponto, à espera, por onde havia de
descer, batida pelos cães. Sabia-se, a anta com o filhote. Acima, a
essa hora, ela pastava, na chapada.
Vistosa,
seca manhã, entre lamas, a fim de assassinato; Iô Isnar se
regozijava, duro e mau como uma quina de mesa. Eu olhava os topos das
árvores. Fizera-me vir. Era o velho desgraçado.
— “A
carne é igual à da vaca: lombo, o coração, fígado...”
Matava-a, por distração, suponha-se; para esquecer-se do espírito.
Iô Isnar tinha problema. — “Ecô”! — deu a soltada
dos cachorros, aplicados rumo arriba.
— “Mora
no beira-córrego, em capão de mato. Faz um fuxico, ali, uns ramos;
nesse enredado, elas dormem.” A anta, que ensina o filhote a
nadar: coça-o leve com os dentes, alongando o trombigo.
— “Sai
dos brejos, antes do sol. Sobe, para vir arrancar folhas novas de
palmeiras, catar frutinhas caídas, roer cascas do ipê, angico,
peroba...”
O
problema de Iô Isnar era noutro nível, de dó e circunstância,
viril compungência. Seu filho achava-se em cidade, no serviço
militar. — “Haverá mais guerra? O Brasil vai?”...
perguntara, muito, expondo a balda.
A
anta, e o filhote — zebrado riscado branco como em novos eles são
— tão gentil.
— “Ah,
o couro é cabedal bom, rijo, grosso. Dá para rédeas, chicotes,
coisas de arreios...”
Sobre
lá, a mil passos, a boa alimária fuçava araticuns e mangabas do
chão, muricis, a vagem da faveira. Ao meio-dia buscava outros
pântanos, lagoas, donde comia os brotos de taquaril e rilhava o coco
do buriti, deixada nua a semente. Com pouco ia desastrar-se com os
cães, feia a sungar a afilada cabeça, sua cara aguda,
aventando-lhes o assomar.
Eram
horas episódicas.
De
tocaia, aqui, no rechego, a peitavento, Iô Isnar comodamente
guardava-a, rês, para tiro por detrás da orelha, o melhor, de
morte. Dava osga, a desalma. Moeu-me. Merecia maldição mansamente
lançada. Iô Isnar, apurado, ladino no passatempo.
Havendo
que o obstar?
Levantavam-na
quiçá já os cães anteiros afirmados, cruza de perdigueiros e
cabeçudos. Acossada, prende às vezes o cachorro com o pé, e
morde-o; despistava-os?
— “É
peta, qualquer cachorrinho prático segura uma anta!”
Valesse-lhe,
nem, andar escondida nos matos, ressabiando os descampados. Sem
longe, sem triz, ao grado de um Iô Isnar, em sórdido folguedo:
condenada viva.
Mas,
que, então, algum azar o impedisse — Anhangá o transtornasse!
Só
árvores através de árvores. Doer-se de um bicho, é graça. De
ainda aurora, a anta passara fácil por aqui, subindo do rio, de seu
brejo-de-buritis, dita vereda. Marcava-se o bruto rastro: aos quatro
e três dedos, dos cascos, calcados no sulco fundo do carreiro,
largo, no barro bem amarelo, cor que abençoa.
Havia
urgência.
Podia-se
uma ideia.
À
mão de linguagem. A de meneá-lo, agi-lo, nesse propósito, em
farsamento, súbito estudo, por equivalência de afetos, no
dói-lhe-dói, no tintim da moeda! Iô Isnar, carrasco, jeito abjeto,
temente ao diabo. A pingo de palavras, com inculcações, em ordem a
atordoá-lo, emprestar-lhe minha comichão. Correr aposta.
Ponteiro
menor, a anta; ponteiro grande, os cães.
E
dependi daquilo.
— “Sim,
o Brasil mandará tropas...” — deixei-lhe; conforme à
teoria. Sem o fitar: mas ao raro azul entre folhagens de árvores.
— “Cruz!?”
— ele fez, encolhera elétrico os ombros.
Eu,
mais, numa ciciota: — “É grave...” Luta distante,
contra malinos pagãos, cochinchins, indochins: que martirizavam os
prisioneiros, miudamente matavam. Guerra de durar anos...
Iô
Isnar, voz ingrata, já ele em outras oscilações: — “Deveras?”
— coçou a nuca, conquanto. Acelerava seu sentir; pôs-se cinco
rugas na testa, como uma pauta de música. Vi o capinzal, baixas
ervas, o meigo amarelo do lameiro, uma lama aprofundada. Ele era um
retrato.
Tomei
uns momentos.
Devagar,
a ministrar, com opinião de martelo e prego: — “Seu filho
único...” Disse. Do ominoso e torvo, de desgraçados sucessos,
o parar em morte, os suplícios mais asiáticos. — “Se a sorte
sair em preto...” — o tema fundamental.
Iô
Isnar — a boca aberta ainda maior, porque levantara a cabeça — e
um olhar homicida. Malhava-me fogo?
Só
futuras sombras não logravam porém o desandamento de um cru
caçador, seu coração a desarrazoar-se. Talvez a menção prática
de providências vingasse sacudi-lo: — “Ajudo-o... Mas tem de
vir comigo à cidade...” — propinei.
Iô
Isnar sumiu a cor do rosto, perdera o conselho; o queixo trêmulo.
Valha-o a breca! Operava, o método. Vinha-lhe ao extremo dos dedos o
pânico, das epidermes psíquicas. Ele estava de um metal. Ele era
maquinalmente meu. Obra de uns dez minutos.
No
súbito.
A
alarida, a pouco e pouco, o re-eco — trupou um galope, em
direitura, à abalada, dava vento.
E
foi que: mal coube em olhos: vulto, bruno-pardo, patas, pelo estreito
passadouro — tapiruçu, grã-besta, tapiira... — o coto de cauda.
Com os cães lhe atrás.
Iô
Isnar falhara, a cilada, o tiro; desexercera-se de mãos, não
afirmara a vista.
Travavam-se,
em estafa, os cães, com latidos soluçados.
Embaixo,
lá a anta soltara o estridente longo grito — de ao se atirarem à
água, o filhote e ela — de em salvo.
Refez-se
a tranquilidade.
Iô
Isnar rezava, feito se moribundo, se derrubado, tripudiado pelo
tapir, que defeca mesmo quando veloz no desembesto: seu esterco no
chão parecia o de um cavalo.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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