Vieram
tomar o menino da Senhora. Séria, mãe, moça dos olhos grandes, nem
sequer era formosa; o filho, abaixo de ano, requeria seus afagos. Não
deviam cumprir essa ação, para o marido, homem forçoso. Ela
procedera mal, ele estava do lado da honra. Chegavam pelo mandado
inconcebíveis pessoas diversas, pegaram em braços o inocente, a
Senhora inda fez menção de entregar algum ter, mas a mulher da cara
corpulenta não consentiu; depois andaram a fora, na satisfação da
presteza, dita nenhuma desculpa ou palavra.
Muitos
entravam na casa então, devastada de dono. Cuidavam escutar soluço,
do qual mesmo não se percebendo noção. Sentada ela se sucedia, nas
veras da alma, enfim enquanto repicada de tremor. Iam lhe dar água e
conselhos; ela nem ouvia, inteiramente, por não se descravar de
assustada dor. — “Com que?” — clamou alguém, contra
as escritas injustiças sem medida nem remédio. Achavam que ela
devia renitir, igual onça invencível; queriam não aprovar o
desamparo comum, nem ponderar o medo do mundo, da rua constante e
triste. Ela continha na mão a lembrança de criança, a chupeta
seca. — “Uf!” — e a gente se fazendo mal, com dó, com
dúvida de Deus em escuros. Do jeito, o fato se endereçou,
começador, no certo dia.
No
lugar, por conta de tudo, mães contemplavam as filhas, expostas ao
adiante viver, como o fogo apura e amedronta, o que não se resume.
Decidia o que, aquela? Tanto lhe fosse renegar e debater, ou se
derrubar na vala da amargura. De lá, de manhã, ela desaparecera.
Recitavam vozes: que numa prancha do trem-de-lastro tinham-lhe cedido
viagem, para por aí ir vadiar, mediante algum mau amor. Sem trouxa
de roupa, contavam que com até um pé descalço. Desde o que, puniam
já agora as mães suas arregaladas filhas, por possíveis airadas
leviandades mais tarde. Dela não se informavam; dera-lhes
esquecimento.
Entanto
errados. Ela apenas instricta obediente se movera, a variável rumo,
ao que não se entende. Deixara de pensar, o que mesmo nem suportasse
— hoje se sabe — ao toque de cada ideia em imagem seu coração
era mais pequeno. O menino sempre ausente rodeava-a de infinidade e
falta.
Tomara,
em dois, três dias, o aspeto pobre demais, somente sem erguer nem
arriar rosto: era a sã clara coisa extraordinária — o contrário
da loucura; encostava no ventre o frio das palmas das mãos. Por isso
com respeito a viu e ofereceu-lhe meio copo de cerveja e um pastel de
tabuleiro a Quibia, do Curvelo, às vezes adivinhadora. —
“Sinhá...” — sentiu que assim cabia chamar-lhe,
ajeitando-lhe o vestido e os cabelos, ali no rumor da estação.
Tinha uma filha, a quem estava indo ver, opostamente, a boa preta
Quibia. Convidou consigo a Sinhá, comprando-lhe passagem para aquele
intato lugar, empregou-a também na fábrica de Marzagão. Sobre os
anos, foi pois quem dela pôde testemunhar o verossímil.
Moraram
numa daquelas miúdas casas pintadas, pegada uma a outra, que nem
degraus da rua em ladeira, que a Sinhá descia e subia, às horas
certas, devidamente, sendo a operária exemplar que houve, comparável
às máquinas, polias e teares, ou com o enxuto tecido que ali se
produz. Não falava, a não ser o preciso diário. Deixavam-na em
paz, por nela não reparar, até os homens. Só a Quibia vigiava-lhe
a sombra e o sono. Donde o coligido — de relato — o que de suas
escassas frases razoáveis se deduz.
Sinhá
prosseguia, servia, fechada a gestos, ladeando o tempo, como o que
semelhava causada morte. Tomava-lhe a filha casada da Quibia, por
empréstimos, quase todo o ordenado, já que a ninguém ela nada
recusava, queria nada: não esperar; adiar de ser. A bem dizer, quase
nem comia, rejeitava o gosto das coisas; dormia como as aves
desempoleiradas. Nem um ingrato minuto da arrancada separação
poderiam restituir-lhe! Que é que o tempo tacteia? Os dias, os
meses, por dentro, em seu limpo espírito, se afastavam iguais.
Decerto
não a prezavam, em geral, portanto; junto dela pareciam urgidos de
cuspir e se gabar. Ora a suspeitassem mulher inteligente endurecida,
socapa de perfeita humildade. De propósito não os buscando nem
evitando, acatava contudo de um mesmo modo os trelosos meninos, os
mais velhos comuns, os moços e moças, príncipes, princesas.
Quibia, sim, não duvidou, ainda que ouvida a pergunta que a Sinhá
se propunha: quando, em que apontada ocasião, cometera culpa? E a
resposta — de que, então, só se tivesse procedido mal, a cada
instante, a vida inteira... Daí, quedava, estalável, serena, no
circuito do silêncio, como por vezo não se escavam buracos na
barragem de um açude.
No
filho, no havido menino, vez nenhuma falou — nem a Quibia de nada
soube, a não ser ao pôr-lhe a vela na mão, mais tarde; — feito
guardado em cofre. Seus olhos iam-se empanando encardidos, ralos os
cabelos. Durante um tal tempo, nunca mais se olhara em espelho.
Derradeiramente,
porém, tiveram de notar. Ela se esparzia, deveras dona, os olhos em
espécie: de perto ou de longe, instruía-os, de um arejo, do que nem
se sabe. Por sua arte, desconfiassem de que nos quartos dos doentes
há momentos de importante paz; e que é num cantinho que se prova
melhor o vivo de qualquer festa, entre o leal cão e o gato no
borralho.
— “Se
ela viesse mais à igreja, havia de ser uma Santa...” —
censuravam. Passava espaços era acarinhando pedaço de pedra, sem
graça, áspera, que trouxera para casa; e que a Quibia precioso
conservou, desde a última data. Sinhá, no mais, se esquecia ali,
apartada, entrava no mundo pelo fundo, sem notícias nem lembranças.
Sim, estas, depois.
Primeiro,
um moço, estrito e bem trajado, chegou, subiu a ladeira, a quentes
passos. Queria, caçava, sem sossego, o paradeiro de sua mãe, da
qual também malvadamente separado desde meninozinho: e conseguira
indicação, contadas conversas; também o coração para cá
intimado o puxando... Seria ela?!
Não
— era não — se conferiu, por nomes e fatos. O moreno moço sendo
de outro lugar, outra sumida mãe, outra idade. Só o amor dando-se o
mesmo, vem a ser, que o atraíra de vir, não por esmo.
Mas,
ela, que sentada tudo recebera, calada, leve se levantou, caminhou
para aquele, abençoando-o, pegou a mão do tristonho moço, real,
agora assim mesmo um tanto conformado. Sorria, a Sinhá, como nunca a
tinham avistado até ali, semelhava a boneca de brincar de algum
menino enorme. Seu esqueleto era quase belo, delicado.
Nesse
favor de alegria persistiu, todos exaltando o forte caso. Seja que
por encurtado prazo. Até ao amanhecer sem dia. À Quibia ela muito
contou; e fechou, final, os novos olhos. O caixão saiu, devagar
desceu a ladeira, beirou o ribeirão rude de espumas em lajedos, e em
prestes cova se depositou, com flores, com terra que a chuvinha de
abril amaciava.
Quibia,
entretanto, enfim ciente, meditou, nos intervalos de prantos, e
resolveu, com sacrifícios. Retornou ao Curvelo, indagou, veio enfim
àquele arraial, onde tudo, tão remoto, principiara.
Mas
— o menino? Morreu, lhe responderam. Anjinho, nem chegara a andar
nem falar, adoecido logo no depois do desalmoso dia, dos esforços
arrebatados.
Quibia
relanceou — o passado, de repente movente, sem desperdícios. Se
curvou, beijando ali mesmo o chão, e reconhecendo: — “Sinhá
Sarada...”
Guimarães Rosa, in Tutameia
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