terça-feira, 20 de dezembro de 2022

O valor do riso

A velha ideia era que a comédia representava as fraquezas da natureza humana e a tragédia retratava os homens como maiores do que eles são. Para pintá-los de um modo verdadeiro será preciso chegar a um meio-termo entre as duas; o resultado é algo muito sério para ser cômico, muito imperfeito para ser trágico, e a isso podemos chamar de humor. O humor, como a nós foi dito, é negado às mulheres. Trágicas ou cômicas elas podem ser, mas a mistura específica que constitui um humorista é para encontrar-se somente em homens. As experiências no entanto são coisas perigosas e, ao tentar atingir o ponto de vista do humorista – equilibrando-se naquele pico tão alto que é negado às suas irmãs –, não é raro que o ginasta macho tombe ignominiosamente para o outro lado e, ou bem mergulha de cabeça nas palhaçadas, ou bem desce para o chão duro do lugar-comum muito sério, onde, justiça lhe seja feita, sente-se inteiramente à vontade. Pode ser que a tragédia – um ingrediente necessário – não seja tão comum como foi na época de Shakespeare, e assim a era atual teve de providenciar um substituto decoroso que dispensa o sangue e as adagas, tendo sua melhor aparência quando de sobrecasaca e cartola. A isso nós podemos chamar de espírito de solenidade e, se os espíritos têm gênero, não há dúvida de que esse é masculino. Ora, a comédia é do sexo, das graças e das musas e, quando aquele cavalheiro solene se adianta para render-lhe homenagens, ela olha e ri e olha de novo, até que a risadaria irresistível a domina e ela foge para esconder sua alegria no regaço das próprias irmãs. É assim muito raro que o humor venha ao mundo, e dura é a luta da comédia por ele. O riso puro, tal como o ouvimos nos lábios das crianças e de mulheres bobas, anda em descrédito. É tido por ser a voz da tolice e da frivolidade, não se inspirando nem em conhecimento nem em emoção. É um riso que não passa mensagem, que não transmite informação; é um som inarticulado como o latido de um cão ou o balir de um carneiro, e exprimir-se assim é indigno de uma espécie que se dotou de linguagem.
Mas há coisas que estão além das palavras, e não por baixo das palavras, e uma delas é o riso. Pois o riso é o único som, por inarticulado que seja, que nenhum animal pode produzir. Se no tapete da lareira o cão geme de dor ou late de alegria, entendemos o que ele quer dizer, e não há nada de estranho nisso; mas e se o cão resolvesse rir? E se ele, quando você entrasse no quarto, não expressasse uma alegria legítima, com o rabo ou a língua, por estar vendo você, mas estourasse em pérolas de riso – dentes arreganhados –, sacudindo-se nos lados e exibindo todos os sinais costumeiros de diversão extrema? Seu sentimento seria então de horror, dando a você vontade de afastar-se, como se ali uma voz humana tivesse falado pela boca do bicho. Também não podemos imaginar que seres num estado superior ao nosso riam; o riso parece pertencer essencial e exclusivamente aos homens e às mulheres. O riso é a expressão do espírito cômico que existe dentro de nós, e o espírito cômico se interessa pelas esquisitices e excentricidades e desvios do padrão reconhecido. Seu comentário é feito no riso súbito e espontâneo que vem, mal sabemos nós por quê, e não podemos dizer quando. Se tivéssemos tempo para pensar – para analisar a impressão que o espírito cômico registra –, sem dúvida constataríamos que o que é superficialmente cômico é fundamentalmente trágico e, enquanto houvesse nos lábios o sorriso, em nossos olhos haveria água. Isso – as palavras são de Bunyan[1] – já foi aceito como definição de humor; porém o riso da comédia não traz o peso das lágrimas. Ao mesmo tempo, muito embora sua função seja relativamente modesta se comparada à do verdadeiro humor, o valor do riso na vida e na arte não pode ser superestimado. O humor é das alturas; só as mentes raras são capazes de escalar o pico de onde a totalidade da vida pode ser contemplada como num panorama; mas a comédia, que anda pelas estradas, reflete o trivial e acidental – os erros desculpáveis e as peculiaridades de todos os que passam por seu reluzente espelhinho. Mais do que qualquer outra coisa, o riso preserva nosso senso de proporção; lembra-nos sempre que somos apenas humanos, que não há homem que seja um herói completo ou inteiramente um vilão. Tão logo nos esquecemos de rir, vemos coisas fora de proporção e perdemos nosso senso de realidade. Felizmente os cães não podem rir, porque eles mesmos se dariam conta, se pudessem, das terríveis limitações de ser um cão. Homens e mulheres estão na devida altura, na escala da civilização, para que, tendo recebido o poder de conhecer as próprias falhas, fossem agraciados com o dom de rir delas. Mas estamos ameaçados de perder esse precioso privilégio, ou de esmagá-lo quando fora do peito o externamos, por uma massa de conhecimento pesado e indigerido.
Para ser capaz de rir de alguém você tem, antes de tudo, de ser capaz de o ver como ele é. Toda a capa de riqueza e posição e saber que uma pessoa possui, na medida em que é uma acumulação superficial, não deve embotar a lâmina afiada do espírito cômico, que opera ao vivo. O fato de as crianças terem um poder mais certeiro que os adultos para conhecer os homens pelo que eles são é um lugar-comum, e acredito que o veredicto que as mulheres exararam sobre o caráter não será revogado no dia do Juízo Final. As mulheres e as crianças, então, são os principais ministros do espírito cômico, porque nem seus olhos foram toldados pela erudição nem seu cérebro obstruído pelas teorias dos livros, e assim homens e coisas preservam ainda os fortes contornos originais. Todas as excrescências horrendas que invadiram nossa vida moderna, as pompas e convenções e solenidades maçantes, nada temem tanto quanto o brilho de um riso que, como o relâmpago, as faz tremer e deixa os ossos expostos. É porque o riso das crianças tem essa característica que elas são temidas por pessoas que estão conscientes de afetações e irrealidades; e é provavelmente pela mesma razão que as mulheres são vistas com tal desfavor nas profissões liberais. O perigo é que elas possam rir, como a criança em Hans Andersen que disse que o rei estava nu, quando os mais velhos adoravam a esplêndida indumentária que não existia. Na arte, como na vida, todos os piores tropeços surgem de uma falta de proporção, e a tendência de ambas é ser exageradamente séria. Nossos grandes escritores desabrocham em púrpura e progridem por frases majestosas; nossos escritores menores multiplicam seus adjetivos e regalam-se no sentimentalismo que, num nível mais baixo, produz o anúncio sensacionalista e o melodrama. Vamos a enterros e à cabeceira dos doentes com muito mais disposição do que a casamentos e festas, e não conseguimos tirar da cabeça a crença de que há algo virtuoso nas lágrimas e de que a roupa preta é a que assenta melhor. Não há nada tão difícil como o riso, de fato, mas nenhuma característica é mais valiosa. Ele é uma faca que ao mesmo tempo poda e instrui e dá simetria e sinceridade aos nossos atos e à palavra escrita e falada.

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Publicado pela primeira vez em 16 ago. 1905 no Guardian, jornal de orientação anglocatólica no qual Virginia Woolf colaborou várias vezes durante a primeira década do século XX.
[1] Alusão a The Pilgrim’s Progress (1678), de John Bunyan (1628-88), livro no qual ocorre a frase “So she smiled, but water stood in her eyes” [Ela assim sorriu, mas havia água em seus olhos]. [Todas as notas são do organizador, exceto quando identificadas de outra forma.]

Virginia Woolf, in O valor do riso e outros ensaios

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