B
O
hotel aqui não é grande coisa, mas tem uma privada de primeira.
Defequei esplendidamente, como não o fazia há muito tempo —
depois, acendi um charuto e saí a rodar discretamente pelo bairro,
para tomar posição e ver se descobria em que país afinal me
encontro, já que não me ficaria bem perguntar essas coisas ao dono
do hotel ou ao primeiro transeunte que encontrasse. A língua
oficial, ao que tudo indica, é a língua portuguesa, mas isso não
adianta grande coisa na solução do mistério, pois tanto posso
estar em Portugal como no Brasil, para não dizer nas ilhas dos
Açores ou numa das muitas possessões que Portugal mantém na África
ou na Ásia, se é que ainda as mantém. Ouvi também um pouco de
espanhol — mas foi num rádio do bar da esquina, e pode ser que se
tratasse apenas de um programa de boleros ou de tangos, como os que
se ouvem em qualquer cidade da China ou na Bessarábia. A solução
será mesmo comprar um jornal da tarde e ler no cabeçalho o nome da
cidade em que é editado, pois não é admissível que os jornais
aqui venham de outra cidade ou deixem de lembrar diariamente aos seus
leitores que o nome da sua capital é X e não Y, como lhes lembra
que hoje é quinta-feira e não sexta e que estamos nos meados do
século XX e não do XIX.
Mas,
enquanto persiste o mistério, sento-me à mesa de um bar e peço de
uma vez oito copos de cerveja gelada, que vou emborcando
silenciosamente sob o olhar atento de um menino maltrapilho, que
certamente nunca viu ninguém tão rico quanto eu. (E se eu lhe
perguntasse pelo nome da cidade, será que ele não perderia o
respeito por mim, o grande respeito que advém dos oito copos de
cerveja formados em fila indiana e que vou sorvendo com a calma
sabedoria de um Buda?) Deixo-o fitar-me enquanto me embebedo, e, uma
vez bêbado, atiro-lhe com um copo na cara e ameaço corrê-lo a
pontapés, o que provoca a intromissão indébita do meu truculento
vizinho da esquerda, que a viva força quer expulsar-me do bar e
talvez do país.
Serenados
os ânimos, não sem uma polpuda esmola de minha parte ao pequeno
maltrapilho, dirijo-me em alemão ao meu vizinho da esquerda e, em
tom amabilíssimo, cheio de sorrisos, mando-o para o inferno e para
outros lugares ainda menos recomendáveis, o que provoca de sua parte
um gesto amigável e algumas palavras, em português, do mais puro
reconhecimento.
Quando
dou por mim, muito tempo depois, estou sentado num banco de praça,
ao lado de uma mulher gorda que não sei se ali está levada por mim
ou se por conta própria, pois de fato não me lembro bem nem do meu
nome nem do país ou do planeta em que estou, de tal forma me gira a
cabeça e com ela todo o resto do corpo. A mulher gorda, seja ou não
minha amante, não me dá a mínima importância e continua a fitar o
vácuo à sua frente com o ar mais hierático deste mundo, como se
fora um boneco de cera ou a própria estátua da Prostituta
Desconhecida.
Afinal,
após um vômito breve, consigo levantar-me com relativa facilidade —
e, já senhor do meu pensamento, convido a respeitável matrona a
passar comigo aquela noite, mostrando-lhe uma nota de mil francos e
por conseguinte minhas boas intenções a seu respeito. A caminho do
hotel, percebo que a mulher manca horrivelmente da perna esquerda e
que é muito mais feia do que eu pensava, além de ter um hálito
capaz de provocar verdadeira guerra bacteriológica num raio de dez
quilômetros. Mas, como estou lírico e ainda não tenha vomitado
toda a minha alma, levo-a assim mesmo para o quarto e ali a possuo
por três vezes seguidas — duas por minha conta e uma em nome do
meu irmão gêmeo e sepulto em mim — o que a faz lamentar ser tão
pequena a minha família e tão avaro o meu espírito de
fraternidade.
Finda
a bacanal bacteriológica, levo o meu monstro coxo até um
restaurante próximo, onde jantamos furiosamente e, entre uma garfada
e outra, nos tratamos pelos nomes mais carinhosos possíveis, sob o
espanto visível do garçom vesgo que nos serve. Quando ganhamos a
rua já passa da meia-noite (pelo relógio do enforcado) e, após
acordar toda a vizinhança com os nossos gritos obscenos,
despedimo-nos como dois líricos namorados, não sem antes copularmos
mais uma vez, em plena rua, ao som da uma valsa vienense que vem de
dentro de um palacete feericamente iluminado.
Chegado
ao hotel, verifico com espanto que fui roubado em minha carteira pela
infame megera, certamente por ocasião da última cópula ao som do
Danúbio Azul, o que me faz sair às pressas em busca do meu
prestimoso enforcado, a ver se consigo arrancar-lhe a roupa, os
sapatos e algum outro bem que porventura me tenha escapado por
ocasião do primeiro saque. Na rua da Liberdade, porém, a madrugada
reina impassível e sem fantasmas, e o corpo do meu amigo já não
balouça mais como uma lanterna chinesa à luz fosca do lampião,
certamente por já ter sido descoberto pela polícia e pela família
inconsolável. Sento-me no meio-fio e, como um desesperado, choro
pela madrugada adentro, tendo por única companhia a lua cheia sobre
a cabeça e a sombra do meu irmão refletida numa poça d’água sob
os meus pés.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua vem da Ásia
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