Eu
estava na copa tomando um café e ouvi a cozinheira na área de
serviço cantando uma melodia linda, sem palavras, uma espécie de
cantilena extremamente harmoniosa. Perguntei-lhe de quem era a
canção. Respondeu: é bobagem minha mesmo.
Ela
não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo.
Parei de tomar o café, meditei: o mundo ainda será muito mais
criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão
atrasados em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa
não será usada como palavra, nem mesmo vai se falar nela: apenas
tudo se criará. Não é culpa nossa – continuei com meu café –
se estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em “milhares de
anos à nossa frente”, deu-me quase uma vertigem pois não consigo
contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e
esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos,
é possível que voltemos às cavernas e que tudo se repita de novo?
Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o mundo
será daqui a milhares de anos. Por outro lado, continuei, nós
estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai
dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto
estamos secos como um figo seco onde ainda há um pouco de umidade.
Enquanto
isso a empregada estende roupa na corda e continua sua melopeia sem
palavras. Banho-me nela. A empregada é magra e morena, e nela se
aloja um “eu”. Um corpo separado dos outros, e a isso se chama de
“eu”? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde
sangue molhado corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos
tantas vezes devem ter chorado. Ela é um “eu”.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
Nenhum comentário:
Postar um comentário