Quando
a terra se converte num altar, a vida se transforma numa reza.
Padre
Nunes
Eu
nunca imaginei quanto a ilha se tinha magoado com o naufrágio. Era
como se todo o destino de Luar-do-Chão tivesse ficado coberto por
essa mácula. Só entendi o peso daquela memória quando a Avó
Dulcineusa me falou do burro que tínhamos encontrado em plena casa
de Deus.
A
presença do animal me tinha intrigado. Tanto que, de noite, o bicho
tinha espreitado o meu sonho. Não fora um pesadelo. Olhar de burro
está sempre acolchoado de um veludo afectuoso. Mas aqueles olhos
eram mais do que isso. Possuíam humaníssima expressão e me
convidavam para travessias que me inquietavam, bem para além da
última curva do rio.
Acordo,
estremunhado, apressado em esclarecer a estranheza que eu recolhera
na visita ao Padre Nunes. Surpreendo a Avó na cozinha, em preparo de
refeição. Pela janela escuto a sua lengalenga, monotónica. A Avó
sempre recitava enquanto preparava a comida. Era uma reza
invariavelmente repetida: semente na terra, pão no forno, a gota no
ventre, este mundo está grávida e nunca mais é pai. Interrompo a
cantilena e lhe atiro a pergunta mesmo antes dos bons-dias: – Avó,
me explique esse burro, lá na igreja!
– O
burro?
– Sim,
como é que um burro vive numa igreja?
– Qual
é o problema? Jesus não tinha um burro do lado do berço?
Está
a fugir da resposta. Insisto tanto que ela se senta, suspirando
fundo. Em seu rosto passa uma sombra tão espessa que até a voz lhe
escurece. Diz que eu faço mal em querer saber. Como se naquele
tristonho animal, assim tão hereticamente posto em lugar santo,
estivesse o mistério de todo o universo. A avó molha o dedo
indicador como fazem os contadores de dinheiros. Sempre que a
conversa se adivinha longa, ela recorre àquele tique como se se
preparasse para desfolhar um pesado livro.
– A
história desse burro começa no dia do desastre.
Recordava-se
de tudo o que ocorrera no dia da tragédia do barco. Naquela manhã
ela fora ajudar o Padre Nunes a cuidar dos afazeres. O dia despertara
aberto e claro. De súbito, porém, uma inesperada ventania chicoteou
os céus. As nuvens se carregaram como se fossem cabides de roupas
escuras penduradas junto às casas. Dulcineusa apressou o passo para
se resguardar na casa de Deus. Encontrou o Padre Nunes sentado num
degrau do altar. Absorto, o português escutava a chuva timbilando no
tecto da igreja. Era uma bátega estranha, dessas que chegam sem
anúncio e, num instante, fazem o céu dissolver-se todo inteiro.
Umas
pancadas apressadas na porta não alteraram a meditação do
sacerdote. Continuou olhando a vela no altar. A cera derretida
demorava uma periclitância, como hesitante lágrima no topo da vela.
Depois desabava, em súbito serpenteio, até perder o fôlego e se
estancar sólida, alto-relevada. Com o dedo o padre remoldava a vela
como se fosse um brinquedo por terminar.
Quando
a porta já estrondeava, o padre chamou a Avó Dulcineusa. Que fosse
ver quem era. A Avó pousou as flores que trazia sobraçadas. Como
sempre fazia, ela substituía as flores verdadeiras por umas de
plástico que lhe traziam da cidade. As flores silvestres com que o
padre decorava o átrio eram lança das pela janela e trocadas por
mal acabadas imitações. a plástico, dizia ela, é que é a
eternidade. Não se pode, neste lugar, manter coisa perecível.
Mesmos nós, as humildes criaturas, naquele recanto, nos tornávamos
eternos.
– Quem
é? – perguntou o padre.
A
velha espreitou pela fresta e anunciou: – É João Loucomotiva.
O
padre suspirou. João era um antigo guarda-freio emigrado lá na
cidade e que enlouqueceu quando os comboios deixaram de circular. O
homem regressou à ilha, mas uma parte dele ficou para sempre junto
de uma estação ferroviária à espera do lento suspiro dos trens.
Que pretendia o velho tresloucado àquela hora? Quando Dulcineusa
abriu a porta, o padre, meio ofuscado pela claridade exterior, apenas
vislumbrou um burro. Um jumento tão encharcado que as orelhas lhe
tombavam, sob o peso. Só depois descortinou o vulto de João
Loucomotiva.
– Entre,
por amor de Deus.
O
antigo ferroviário sacudiu as mangas do casaco e passou a mão, em
concha, a recolher o molhado que lhe escorria pelo rosto.
– Entre,
meu amigo. Mas entre sem o burro. Tarde de mais. O asno já se
instalara no abrigo e recusava o uso da força para voltar a transpor
a porta. O bicho empancara, cheio de testa, todo o corpo teso. João
Loucomotiva desistiu de empurrar o animal. O padre acabou aceitando a
desordem natural das coisas. O asno escoiceou no chão e o som do
casco ressoou pelo recinto. Era a proclamação da sua tomada de
posse.
– Mas
que raio de burro é esse? O bicho é seu?
– Esse
burro vinha no barco.
– Mas
que barco?
– Já
falo tudo, senhor padre.
– Então
fale, homem de Deus!
– Eu
venho porque me mandaram chamar o senhor.
– Mandaram-me
chamar?
– Por
causa do desastre.
O
padre pensou em silêncio: pronto, lá me vem ele com o devaneio do
desastre. Fazia parte do delírio de João escutar comboios
descarrilando nos pântanos, despenhando-se das pontes e
dissolvendo-se no escuro dos túneis. Nunes pediu a Deus que o
abastecesse de paciência e abrigasse aquela descarrilada criatura
como se a igreja fosse a estação de caminhos-de-ferro que o
desvairado há tanto procurava. Abriu os braços em direcção a
Loucomotiva e pensou: sou um espantalho, tão pobre e falhado que, em
vez de afastar, acabo atraindo a passarada. E este que acabou de
entrar é um pássaro, tão pássaro quanto os verdadeiros, de pena e
asa.
– Não
foi o comboio, senhor padre. Foi o barco, o barco que se afundou.
– O
barco afundou? Quanda?
– Esta
madrugada. Este burro vinha no barco, foi o único que se salvou.
A
primeira coisa que o padre fez foi ajoelhar-se e benzer-se. O
silêncio que se impôs enquanto ele rezava parecia ser respeitado
até pelo burro que, olhos cheios, contemplava, imóvel, o português.
E assim se ficou, tudo em divino silêncio até que o padre se ergueu
e abriu as portadas. Parara de chover e uma estranha quietude pairava
sobre a encosta. Foi então que se escutaram os lamentos, gritos e
prantos vindos do rio. As mulheres hasteavam a sua tristeza, sinal
que a morte já procedia à sua colheita. Dulcineusa soltou as flores
e saiu correndo. O padre seguiu a Avó, repuxando a batina para andar
mais célere. João Loucomotiva retirou-se, sem pressa, cuidando de
confirmar se, entretanto, o quadrúpede não abandonava o templo.
No
rio ainda havia buscas mas não restava esperança de encontrar
sobreviventes. A tragédia acontecera nas primeiras horas da manhã.
Os corpos se afundaram para sempre na corrente. O casco do barco,
meio tombado, ainda flutuava. Sobre o fundo enferrujado, podia ler-se
o nome da embarcação pintado a letras verdes: Vasco da Gama. Fazia
ligação com a cidade e, como sempre, ia sobrecarregado de gente e
mercadoria. A ambição dos novos propietários, todos reconheciam a
meia voz, estava na origem do acidente. Sabia-se o nome dos culpados
mas, ao contrário das letras verdes no casco, a identidade dessa
gente permaneceria oculta por baixo do medo.
Agora
se entendia a súbita alteração dos elementos, nas primeiras horas
da manhã. Quando o barco foi engolido pelas águas, o céu da Ilha
se transtornou. Um golpe roubou a luz e as nuvens se adensaram.
Um
vento súbito se levantou e rondou pelo casario. Na torre da igreja o
sino começou a soar sem que ninguém lhe tivesse tocado. As árvores
todas se agitaram e, de repente, num só movimento, seus troncos
rodaram e se viraram para o poente. Os deuses estavam rabiscando
mágoas no fundo azul dos céus. Os habitantes se apercebiam que o
que se passava não era apenas um acidente fluvial. Era muito mais
que isso.
À
medida que tomava conta da tragédia, o padre ia perdendo o
esclarecimento, mais apalermado que o próprio João Loucomotiva.
Retirou os óculos e atirou-os para o capim. Dulcineusa foi no seu
encalço para lhe entregar o que ele havia deixado cair. Mas o
religioso fez questão em negar. Preferia deixar de ver.
E
assim, pitosguiando aos tropeções, o sacerdote começou a deambular
sem destino, parecendo que, para ele, qualquer direcção lhe servia.
Dulcineusa seguia-o à distância, pesarosa por estar a assistir ao
desintegrar do espírito do seu guia religioso. Rezava baixinho para
que fosse coisa passageira mas o padre não dava mostras de
recuperar. Perto dos pântanos, por fim, ele se deteve frente à casa
do feiticeiro Muana wa Nweti. Após uma hesitação entrou na
obscuridade da palhota. Pediu ao feiticeiro: – Atire os búzios,
Muana wa Nweti.
O
adivinho, intrigado, levantou os olhos. O padre insistiu,
encorajando: ele que atirasse os búzios que ele queria saber do seu
destino, agora que os anjos o tinham deixado tombar, sem amparo, no
vazio da incerteza.
– Deixe
os búzios falarem.
Dulcineusa,
por respeito, se retirou. Nunca chegou a saber que vaticínios o
adivinho tinha detectado no futuro do português. Mas isso não a
incomodava tanto quanto o clérigo ter aceitado sentar-se no pátio
do adivinhão. A que ponto estava desorientado para sujeitar-se
àquilo que sempre condenara? Quando o padre saiu da consulta ela, de
novo, o foi seguindo enquanto insistia com doçura: – Padre, os
seus óculos.
Nunes
regressou à igreja e preparava-se para lá se fechar quando se virou
para Dulcineusa e balbuciou qualquer coisa que ela não entendeu. A
Avóaproveitou para sanar a curiosidade que lhe fervilhava por
dentro: – Esse feiticeiro disse o quê, senhor padre? Nunes fitou-a
com um ar tão embriagado que, por um momento, a velha Dulcineusa
acreditou que Muana wa Nweti lhe tinha feito beber algo. Após uns
segundos, o sacerdote falou: – Esse burro, Dona Dulcineusa.
Prometa-me que vai tratar dele.
– Tratar
dele? Nunca a Avó se esclareceu sobre os tratamentos a aplicar na
besta. Nunes se enclausurou em estranho alheamento. Passaram-se dias
sem que se rezasse missa em Luar-do-Chão. O sacerdote saía
manhãcedo e só à noite regressava. O único fiel ocupante da
igreja era o burro. O bicho, com sua silenciosa sapiência, nunca
mais se iria retirar da igreja, mais praticante que um beato.
Durante
esse tempo, o padre rezava sozinho na margem do Madzimi. A Avó
passou a servir de uma espécie de sacristão de campanha. Para ali
conduzia as flores de plástico e as espetava em redor da rocha onde
o padre agora se ajoelhava.
Certa
vez, quem compareceu nesse descampado foi Fulano Malta. Dulcineusa
muito se admirou. O que faria ali esse seu arrevesado filho? Fulano
se apresentou e disse que vinha conversar.
– Confessar?
– perguntou o padre.
Confessar,
podia ser, aceitou Fulano. Mas não conversou, nem confessou. Ficou
calado, fazendo coro com o silêncio de Nunes. Sentados, os dois
contemplaram o rio como se escutassem coisas só deles. Até que, por
fim, meu pai decidiu falar: – Quem tinha razão era Mariavilhosa.
– Razão
de quê?
– Precisamos
plantar um embondeiro.
– Um
embondeiro onde?
– No
rio, padre. No fundo do rio. Se quisermos recuperar os náufragos
temos que estancar a corrente.
Dulcineusa,
atenta, aguardou a resposta do sacerdote. Queria confirmar se não
estariam os dois loucos, afectados pelo acontecer e desacontecer em
nossa Ilha. O padre nada respondeu. Ele sabia o que Fulano estava
referindo. Nunes conhecia a sua história e de sua mulher
Mariavilhosa. Sabia como o destino de ambos estava ligado ao rio
Madzimi.
O
padre ainda se recordava de como, há uma trintena de anos, tudo
começara entre os dois apaixonados. Numa longínqua tarde, o ainda
jovem Fulano se juntara à multidão para assistir à chegada do
Vasco da Gama. Entre os marinheiros ele notou a presença de um homem
belo, de olhos profundos. Fulano se prendeu nesses olhos. Estranhou
aquele apego às feições de alguém tão macho quanto ele. Não era
tanto os olhos mas o olhar que o outro lhe dedicou, furtivo e,
contudo, cheio de intenção. Fulano se interrogou, amargurado
perante aquela atracção. Estaria doente, seria doente? Contrariando
os seus hábitos, Fulano Malta até se chegou a confessar. Nunes
escutou em silêncio a admissão daquela paixão proibida. Meu pai
estava obcecado: aquilo não podia estar sucedendo com ele.
– Padre,
eu sou normal? De nada valeram as palavras tranquilizadoras do padre.
A angústia, em meu pai, crescia com a irreprimível paixão. Certa
vez, seguiu esse marinheiro e lhe pediu explicação de alguma
nenhuma coisa. Apenas pretexto para tenção e intenção. O
marinheiro respondeu evasivamente, e solicitou que nunca mais lhe
fosse dirigi da palavra. Que ele era um fugitivo da outra margem,
escapadiço de perseguições políticas. Lhe custava até falar. O
rigor daquele serviço no barco agravara a fraqueza que a prisão lhe
trouxera. Daí a sua aparência frágil, seus modos escassos.
Meu
pai ficou de pé retaguardado. O estranho, com aquela desculpa, se
rodeava de acrescido mistério. Fulano ainda mais preso ficou. O
barco chegava, e ele ficava contemplando as manobras de atracagem. E
se concentrava, embevencido, nos gestos dolentes e frágeis do
marinheiro. Uma noite escura, ele seguiu o embarcadiço enquanto este
enveredava por trilhos escuros. Foi dar a casa do Amílcar
Mascarenha. O médico veio à porta, policiou os olhos pela rua e fez
com que o marinheiro entrasse.
Fulano
se emboscou, peneirando na penumbra. Dali podia testemunhar o que se
passava no interior. O médico mandou o embarcadiço tirar o casaco
de ganga. Notou-se, então, que uma ligadura lhe apertava o peito.
Deveria ser ferimento extenso, tal era a dimensão da ligadura.
Quando o pano, enfim, se desenrolou, o espanto não coube em Fulano
Malta, pois se tornaram visíveis dois robustos seios. O marinheiro,
o enigmático marinheiro era, afinal, uma mulher! Fulano Malta
respirou fundo, tão fundo que não notou que irrompia pela casa de
Mascarenha e surpreendia a bela mulher meia despida. A moça nem se
tentou proteger. Rodou em volta da mesa, olhos nos olhos de Fulano,
enfrentando-o como se uma alma nova lhe viesse. Depois, cobriu-se com
uma capulana e saiu. Fulano Malta sentou-se, abalado por aquela
descoberta.
O
médico então lhe contou toda a história: aquela moça era
Mariavilhosa. Vivia mais a montante, num recanto do rio que poucos
visitavam. Há uns meses, a desgraça tinha vindo ao seu encontro:
fora violada e engravidara. Para abortar, no segredo, Mariavilhosa
fizera uso da raiz da palmeira Lala. Espetara-a no útero, tão fundo
quanto fora capaz. Mascarenha encontrara-a num estado deplorável: as
entranhas infectadas, sangue apodrecendo no ventre. Ele fez o que era
possível. Mas a moça deveria prosseguir um tratamento continuado
que só podia ser administrado na capital. Ora, naquele tempo, os
negros estavam proibidos de viajar no barco. O Vasco da Gama era só
para os brancos. Mariavilhosa o que fez? Disfarçou-se de tripulante.
Os marinheiros eram os únicos negros autorizados a embarcar. Ela
seria um deles, puxando corda, empurrando manivelas. Fulano se
encontrara com esse marinheiro de água doce e o seu coração
detectara, para além do disfarce, a mulher da sua vida.
A
história teria aqui um fim não fossem as marcas que ficaram em
Mariavilhosa. O ventre dessa mulher adoecera para sempre. E não
havia cura de que a medicina fosse capaz. Das costuras e cicatrizes
escorreria sangue sempre que na ilha nascesse uma criança.
Mariavilhosa
tivera-me a mim, no meio de frustradas tentativas. Uma angústia,
porém, permanecia como âncora, amarrando para sempre a capacidade
de ser feliz. E isso me torturava. Me parecia que eu era um
insuficiente filho, que não havia bastado como realização materna.
Ainda hoje essa irresolúvel melancolia de Mariavilhosa me deixava
abatido. Agora que minha Avó se recorda de tudo isto eu aproveito
para tirar o assunto a limpo: – É verdade que minha mãe morreu
afogada? Afogada era um modo de dizer. Ela suicidara-se, então? A
Avó escolhe cuidadosamente as palavras. Não seria suicídio,
também. O que ela fez, uma certa tarde, foi desatar a entrar pelo
rio até desaparecer, engolida pela corrente. Morrera? Duvidava-se.
Talvez se tivesse transformado nesses espíritos da água que, anos
depois, reaparecem com poderes sobre os viventes. Até porque houve
quem testemunhasse que, naquela derradeira tarde, à medida que ia
submergindo, Mariavilhosa se ia convertendo em água. Quando entrou
no rio seu corpo já era água. E nada mais senão água. Meu pai
ainda se lançou no Madzimi a procurar a sua amada. Mergulhava e
nadava para trás e para a frente como um golfinho enlouquecido. Mas
sucedia algo extraordinário: assim que ele entrava na água perdia o
sentido da visão. Nadava ao acaso, embatendo nos troncos e
encalhando nas margens. Até que o fizeram desistir e aceitar a
triste irrealidade.
Afinal,
o Avô Mariano não estreava as dificuldades da nossa família com as
cerimónias fúnebres. Quando se procedeu ao funeral de minha mãe
também não havia corpo. Acabaram enterrando um vaso com água do
rio.
– Água
é o que ela era, meu neto. Sua mãe é o rio, está correndo por a_
nessas ondas.
Para
encontrar seu original formato seria preciso estancar as águas,
plantando embondeiros no leito fundo. E para esse serviço só com
ajuda das mãos dos deuses. Assim se dizia em Luar-do-Chão.
O
suspiro de Dulcineusa é como um ponto de final no longo relato. Ela
esfrega os dedos uns nos outros como se mostrasse que acabara de
folhear uma última página. Olha-me bem nos olhos e sorri: – Já
viu? Tudo isso a propósito de um burro.
– E
o pai sabe de toda esta história?
– O
que Fulano nunca soube foi quem violou Mariavilhosa.
– E
quem foi?
– Não
lhe posso dizer.
– Diga-me,
Avó, eu preciso saber.
Dulcineusa
hesita. Recorro ao infalível estratagema de lhe pegar nas mãos e
acariciar os dedos. – Precisa mesmo de saber, meu neto? – Eu sou
aquele que vai continuar-vos, Avó.
Preciso
saber tudo.
– Foi
Frederico Lopes, esse seu padrinho que o recebeu na cidade.
Lopes?
Esse homem tão cristão, tão marido, tão metido com as mulheres da
sua raça? Deveria ser engano. A julgar pelo seu comportamento
público ninguém poderia crer nessa culpa. Mas era certo. E sabido
pelo Padre Nunes. No momento, algo se iluminou dentro de mim: a foto
de minha mãe na cabeceira de Conceição Lopes! A portuguesa sabia
do que acontecera entre o marido e Mariavilhosa. E castigava
Frederico com a imposição da presença, mesmo junto ao leito
conjugal, do rosto de minha mãe.
O
Padre Nunes estava a par de tudo e não se perdoava a si mesmo
absolver e reabsolver esse Lopes nas confissões de domingo. Como,
entretanto, foi absolvendo outras mais novas excelências cheias de
poses e posses mas de mãos sujas de crimes. Talvez fossem esses os
cansaços que ele referira. A Avó remira os dedos dela entrelaçados
nos meus e vai falando pausadamente: – É por isso que estou
tratando desse jumento trazido pelas águas.
– Não
entendo a ligação, Avó.
– Esse
burro não é só um bicho.
– Ora,
avó, o burro é um burro.
– Vou-lhe
dizer, meu neto: em Luar-do-Chão precisamos de um anjo muito mas
muito puro. Mas o anjo que aqui permanecesse perderia, no instante,
toda a pureza. Talvez você, Marianito...
– Talvez
eu o quê?
– Talvez
você seja esse anjo.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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