quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Capítulo sete | Um Burro enigmático


Quando a terra se converte num altar, a vida se transforma numa reza.
Padre Nunes

Eu nunca imaginei quanto a ilha se tinha magoado com o naufrágio. Era como se todo o destino de Luar-do-Chão tivesse ficado coberto por essa mácula. Só entendi o peso daquela memória quando a Avó Dulcineusa me falou do burro que tínhamos encontrado em plena casa de Deus.
A presença do animal me tinha intrigado. Tanto que, de noite, o bicho tinha espreitado o meu sonho. Não fora um pesadelo. Olhar de burro está sempre acolchoado de um veludo afectuoso. Mas aqueles olhos eram mais do que isso. Possuíam humaníssima expressão e me convidavam para travessias que me inquietavam, bem para além da última curva do rio.
Acordo, estremunhado, apressado em esclarecer a estranheza que eu recolhera na visita ao Padre Nunes. Surpreendo a Avó na cozinha, em preparo de refeição. Pela janela escuto a sua lengalenga, monotónica. A Avó sempre recitava enquanto preparava a comida. Era uma reza invariavelmente repetida: semente na terra, pão no forno, a gota no ventre, este mundo está grávida e nunca mais é pai. Interrompo a cantilena e lhe atiro a pergunta mesmo antes dos bons-dias: – Avó, me explique esse burro, lá na igreja!
O burro?
Sim, como é que um burro vive numa igreja?
Qual é o problema? Jesus não tinha um burro do lado do berço?
Está a fugir da resposta. Insisto tanto que ela se senta, suspirando fundo. Em seu rosto passa uma sombra tão espessa que até a voz lhe escurece. Diz que eu faço mal em querer saber. Como se naquele tristonho animal, assim tão hereticamente posto em lugar santo, estivesse o mistério de todo o universo. A avó molha o dedo indicador como fazem os contadores de dinheiros. Sempre que a conversa se adivinha longa, ela recorre àquele tique como se se preparasse para desfolhar um pesado livro.
A história desse burro começa no dia do desastre.
Recordava-se de tudo o que ocorrera no dia da tragédia do barco. Naquela manhã ela fora ajudar o Padre Nunes a cuidar dos afazeres. O dia despertara aberto e claro. De súbito, porém, uma inesperada ventania chicoteou os céus. As nuvens se carregaram como se fossem cabides de roupas escuras penduradas junto às casas. Dulcineusa apressou o passo para se resguardar na casa de Deus. Encontrou o Padre Nunes sentado num degrau do altar. Absorto, o português escutava a chuva timbilando no tecto da igreja. Era uma bátega estranha, dessas que chegam sem anúncio e, num instante, fazem o céu dissolver-se todo inteiro.
Umas pancadas apressadas na porta não alteraram a meditação do sacerdote. Continuou olhando a vela no altar. A cera derretida demorava uma periclitância, como hesitante lágrima no topo da vela. Depois desabava, em súbito serpenteio, até perder o fôlego e se estancar sólida, alto-relevada. Com o dedo o padre remoldava a vela como se fosse um brinquedo por terminar.
Quando a porta já estrondeava, o padre chamou a Avó Dulcineusa. Que fosse ver quem era. A Avó pousou as flores que trazia sobraçadas. Como sempre fazia, ela substituía as flores verdadeiras por umas de plástico que lhe traziam da cidade. As flores silvestres com que o padre decorava o átrio eram lança das pela janela e trocadas por mal acabadas imitações. a plástico, dizia ela, é que é a eternidade. Não se pode, neste lugar, manter coisa perecível. Mesmos nós, as humildes criaturas, naquele recanto, nos tornávamos eternos.
Quem é? – perguntou o padre.
A velha espreitou pela fresta e anunciou: – É João Loucomotiva.
O padre suspirou. João era um antigo guarda-freio emigrado lá na cidade e que enlouqueceu quando os comboios deixaram de circular. O homem regressou à ilha, mas uma parte dele ficou para sempre junto de uma estação ferroviária à espera do lento suspiro dos trens. Que pretendia o velho tresloucado àquela hora? Quando Dulcineusa abriu a porta, o padre, meio ofuscado pela claridade exterior, apenas vislumbrou um burro. Um jumento tão encharcado que as orelhas lhe tombavam, sob o peso. Só depois descortinou o vulto de João Loucomotiva.
Entre, por amor de Deus.
O antigo ferroviário sacudiu as mangas do casaco e passou a mão, em concha, a recolher o molhado que lhe escorria pelo rosto.
Entre, meu amigo. Mas entre sem o burro. Tarde de mais. O asno já se instalara no abrigo e recusava o uso da força para voltar a transpor a porta. O bicho empancara, cheio de testa, todo o corpo teso. João Loucomotiva desistiu de empurrar o animal. O padre acabou aceitando a desordem natural das coisas. O asno escoiceou no chão e o som do casco ressoou pelo recinto. Era a proclamação da sua tomada de posse.
Mas que raio de burro é esse? O bicho é seu?
Esse burro vinha no barco.
Mas que barco?
Já falo tudo, senhor padre.
Então fale, homem de Deus!
Eu venho porque me mandaram chamar o senhor.
Mandaram-me chamar?
Por causa do desastre.
O padre pensou em silêncio: pronto, lá me vem ele com o devaneio do desastre. Fazia parte do delírio de João escutar comboios descarrilando nos pântanos, despenhando-se das pontes e dissolvendo-se no escuro dos túneis. Nunes pediu a Deus que o abastecesse de paciência e abrigasse aquela descarrilada criatura como se a igreja fosse a estação de caminhos-de-ferro que o desvairado há tanto procurava. Abriu os braços em direcção a Loucomotiva e pensou: sou um espantalho, tão pobre e falhado que, em vez de afastar, acabo atraindo a passarada. E este que acabou de entrar é um pássaro, tão pássaro quanto os verdadeiros, de pena e asa.
Não foi o comboio, senhor padre. Foi o barco, o barco que se afundou.
O barco afundou? Quanda?
Esta madrugada. Este burro vinha no barco, foi o único que se salvou.
A primeira coisa que o padre fez foi ajoelhar-se e benzer-se. O silêncio que se impôs enquanto ele rezava parecia ser respeitado até pelo burro que, olhos cheios, contemplava, imóvel, o português. E assim se ficou, tudo em divino silêncio até que o padre se ergueu e abriu as portadas. Parara de chover e uma estranha quietude pairava sobre a encosta. Foi então que se escutaram os lamentos, gritos e prantos vindos do rio. As mulheres hasteavam a sua tristeza, sinal que a morte já procedia à sua colheita. Dulcineusa soltou as flores e saiu correndo. O padre seguiu a Avó, repuxando a batina para andar mais célere. João Loucomotiva retirou-se, sem pressa, cuidando de confirmar se, entretanto, o quadrúpede não abandonava o templo.
No rio ainda havia buscas mas não restava esperança de encontrar sobreviventes. A tragédia acontecera nas primeiras horas da manhã. Os corpos se afundaram para sempre na corrente. O casco do barco, meio tombado, ainda flutuava. Sobre o fundo enferrujado, podia ler-se o nome da embarcação pintado a letras verdes: Vasco da Gama. Fazia ligação com a cidade e, como sempre, ia sobrecarregado de gente e mercadoria. A ambição dos novos propietários, todos reconheciam a meia voz, estava na origem do acidente. Sabia-se o nome dos culpados mas, ao contrário das letras verdes no casco, a identidade dessa gente permaneceria oculta por baixo do medo.
Agora se entendia a súbita alteração dos elementos, nas primeiras horas da manhã. Quando o barco foi engolido pelas águas, o céu da Ilha se transtornou. Um golpe roubou a luz e as nuvens se adensaram.
Um vento súbito se levantou e rondou pelo casario. Na torre da igreja o sino começou a soar sem que ninguém lhe tivesse tocado. As árvores todas se agitaram e, de repente, num só movimento, seus troncos rodaram e se viraram para o poente. Os deuses estavam rabiscando mágoas no fundo azul dos céus. Os habitantes se apercebiam que o que se passava não era apenas um acidente fluvial. Era muito mais que isso.
À medida que tomava conta da tragédia, o padre ia perdendo o esclarecimento, mais apalermado que o próprio João Loucomotiva. Retirou os óculos e atirou-os para o capim. Dulcineusa foi no seu encalço para lhe entregar o que ele havia deixado cair. Mas o religioso fez questão em negar. Preferia deixar de ver.
E assim, pitosguiando aos tropeções, o sacerdote começou a deambular sem destino, parecendo que, para ele, qualquer direcção lhe servia. Dulcineusa seguia-o à distância, pesarosa por estar a assistir ao desintegrar do espírito do seu guia religioso. Rezava baixinho para que fosse coisa passageira mas o padre não dava mostras de recuperar. Perto dos pântanos, por fim, ele se deteve frente à casa do feiticeiro Muana wa Nweti. Após uma hesitação entrou na obscuridade da palhota. Pediu ao feiticeiro: – Atire os búzios, Muana wa Nweti.
O adivinho, intrigado, levantou os olhos. O padre insistiu, encorajando: ele que atirasse os búzios que ele queria saber do seu destino, agora que os anjos o tinham deixado tombar, sem amparo, no vazio da incerteza.
Deixe os búzios falarem.
Dulcineusa, por respeito, se retirou. Nunca chegou a saber que vaticínios o adivinho tinha detectado no futuro do português. Mas isso não a incomodava tanto quanto o clérigo ter aceitado sentar-se no pátio do adivinhão. A que ponto estava desorientado para sujeitar-se àquilo que sempre condenara? Quando o padre saiu da consulta ela, de novo, o foi seguindo enquanto insistia com doçura: – Padre, os seus óculos.
Nunes regressou à igreja e preparava-se para lá se fechar quando se virou para Dulcineusa e balbuciou qualquer coisa que ela não entendeu. A Avóaproveitou para sanar a curiosidade que lhe fervilhava por dentro: – Esse feiticeiro disse o quê, senhor padre? Nunes fitou-a com um ar tão embriagado que, por um momento, a velha Dulcineusa acreditou que Muana wa Nweti lhe tinha feito beber algo. Após uns segundos, o sacerdote falou: – Esse burro, Dona Dulcineusa. Prometa-me que vai tratar dele.
Tratar dele? Nunca a Avó se esclareceu sobre os tratamentos a aplicar na besta. Nunes se enclausurou em estranho alheamento. Passaram-se dias sem que se rezasse missa em Luar-do-Chão. O sacerdote saía manhãcedo e só à noite regressava. O único fiel ocupante da igreja era o burro. O bicho, com sua silenciosa sapiência, nunca mais se iria retirar da igreja, mais praticante que um beato.
Durante esse tempo, o padre rezava sozinho na margem do Madzimi. A Avó passou a servir de uma espécie de sacristão de campanha. Para ali conduzia as flores de plástico e as espetava em redor da rocha onde o padre agora se ajoelhava.
Certa vez, quem compareceu nesse descampado foi Fulano Malta. Dulcineusa muito se admirou. O que faria ali esse seu arrevesado filho? Fulano se apresentou e disse que vinha conversar.
Confessar? – perguntou o padre.
Confessar, podia ser, aceitou Fulano. Mas não conversou, nem confessou. Ficou calado, fazendo coro com o silêncio de Nunes. Sentados, os dois contemplaram o rio como se escutassem coisas só deles. Até que, por fim, meu pai decidiu falar: – Quem tinha razão era Mariavilhosa.
Razão de quê?
Precisamos plantar um embondeiro.
Um embondeiro onde?
No rio, padre. No fundo do rio. Se quisermos recuperar os náufragos temos que estancar a corrente.
Dulcineusa, atenta, aguardou a resposta do sacerdote. Queria confirmar se não estariam os dois loucos, afectados pelo acontecer e desacontecer em nossa Ilha. O padre nada respondeu. Ele sabia o que Fulano estava referindo. Nunes conhecia a sua história e de sua mulher Mariavilhosa. Sabia como o destino de ambos estava ligado ao rio Madzimi.
O padre ainda se recordava de como, há uma trintena de anos, tudo começara entre os dois apaixonados. Numa longínqua tarde, o ainda jovem Fulano se juntara à multidão para assistir à chegada do Vasco da Gama. Entre os marinheiros ele notou a presença de um homem belo, de olhos profundos. Fulano se prendeu nesses olhos. Estranhou aquele apego às feições de alguém tão macho quanto ele. Não era tanto os olhos mas o olhar que o outro lhe dedicou, furtivo e, contudo, cheio de intenção. Fulano se interrogou, amargurado perante aquela atracção. Estaria doente, seria doente? Contrariando os seus hábitos, Fulano Malta até se chegou a confessar. Nunes escutou em silêncio a admissão daquela paixão proibida. Meu pai estava obcecado: aquilo não podia estar sucedendo com ele.
Padre, eu sou normal? De nada valeram as palavras tranquilizadoras do padre. A angústia, em meu pai, crescia com a irreprimível paixão. Certa vez, seguiu esse marinheiro e lhe pediu explicação de alguma nenhuma coisa. Apenas pretexto para tenção e intenção. O marinheiro respondeu evasivamente, e solicitou que nunca mais lhe fosse dirigi da palavra. Que ele era um fugitivo da outra margem, escapadiço de perseguições políticas. Lhe custava até falar. O rigor daquele serviço no barco agravara a fraqueza que a prisão lhe trouxera. Daí a sua aparência frágil, seus modos escassos.
Meu pai ficou de pé retaguardado. O estranho, com aquela desculpa, se rodeava de acrescido mistério. Fulano ainda mais preso ficou. O barco chegava, e ele ficava contemplando as manobras de atracagem. E se concentrava, embevencido, nos gestos dolentes e frágeis do marinheiro. Uma noite escura, ele seguiu o embarcadiço enquanto este enveredava por trilhos escuros. Foi dar a casa do Amílcar Mascarenha. O médico veio à porta, policiou os olhos pela rua e fez com que o marinheiro entrasse.
Fulano se emboscou, peneirando na penumbra. Dali podia testemunhar o que se passava no interior. O médico mandou o embarcadiço tirar o casaco de ganga. Notou-se, então, que uma ligadura lhe apertava o peito. Deveria ser ferimento extenso, tal era a dimensão da ligadura. Quando o pano, enfim, se desenrolou, o espanto não coube em Fulano Malta, pois se tornaram visíveis dois robustos seios. O marinheiro, o enigmático marinheiro era, afinal, uma mulher! Fulano Malta respirou fundo, tão fundo que não notou que irrompia pela casa de Mascarenha e surpreendia a bela mulher meia despida. A moça nem se tentou proteger. Rodou em volta da mesa, olhos nos olhos de Fulano, enfrentando-o como se uma alma nova lhe viesse. Depois, cobriu-se com uma capulana e saiu. Fulano Malta sentou-se, abalado por aquela descoberta.
O médico então lhe contou toda a história: aquela moça era Mariavilhosa. Vivia mais a montante, num recanto do rio que poucos visitavam. Há uns meses, a desgraça tinha vindo ao seu encontro: fora violada e engravidara. Para abortar, no segredo, Mariavilhosa fizera uso da raiz da palmeira Lala. Espetara-a no útero, tão fundo quanto fora capaz. Mascarenha encontrara-a num estado deplorável: as entranhas infectadas, sangue apodrecendo no ventre. Ele fez o que era possível. Mas a moça deveria prosseguir um tratamento continuado que só podia ser administrado na capital. Ora, naquele tempo, os negros estavam proibidos de viajar no barco. O Vasco da Gama era só para os brancos. Mariavilhosa o que fez? Disfarçou-se de tripulante. Os marinheiros eram os únicos negros autorizados a embarcar. Ela seria um deles, puxando corda, empurrando manivelas. Fulano se encontrara com esse marinheiro de água doce e o seu coração detectara, para além do disfarce, a mulher da sua vida.
A história teria aqui um fim não fossem as marcas que ficaram em Mariavilhosa. O ventre dessa mulher adoecera para sempre. E não havia cura de que a medicina fosse capaz. Das costuras e cicatrizes escorreria sangue sempre que na ilha nascesse uma criança.
Mariavilhosa tivera-me a mim, no meio de frustradas tentativas. Uma angústia, porém, permanecia como âncora, amarrando para sempre a capacidade de ser feliz. E isso me torturava. Me parecia que eu era um insuficiente filho, que não havia bastado como realização materna. Ainda hoje essa irresolúvel melancolia de Mariavilhosa me deixava abatido. Agora que minha Avó se recorda de tudo isto eu aproveito para tirar o assunto a limpo: – É verdade que minha mãe morreu afogada? Afogada era um modo de dizer. Ela suicidara-se, então? A Avó escolhe cuidadosamente as palavras. Não seria suicídio, também. O que ela fez, uma certa tarde, foi desatar a entrar pelo rio até desaparecer, engolida pela corrente. Morrera? Duvidava-se. Talvez se tivesse transformado nesses espíritos da água que, anos depois, reaparecem com poderes sobre os viventes. Até porque houve quem testemunhasse que, naquela derradeira tarde, à medida que ia submergindo, Mariavilhosa se ia convertendo em água. Quando entrou no rio seu corpo já era água. E nada mais senão água. Meu pai ainda se lançou no Madzimi a procurar a sua amada. Mergulhava e nadava para trás e para a frente como um golfinho enlouquecido. Mas sucedia algo extraordinário: assim que ele entrava na água perdia o sentido da visão. Nadava ao acaso, embatendo nos troncos e encalhando nas margens. Até que o fizeram desistir e aceitar a triste irrealidade.
Afinal, o Avô Mariano não estreava as dificuldades da nossa família com as cerimónias fúnebres. Quando se procedeu ao funeral de minha mãe também não havia corpo. Acabaram enterrando um vaso com água do rio.
Água é o que ela era, meu neto. Sua mãe é o rio, está correndo por a_ nessas ondas.
Para encontrar seu original formato seria preciso estancar as águas, plantando embondeiros no leito fundo. E para esse serviço só com ajuda das mãos dos deuses. Assim se dizia em Luar-do-Chão.
O suspiro de Dulcineusa é como um ponto de final no longo relato. Ela esfrega os dedos uns nos outros como se mostrasse que acabara de folhear uma última página. Olha-me bem nos olhos e sorri: – Já viu? Tudo isso a propósito de um burro.
E o pai sabe de toda esta história?
O que Fulano nunca soube foi quem violou Mariavilhosa.
E quem foi?
Não lhe posso dizer.
Diga-me, Avó, eu preciso saber.
Dulcineusa hesita. Recorro ao infalível estratagema de lhe pegar nas mãos e acariciar os dedos. – Precisa mesmo de saber, meu neto? – Eu sou aquele que vai continuar-vos, Avó.
Preciso saber tudo.
Foi Frederico Lopes, esse seu padrinho que o recebeu na cidade.
Lopes? Esse homem tão cristão, tão marido, tão metido com as mulheres da sua raça? Deveria ser engano. A julgar pelo seu comportamento público ninguém poderia crer nessa culpa. Mas era certo. E sabido pelo Padre Nunes. No momento, algo se iluminou dentro de mim: a foto de minha mãe na cabeceira de Conceição Lopes! A portuguesa sabia do que acontecera entre o marido e Mariavilhosa. E castigava Frederico com a imposição da presença, mesmo junto ao leito conjugal, do rosto de minha mãe.
O Padre Nunes estava a par de tudo e não se perdoava a si mesmo absolver e reabsolver esse Lopes nas confissões de domingo. Como, entretanto, foi absolvendo outras mais novas excelências cheias de poses e posses mas de mãos sujas de crimes. Talvez fossem esses os cansaços que ele referira. A Avó remira os dedos dela entrelaçados nos meus e vai falando pausadamente: – É por isso que estou tratando desse jumento trazido pelas águas.
Não entendo a ligação, Avó.
Esse burro não é só um bicho.
Ora, avó, o burro é um burro.
Vou-lhe dizer, meu neto: em Luar-do-Chão precisamos de um anjo muito mas muito puro. Mas o anjo que aqui permanecesse perderia, no instante, toda a pureza. Talvez você, Marianito...
Talvez eu o quê?
Talvez você seja esse anjo.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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