quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A última visita do cavaleiro enfermo

Convém distinguir

Por que comparas teu mandado interior com um sonho? Ele te parece, por acaso, absurdo, incoerente, inevitável, irrepetível, origem de alegrias ou terrores infundados, incomunicável em sua totalidade, porém ansioso de ser comunicado, como são precisamente os sonhos?
Franz Kafka,
Quarto caderno in oitavo

A última visita do cavaleiro enfermo

Todos o chamavam de Cavaleiro Negro, porém ninguém jamais soube seu verdadeiro nome. Depois de seu inopinado desaparecimento, dele não restou nada mais do que a lembrança de seus sorrisos e um retrato pintado por Sebastiano del Piombo que o representava envolvido em uma peliça e com uma das mãos enluvada pendendo suavemente como se estivesse adormecido. Alguns dos que mais ò estimaram (e eu, um dos poucos entre eles) recordam sua cútis amarelo pálido, transparente, a leveza quase feminina de seus passos e a habitual languidez dos olhos.
Na verdade, era um semeador de assombros. Sua presença dava um calor fantástico às coisas mais simples; quando sua mão tocava algum objeto, parecia que este entrava no mundo dos sonhos...
Ninguém lhe perguntou qual era o seu mal e porque não se cuidava.
Caminhava sempre, sem parar, dia e noite. Ninguém soube jamais onde era sua casa ou conheceu seus pais e seus irmãos. Apareceu um dia na cidade, e passados alguns anos, em outro dia, desapareceu.
Na véspera, quando o céu começava a iluminar-se, veio ao meu quarto despertar-me. Senti a carícia de sua luva em minha fronte, e o vi, com seu sorriso que mais parecia a lembrança de um sorriso, tendo os olhos mais distraídos do que de costume. Compreendi que havia passado a noite em claro, aguardando com ansiedade o amanhecer: tremiam-lhe as mãos e todo seu corpo parecia tomado pela febre.
Perguntei a ele se sua doença o fazia sofrer mais do que nos outros dias.
Crês então, como todos os outros, que eu tenho uma enfermidade? Por que não dizer que eu sou uma enfermidade? Nada me pertence, porém eu sou de alguém e há alguém a quem pertenço.
Acostumado as suas estranhas digressões, nada disse. Acercou-se de minha cama e tocou-me outra vez a fronte com sua luva.
Não tens o menor sinal de febre e estás perfeitamente são e tranquilo. Talvez isto te espante, mas posso dizer quem sou. E talvez não possa voltar a repeti-lo.
Deixou-se cair em uma poltrona e prosseguiu em voz mais alta: — Não sou um homem real, com ossos e músculos, gerado por homens. Não sou mais do que a figura de um sonho. Há uma imagem de Shakespeare que é, com referência a mim, literal e tragicamente exata: Sou feito da mesma matéria de que são feitos os sonhos! Existo porque há alguém que me sonha; há alguém que dorme e sonha e me vê agir e viver e mover-me, e neste momento sonha que eu digo tudo isto.
Quando começou a sonhar-me, comecei a existir: hoje sou hóspede de suas grandes fantasias noturnas, tão intensas que me tornaram visível àqueles que estão acordados. O mundo da vigília, porém, não é o meu.
Minha verdadeira vida é a que transcorre na alma do meu adormecido criador. Não recorro a enigmas nem a símbolos; o que digo é verdade.
Ser ator de um sonho não é o que mais me atormenta. Há poetas que disseram que a vida dos homens é a sombra de um sonho e há filósofos que sugeriram que a realidade é uma alucinação. Porém, quem é aquele que me sonha? Quem é este ser que me fez surgir e que ao despertar me apagará? Quantas vezes penso nesse meu dono que dorme!... A pergunta me agita desde que descobri de que estou feito.
Compreenderás a importância que este problema tem para mim.
As personagens dos sonhos desfrutam de bastante liberdade; tenho também os meus caprichos. A princípio, me aterrorizava a ideia de despertá-lo, quer dizer, de aniquilar-me. Levei uma vida virtuosa. Até que me cansei da humilhante qualidade de espetáculo e desejei ardentemente o que antes temia: despertá-lo. E não deixei de cometer delitos. Porém aquele que me sonha, não se espantará com o que faz tremer os demais homens? Regozija-se com as visões terríveis, ou não lhes dá importância? Nesta monótona ficção, digo ao meu sonhador que sou um sonho: quero que ele sonhe que está sonhando. Não existem homens que acordam quando se dão conta de que estão sonhando?
Quando, quando conseguirei isso?
O Cavaleiro Enfermo colocava e tirava a luva da mão esquerda; não sei se esperava que, de um momento para outro, algo de atroz acontecesse.
Acreditas que eu esteja mentindo? Por que eu não posso desaparecer? Console-me; diga algo, tenha piedade deste aborrecido espectro.
Não atinei dizer coisa alguma. Deu-me sua mão, parecendo-se mais alto do que antes, e sua pele era diáfana. Disse algo em voz baixa, saiu do meu quarto, e desde então somente uma pessoa pode vê-lo.

Giovanni Papini, O trágico cotidiano (1906)

Jorge Luís Borges, in Livro de Sonhos

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