Convém
distinguir
Por
que comparas teu mandado interior com um sonho? Ele te parece, por
acaso, absurdo, incoerente, inevitável, irrepetível, origem de
alegrias ou terrores infundados, incomunicável em sua totalidade,
porém ansioso de ser comunicado, como são precisamente os sonhos?
Franz
Kafka,
Quarto
caderno in oitavo
A
última visita do cavaleiro enfermo
Todos
o chamavam de Cavaleiro Negro, porém ninguém jamais soube seu
verdadeiro nome. Depois de seu inopinado desaparecimento, dele não
restou nada mais do que a lembrança de seus sorrisos e um retrato
pintado por Sebastiano del Piombo que o representava envolvido em uma
peliça e com uma das mãos enluvada pendendo suavemente como se
estivesse adormecido. Alguns dos que mais ò estimaram (e eu, um dos
poucos entre eles) recordam sua cútis amarelo pálido, transparente,
a leveza quase feminina de seus passos e a habitual languidez dos
olhos.
Na
verdade, era um semeador de assombros. Sua presença dava um calor
fantástico às coisas mais simples; quando sua mão tocava algum
objeto, parecia que este entrava no mundo dos sonhos...
Ninguém
lhe perguntou qual era o seu mal e porque não se cuidava.
Caminhava
sempre, sem parar, dia e noite. Ninguém soube jamais onde era sua
casa ou conheceu seus pais e seus irmãos. Apareceu um dia na cidade,
e passados alguns anos, em outro dia, desapareceu.
Na
véspera, quando o céu começava a iluminar-se, veio ao meu quarto
despertar-me. Senti a carícia de sua luva em minha fronte, e o vi,
com seu sorriso que mais parecia a lembrança de um sorriso, tendo os
olhos mais distraídos do que de costume. Compreendi que havia
passado a noite em claro, aguardando com ansiedade o amanhecer:
tremiam-lhe as mãos e todo seu corpo parecia tomado pela febre.
Perguntei
a ele se sua doença o fazia sofrer mais do que nos outros dias.
— Crês
então, como todos os outros, que eu tenho uma enfermidade? Por que
não dizer que eu sou uma enfermidade? Nada me pertence, porém eu
sou de alguém e há alguém a quem pertenço.
Acostumado
as suas estranhas digressões, nada disse. Acercou-se de minha cama e
tocou-me outra vez a fronte com sua luva.
— Não
tens o menor sinal de febre e estás perfeitamente são e tranquilo.
Talvez isto te espante, mas posso dizer quem sou. E talvez não possa
voltar a repeti-lo.
Deixou-se
cair em uma poltrona e prosseguiu em voz mais alta: — Não sou um
homem real, com ossos e músculos, gerado por homens. Não sou mais
do que a figura de um sonho. Há uma imagem de Shakespeare que é,
com referência a mim, literal e tragicamente exata: Sou feito da
mesma matéria de que são feitos os sonhos! Existo porque há alguém
que me sonha; há alguém que dorme e sonha e me vê agir e viver e
mover-me, e neste momento sonha que eu digo tudo isto.
Quando
começou a sonhar-me, comecei a existir: hoje sou hóspede de suas
grandes fantasias noturnas, tão intensas que me tornaram visível
àqueles que estão acordados. O mundo da vigília, porém, não é o
meu.
Minha
verdadeira vida é a que transcorre na alma do meu adormecido
criador. Não recorro a enigmas nem a símbolos; o que digo é
verdade.
Ser
ator de um sonho não é o que mais me atormenta. Há poetas que
disseram que a vida dos homens é a sombra de um sonho e há
filósofos que sugeriram que a realidade é uma alucinação. Porém,
quem é aquele que me sonha? Quem é este ser que me fez surgir e que
ao despertar me apagará? Quantas vezes penso nesse meu dono que
dorme!... A pergunta me agita desde que descobri de que estou feito.
Compreenderás
a importância que este problema tem para mim.
As
personagens dos sonhos desfrutam de bastante liberdade; tenho também
os meus caprichos. A princípio, me aterrorizava a ideia de
despertá-lo, quer dizer, de aniquilar-me. Levei uma vida virtuosa.
Até que me cansei da humilhante qualidade de espetáculo e desejei
ardentemente o que antes temia: despertá-lo. E não deixei de
cometer delitos. Porém aquele que me sonha, não se espantará com o
que faz tremer os demais homens? Regozija-se com as visões
terríveis, ou não lhes dá importância? Nesta monótona ficção,
digo ao meu sonhador que sou um sonho: quero que ele sonhe que está
sonhando. Não existem homens que acordam quando se dão conta de que
estão sonhando?
Quando,
quando conseguirei isso?
O
Cavaleiro Enfermo colocava e tirava a luva da mão esquerda; não sei
se esperava que, de um momento para outro, algo de atroz acontecesse.
— Acreditas
que eu esteja mentindo? Por que eu não posso desaparecer?
Console-me; diga algo, tenha piedade deste aborrecido espectro.
Não
atinei dizer coisa alguma. Deu-me sua mão, parecendo-se mais alto do
que antes, e sua pele era diáfana. Disse algo em voz baixa, saiu do
meu quarto, e desde então somente uma pessoa pode vê-lo.
Giovanni
Papini, O trágico cotidiano (1906)
Jorge Luís Borges, in Livro de Sonhos
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