A boa de segunda

Dois homens se vestindo, cada um em seu quarto, falando ao telefone. O clima é adolescente, como se estivessem indo pra balada.

SALDANHA Senador Silveira?
SILVEIRA Fala, Saldanha!
SALDANHA Vai chegar lá na votação lá do negócio da emenda?
SILVEIRA Nossa, ia te ligar agora pra perguntar isso!
Os dois riem.
SALDANHA Tô muito na dúvida.
SILVEIRA Tá marcado pra que horas?
SALDANHA Umas nove, mas aquela coisa, né? Só começa a bombar lá pelas onze.
SILVEIRA Mas a questão é: o pessoal vai? A última votação que eu fui tava megamicada. Não tinha ninguém que eu conheço.
SALDANHA Nem fala! Foi o uó. Eu estreei uma gravata nova e não tinha nem CQC.
SILVEIRA Nossa, odeio quando isso acontece! Não comprei uma gravata italiana pra gastar na TV Senado!
Os dois riem.
SILVEIRA Você ligou pro pessoal?
SALDANHA O Zezinho do Sindicato tá em Trancoso. O Josuelton tá em Ibiza. O Pastor Tobias disse que só vai se o Carlinhos for. O Carlinhos falou que só vai se eu for. Mas eu só vou se você for, pra gente sentar no fundão e tocar a zoeira.
SILVEIRA E se a gente mandasse o suplente?
SALDANHA O meu tá cassado.
SILVEIRA A gente pode dar uma passadinha. Se tiver ruim a gente vaza.
SALDANHA Pode ser uma boa. A gente passa, dá uma olhadinha e faz uma social pra marcar presença.
SILVEIRA Combinado, então. Ah, essa votação é sobre o quê?
SALDANHA É uma emenda parlamentar de orçamento impositivo.
SILVEIRA Sério?
SALDANHA Claro que não, porra! Tu acha que eu vou saber que porra de votação que vão tá votando, ô caralho?
Os dois riem.
SILVEIRA A gente se vê lá, filho da puta. E vai perfumado que depois tem puteiro.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

O dia surge da água

O chafariz da Aurora
faz nascer o sol.
A água é toda ouro
desse nome louro.
O chafariz da Aurora,
na iridescência trêmula,
bem mais que um tesouro,
é prisma sonoro,
campainha abafada
em tliz cliz de espuma,
aérea pancada
súbita
na pedra lisa,
frígida espadana,
tece musicalmente
a áurea nívea rósea
vestimenta do dia líquido.
Deixa fluir a aurora,
sendo um tão pobre
chafariz do povo.

Carlos Drummond de Andrade, in Boitempo – Esquecer para lembrar 

Capítulo 27 | Virgília?

Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois...? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; e era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, sala das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, – devoção, ou talvez medo; creio que medo.
Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz, – tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto.
Mas, dirás tu, se você não guardou na retina da memória a imagem do que fui, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?
Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer o Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

A carta de Camus ao seu Mestre

A carta escrita por Albert Camus para seu professor primário, Louis Germain, logo depois de ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura, em 1957.
Logo após receber, em 1957, o Prêmio Nobel de Literatura, Albert Camus escreve uma breve carta a Monsieur Germain, seu professor numa escola pública de um bairro operário de Argel. Nela o já consagrado escritor e filósofo franco-argelino expõe sua gratidão àquele que havia sido responsável por uma profunda transformação em sua vida: Acaba de me ser feita uma grande honra que não busquei nem solicitei, escreve Camus a seu antigo mestre. Quando soube da novidade, meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para você. Sem você, sem essa mão afetuosa que você estendeu ao menino pobre que eu era, sem seu ensino, sem seu exemplo, nada disso teria acontecido.
A infância pobre de Camus, as vidas dos operários e das crianças do bairro de Belcourt povoam seus escritos literários e marcam seu pensamento político e filosófico. Mas é em uma obra inacabada – O primeiro homem – que Camus nos apresenta esse extraordinário personagem que marcou sua existência e que até o final de sua vida a ele se dirigia afetuosamente como meu querido menino ou simplesmente meu pequeno Camus. No romance, achado entre os escombros do acidente de automóvel que tirou sua vida, seu mestre Louis Germain se transforma em M. Bernard, um professor cujas aulas eram sempre interessantes pela simples razão de que ele era apaixonado pelo seu trabalho.
O professor que emerge das imagens e lembranças de Camus nos comove menos pela eficácia de seus esforços do que pela dignidade de sua luta; menos pela riqueza de seus recursos pedagógicos do que pela clareza de seus compromissos educativos. Para M. Germain ser professor era mais do que uma maneira de ganhar a vida. Era uma forma de dar sentido à existência.
A gratidão de Albert Camus ao professor que marcou sua existência.

***

19 de novembro de 1957

Caro Monsieur Germain,

Deixei que passasse um pouco o movimento que me envolveu todos esses dias antes de vir-lhe falar-lhe de coração aberto. Acaba de me ser feita uma grande honra que não busquei, nem solicitei. Mas quando eu soube da novidade, meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para você. Sem você, sem essa mão afetuosa que você estendeu ao menino pobre que eu era, sem seu ensino, sem seu exemplo, nada disso teria acontecido. Eu não faço questão dessa espécie de honra. Mas essa é ao menos uma ocasião para dizer-lhe o que você foi e é sempre para mim, e para assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso que você coloca em tudo que faz, sempre de maneira viva com relação a um de seus pequenos discípulos que, não obstante a idade, não cessou jamais de ser seu aluno reconhecido. Eu o abraço com todas as minhas forças.

Albert Camus

***

Carta no original em francês

Lettre qu’Albert Camus envoya à son instituteur au lendemain de son prix Nobel


19 novembre 1957

Cher Monsieur Germain,

J’ai laissé s’éteindre un peu le bruit qui m’a entouré tous ces jours-ci avant de venir vous parler de tout mon cœur. On vient de me faire un bien trop grand honneur, que je n’ai ni recherché ni sollicité. Mais quand j’en ai appris la nouvelle, ma première pensée, après ma mère, a été pour vous. Sans vous, sans cette main affectueuse que vous avez tendue au petit enfant pauvre que j’étais, sans votre enseignement, et votre exemple, rien de tout cela ne serait arrivé. Je ne me fais pas un monde de cette sorte d’honneur. Mais celui-là est du moins une occasion pour vous dire ce que vous avez été, et êtes toujours pour moi, et pour vous assurer que vos efforts, votre travail et le cœur généreux que vous y mettiez sont toujours vivants chez un de vos petits écoliers qui, malgré l’âge, n’a pas cessé d’être votre reconnaissant élève. Je vous embrasse de toutes mes forces.

Albert Camus

Carta publicada em O primeiro homem, de Albert Camus [tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira]. Fonte: Revista Prosa Verso e Arte

O arquivo

Desenho de Victor Giudice

No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.
João era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor. Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição. Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento. Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora João acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou. Prosseguiu a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu. João preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.
Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal. Respirou descompassado.
Seu João. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.
João baixou a cabeça em sinal de modéstia.
Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.
O coração parava.
Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.
A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, João gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.
Nesta noite, João não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.
Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo. O corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:
Seu João. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:
Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.
O chefe não compreendeu:
Mas seu João, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
João afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento. João transformou-se num arquivo de metal.

Victor Giudice, in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século

Marinheiro na rua

Era um marinheiro, um pequeno marinheiro com sua blusa de gola e seu gorro, na rua deserta que a madrugada já fazia lívida. Talvez não fosse tão pequeno, a solidão da rua é o que fazia menor entre os altos edifícios.
Aproximou-se de uma grande porta e bateu com os nós dos dedos. Ninguém abriu. Depois de uma pausa, voltou a bater. Eu o olhava de longe e do alto, do fundo de uma janela escura, e ainda que voltasse a vista para mim ele não poderia me ver. Esperei que a grande porta se abrisse e ele entrasse; ele também esperava, imóvel. Quando bateu novamente, foi com um punho cerrado; depois com os dois — e com tanta força que o som chegava até mim. Chegava uma fração de segundo depois de seu gesto; assim na minha infância eu via as lavadeiras baterem roupa nas pedras do outro lado do rio, e só um instante depois ouvia o ruído.
Essa recordação da infância me fez subitamente suspeitar que ô marinheiro fosse meu filho, e essa ideia me deu um pequeno choque. Se fosse meu filho eu não poderia estar ali, no escuro, assistindo impassível àquela cena. Eu deveria me reunir a ele, e bater também à grande porta; ou telefonar para que alguém lá dentro abrisse, ou chamar outras pessoas — a imprensa, deputados da oposição, bombeiros, o Pronto-Socorro, que sei eu.
Fosse o que fosse que houvesse lá dentro, princesa adormecida ou um animal ganindo em agonia, seria urgente abrir. Caso necessário eu telefonaria para o Presidente da República e para o Cardeal e faria divulgar um apelo pelo rádio: quem dispusesse de um aríete deveria trazê-lo imediatamente, e estou seguro de que os atletas do Flamengo não se negariam a cooperar; aliás eu aceitaria a ajuda de homens de bem de outros clubes, notadamente do Botafogo, pois naquele momento não deveria haver distinção entre brasileiros.
Essas ideias risíveis me passaram pela cabeça com uma grande rapidez, pois quase imediatamente depois de pensar que o marinheiro poderia ser meu filho, me veio a suspeita de que era eu mesmo; talvez lá dentro, no bojo do imenso prédio, estivesse estirada numa rede, meio inconsciente, minha impassível amada, talvez doente, talvez sonhando um sonho triste, e eu precisaria estar a seu lado, segurar sua mão, dizer uma palavra de tão profunda ternura que a fizesse sorrir e a pudesse salvar.
Cansado de bater inutilmente, o marinheiro recuou vários passos e ergueu os olhos para a porta e para a fachada do edifício, como alguém que encara outra pessoa pedindo explicações. Ficou ali, perplexo e patético, e assim olhando para o alto, me parecia ainda menor sob seu gorro, onde deveria estar escrito o nome de um desconhecido navio. Olhava. A fachada negra permaneceu imóvel perante seu olhar, fechada, indiferente. Caía uma chuva fina, na antemanhã filtrava-se uma débil luz pálida.
Vai-te embora, marinheiro! Onde estão teus amigos, teus companheiros? Talvez do outro lado da cidade, bebendo vinho grosso em ambiente de luz amarela, entre mulheres ruivas, cantando... Vai-te embora, marinheiro! Teu navio está longe, de luzes acesas, arfando ao embalo da maré; teu navio te espera, pequeno marinheiro...
Quando ele seguiu lentamente pela calçada, fiquei a olhá-lo de minha janela escura, até perdê-lo de vista. A rua sem ele ficou tão vazia que de súbito me veio a impressão de que todos os habitantes haviam abandonado a cidade e eu ficara sozinho, numa absurda e desconhecida sala de escritório do centro, sem luz, sem saber por que estava ali, nem o que fazer.
Sentia, entretanto, que estava prestes a acontecer alguma coisa.
Olhei a fachada escura do prédio em que ele tentara entrar. Olhei...
Então lá dentro todas as luzes se acenderam, e o edifício ficou maior que todos na rua escura; sua fachada oscilou um pouco; alguma coisa rangeu, houve rumores vagos, e o prédio começou a se mover pesadamente como um grande navio negro — e, lentamente, partiu.
Mas suas luzes estavam acesas; e eu senti confusamente que, estirada em sua rede, minha triste amada receberia bem cedo a brisa do mar, e despertaria, e se sentiria feliz em viajar para muito, muito longe, feliz, sem pensar em mim, sem precisar de mim.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

Baltazar Garzón

Dia 12 de dezembro de 2008

O juiz Baltasar Garzón deixou em Lisboa uma lição do que é ou deve ser o Direito. A verdade é que, em sentido estrito, do que se falou no acto organizado pela Fundação foi de Justiça. E de sentido comum: dos delitos que não podem ficar impunes, das vítimas a quem tem de ser dada satisfação, dos tribunais que têm de levantar alcatifas para ver o que há por baixo do horror. Porque muitas vezes, por baixo do horror, há interesses económicos, delitos claramente identificados perpetrados por pessoas e grupos concretos que não podem ser ignorados em Estados que se proclamam de direito. Quem sabe se os responsáveis dos crimes contra a humanidade, que de outra forma não posso chamar a esta crise financeira e económica internacional, não acabarão processados, como o foram Pinochet ou Videla ou outros ditadores terríveis que tanta dor espalharam? Quem sabe?
O juiz Baltasar Garzón fez-nos compreender a importância de não cair na vileza uma vez para não ficar para sempre vil. Quem conculca uma vez os direitos humanos, em Guantánamo, por exemplo, atira pela borda fora anos de direito e de legalidade. Não se pode ser cúmplice do caos internacional com que a administração Bush infectou meio mundo. Nem os governos, nem os cidadãos.
Um auditório multitudinário e atento seguiu as intervenções do juiz com respeito e consideração. E aplaudiu como quem ouve não verdades reveladas, mas sim a voz efectiva de que o mundo necessita para não cair na permissividade da abjecção.
A Fundação está contente: fizemos o que pudemos para recordar que há uma Declaração de Direitos Humanos, que estes não são respeitados e que os cidadãos têm de exigir que não se tornem em letra morta. Baltasar Garzón cumpriu a sua parte e tê-lo posto a claro esta tarde em Lisboa só pode fazer com que nos felicitemos.

José Saramago, in O caderno

Laurita

A Laurita é uma mulher amarga e filosófica, e tem suas razões. Ele chamava-se Candiota e, semanas antes do casamento marcado, disse para Laurita que iria abandoná-la.
É outra? — perguntou Laurita, soerguendo-se na cama. (Nota pessoal do autor: sempre gostei muito de “soerguer-se”, mas tive poucas chances de usá-lo. Agradeço a oportunidade. Um abraço nos meus familiares. Segue a história.)
Não — respondeu Candiota —, é Outro.
Como não percebeu o O maiúsculo, Laurita pensou que o Candiota, logo o Candiota, um homem tão reto, fosse homossexual. Mas Candiota apressou-se a corrigir o engano. O Outro era o Senhor.
Fui chamado pelo Senhor.
Deus o convocara para seu ministério e Candiota não podia ter qualquer distração na sua luta contra o demônio, muito menos a Laurita, com seus mamilos tipo medalhão. Laurita não casou com o Candiota e com mais ninguém. Renunciou à sua missão, que era reproduzir tantos Candiotas quantos pudesse para ajudar o Brasil, em favor da missão do Candiota, de combater o demônio em todas as suas manifestações.
Anos depois, num baile de carnaval, Laurita julgou identificar o Candiota num grupo de homens fantasiados de legionários romanos que circulavam pelo salão com mulheres seminuas sentadas sobre os ombros. Não pôde ter certeza de que era o Candiota porque ele era o único que segurava a mulher ao contrário e tinha a cara enterrada entre as suas coxas.
Talvez não fosse o Candiota. Talvez fosse o Candiota e ele estivesse numa missão secreta para o Senhor, em território inimigo. Talvez fosse o Candiota e ele tivesse mentido para ela. Talvez fosse o Candiota e... O homem depositou a mulher que tinha sobre os ombros em cima de uma mesa, e Laurita viu que era o Candiota. Gritou para ele:
Candiota, e a sua luta contra o demônio?
E então Candiota virou-se, avistou Laurita, abriu os braços dramaticamente e respondeu:
Ele venceu!
Foi depois disso que a Laurita ficou assim, amarga e filosófica.

Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça

A Realeza de Pelé


Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — ”Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.
Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

Nelson Rodrigues, in Manchete Esportiva, 8 de março de 1958

Tapiiraiauara

Dera-se que Iô Isnar trouxera-me a caçar a anta, na rampa da serra. Sobre sua trilha postávamo-nos em ponto, à espera, por onde havia de descer, batida pelos cães. Sabia-se, a anta com o filhote. Acima, a essa hora, ela pastava, na chapada.
Vistosa, seca manhã, entre lamas, a fim de assassinato; Iô Isnar se regozijava, duro e mau como uma quina de mesa. Eu olhava os topos das árvores. Fizera-me vir. Era o velho desgraçado.
— “A carne é igual à da vaca: lombo, o coração, fígado...” Matava-a, por distração, suponha-se; para esquecer-se do espírito. Iô Isnar tinha problema. — “Ecô”! — deu a soltada dos cachorros, aplicados rumo arriba.
— “Mora no beira-córrego, em capão de mato. Faz um fuxico, ali, uns ramos; nesse enredado, elas dormem.” A anta, que ensina o filhote a nadar: coça-o leve com os dentes, alongando o trombigo.
— “Sai dos brejos, antes do sol. Sobe, para vir arrancar folhas novas de palmeiras, catar frutinhas caídas, roer cascas do ipê, angico, peroba...”
O problema de Iô Isnar era noutro nível, de dó e circunstância, viril compungência. Seu filho achava-se em cidade, no serviço militar. — “Haverá mais guerra? O Brasil vai?”... perguntara, muito, expondo a balda.
A anta, e o filhote — zebrado riscado branco como em novos eles são — tão gentil.
— “Ah, o couro é cabedal bom, rijo, grosso. Dá para rédeas, chicotes, coisas de arreios...”
Sobre lá, a mil passos, a boa alimária fuçava araticuns e mangabas do chão, muricis, a vagem da faveira. Ao meio-dia buscava outros pântanos, lagoas, donde comia os brotos de taquaril e rilhava o coco do buriti, deixada nua a semente. Com pouco ia desastrar-se com os cães, feia a sungar a afilada cabeça, sua cara aguda, aventando-lhes o assomar.
Eram horas episódicas.
De tocaia, aqui, no rechego, a peitavento, Iô Isnar comodamente guardava-a, rês, para tiro por detrás da orelha, o melhor, de morte. Dava osga, a desalma. Moeu-me. Merecia maldição mansamente lançada. Iô Isnar, apurado, ladino no passatempo.
Havendo que o obstar?
Levantavam-na quiçá já os cães anteiros afirmados, cruza de perdigueiros e cabeçudos. Acossada, prende às vezes o cachorro com o pé, e morde-o; despistava-os?
— “É peta, qualquer cachorrinho prático segura uma anta!”
Valesse-lhe, nem, andar escondida nos matos, ressabiando os descampados. Sem longe, sem triz, ao grado de um Iô Isnar, em sórdido folguedo: condenada viva.
Mas, que, então, algum azar o impedisse — Anhangá o transtornasse!
Só árvores através de árvores. Doer-se de um bicho, é graça. De ainda aurora, a anta passara fácil por aqui, subindo do rio, de seu brejo-de-buritis, dita vereda. Marcava-se o bruto rastro: aos quatro e três dedos, dos cascos, calcados no sulco fundo do carreiro, largo, no barro bem amarelo, cor que abençoa.
Havia urgência.
Podia-se uma ideia.
À mão de linguagem. A de meneá-lo, agi-lo, nesse propósito, em farsamento, súbito estudo, por equivalência de afetos, no dói-lhe-dói, no tintim da moeda! Iô Isnar, carrasco, jeito abjeto, temente ao diabo. A pingo de palavras, com inculcações, em ordem a atordoá-lo, emprestar-lhe minha comichão. Correr aposta.
Ponteiro menor, a anta; ponteiro grande, os cães.
E dependi daquilo.
— “Sim, o Brasil mandará tropas...” — deixei-lhe; conforme à teoria. Sem o fitar: mas ao raro azul entre folhagens de árvores.
— “Cruz!?” — ele fez, encolhera elétrico os ombros.
Eu, mais, numa ciciota: — “É grave...” Luta distante, contra malinos pagãos, cochinchins, indochins: que martirizavam os prisioneiros, miudamente matavam. Guerra de durar anos...
Iô Isnar, voz ingrata, já ele em outras oscilações: — “Deveras?” — coçou a nuca, conquanto. Acelerava seu sentir; pôs-se cinco rugas na testa, como uma pauta de música. Vi o capinzal, baixas ervas, o meigo amarelo do lameiro, uma lama aprofundada. Ele era um retrato.
Tomei uns momentos.
Devagar, a ministrar, com opinião de martelo e prego: — “Seu filho único...” Disse. Do ominoso e torvo, de desgraçados sucessos, o parar em morte, os suplícios mais asiáticos. — “Se a sorte sair em preto...” — o tema fundamental.
Iô Isnar — a boca aberta ainda maior, porque levantara a cabeça — e um olhar homicida. Malhava-me fogo?
Só futuras sombras não logravam porém o desandamento de um cru caçador, seu coração a desarrazoar-se. Talvez a menção prática de providências vingasse sacudi-lo: — “Ajudo-o... Mas tem de vir comigo à cidade...” — propinei.
Iô Isnar sumiu a cor do rosto, perdera o conselho; o queixo trêmulo. Valha-o a breca! Operava, o método. Vinha-lhe ao extremo dos dedos o pânico, das epidermes psíquicas. Ele estava de um metal. Ele era maquinalmente meu. Obra de uns dez minutos.
No súbito.
A alarida, a pouco e pouco, o re-eco — trupou um galope, em direitura, à abalada, dava vento.
E foi que: mal coube em olhos: vulto, bruno-pardo, patas, pelo estreito passadouro — tapiruçu, grã-besta, tapiira... — o coto de cauda. Com os cães lhe atrás.
Iô Isnar falhara, a cilada, o tiro; desexercera-se de mãos, não afirmara a vista.
Travavam-se, em estafa, os cães, com latidos soluçados.
Embaixo, lá a anta soltara o estridente longo grito — de ao se atirarem à água, o filhote e ela — de em salvo.
Refez-se a tranquilidade.
Iô Isnar rezava, feito se moribundo, se derrubado, tripudiado pelo tapir, que defeca mesmo quando veloz no desembesto: seu esterco no chão parecia o de um cavalo.

Guimarães Rosa, in Tutameia

Gramática do Povo Guató – VIII

Rogaciano era índio Guató. Mas eu o conheci na
condição de bugre. (Bugre é índio desaldeiado,
pois não?) Ele andava pelas ruas de Corumbá
bêbedo e sujo de catar papel por um gole
de pinga no bar de Nhana. De tarde esfarrapado e
com fome se encostava à parede de casa. A mãe
fez um prato de comida e eu levei para Rogaciano.
Ficamos a conversar. Ele ria pelas gengivas e
mandava pra dentro feijão com arroz. O bife
escorregava de gordura pelos beiços desse bugre.
Rogaciano limpava a gordura com as costas da mão.
Uma hora me falou que não sabia ler nem escrever.
Mas seu avô que era o Chamã daquele povo lhe
ensinara uma Gramática do Povo Guató. Era a
Gramática mais pobre em extensão e mais rica
em essência. Constava de uma só frase: Os verbos
servem para emendar os nomes. E botava exemplos:
Bentevi cuspiu no chão. O verbo cuspir emendava
o bentevi com o chão. E mais: O cachorro comeu
o osso. O verbo comer emendou o cachorro no osso.
Foi o que me explicou Rogaciano sobre a Gramática
do seu povo. Falou mais dois exemplos: Mariano
perguntou: – Conhece fazer canoa pessoa? – Periga
Albano fazer. Respondeu. Rogaciano, ele mesmo,
não sabia nada, mais ensinava essa fala sem
conectivos, sem bengala, sem adereços para a
gurizada. Acho que eu gostasse de ouvir os nadas
de Rogaciano não sabia. E aquele não saber me mandou de
curioso para estudar linguística. Ao fim me pareceu
tão sábio o Chamã dos Guatós quanto Sapir.

Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância

O imagista

Quando o homem desaparecer, que será das coisas? Morrerão da mesmice de ser. De serem apenas aquele poste ali na esquina, a fonte sorrateira, a bela tabuleta inutilmente colorida, os pacientes relógios sobreviventes. Morrerão da mesmice de serem e não mais parecerem.
Quando o homem desaparecer, que será das coisas, que será de Deus?

Mário Quintana, in Caderno H

Divagando sobre tolices

Depois de esporádicas e perplexas meditações sobre o cosmos, cheguei a várias conclusões óbvias (o óbvio é muito importante: garante certa veracidade). Em primeiro lugar concluí que há o infinito, isto é, o infinito não é uma abstração matemática, mas algo que existe. Nós estamos tão longe de compreender o mundo que nossa cabeça não consegue raciocinar senão à base de finitos. Depois me ocorreu que se o cosmos fosse finito, eu de novo teria um problema nas mãos: pois, depois do finito, o que começaria? Depois cheguei à conclusão, muito humilde minha, de que Deus é o infinito. Nessas minhas divagações também me dei conta do pouco que sabia, e isso resultou numa alegria: a da esperança. Explico-me: o pouco que sei não dá para compreender a vida, então a explicação está no que desconheço e que tenho a esperança de poder vir a conhecer um pouco mais.
O belo do infinito é que não existe um adjetivo sequer que se possa usar para defini-lo. Ele é, apenas isso: é. Nós nos ligamos ao infinito através do inconsciente. Nosso inconsciente é infinito.
O infinito não esmaga, pois em relação a ele não se pode sequer falar em grandeza ou mesmo em incomensurabilidade. O que se pode fazer é aderir ao infinito. Sei o que é o absoluto porque existo e sou relativa. Minha ignorância é realmente a minha esperança: não sei adjetivar. O que é uma segurança. A adjetivação é uma qualidade, e o inconsciente, como o infinito, não tem qualidades nem quantidades. Eu respiro o infinito. Olhando para o céu, fico tonta de mim mesma.
O absoluto é de uma beleza indescritível e inimaginável pela mente humana. Nós aspiramos a essa beleza. O sentimento de beleza é o nosso elo com o infinito. É o modo como podemos aderir a ele. Há momentos, embora raros, em que a existência do infinito é tão presente que temos uma sensação de vertigem. O infinito é um vir a ser. É sempre o presente, indivisível pelo tempo. Infinito é o tempo. Espaço e tempo são a mesma coisa. Que pena eu não entender de física e de matemática para poder, nessa minha divagação gratuita, pensar melhor e ter o vocabulário adequado para a transmissão do que sinto.
Espanta-me a nossa fertilidade: o homem chegou com os séculos a dividir o tempo em estações do ano. Chegou mesmo a tentar dividir o infinito em dias, meses, anos, pois o infinito pode constranger muito e confranger o coração. E, diante da angústia, trazemos o infinito até o âmbito de nossa consciência e o organizamos em forma humana simplificada. Sem essa forma ou outra qualquer de organização, nosso consciente teria uma vertigem perigosa como a loucura. Ao mesmo tempo, para a mente humana, é uma fonte de prazer a eternidade do infinito: nós, sem entendê-lo, compreendemos. E, sem entender, vivemos. Nossa vida é apenas um modo do infinito. Ou melhor: o infinito não tem modos. Qual a forma mais adequada para que o consciente açambarque o infinito? Pois quanto ao inconsciente, como já foi dito, este o admite pela simples razão de também sê-lo. Será que entenderíamos melhor o infinito se desenhássemos um círculo? Errei. O círculo é uma forma perfeita, mas que pertence à nossa mente humana, restrita pela sua própria natureza. Pois na verdade até o círculo seria um adjetivo inútil para o infinito. Um dos equívocos naturais nossos é achar que, a partir de nós, é o infinito. Nós não conseguimos pensar no existo sem tomarmos como ponto de vista o a partir de nós.
Para falar a verdade, já me perdi e nem sei mais do que estou falando. Bem, tenho mais o que fazer do que escrever tolices sobre o infinito. É, por exemplo, hora do almoço e a empregada avisou que já está servido. Era mesmo tempo de parar.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Et caetera


para Néstor Ibarra

UM TEÓLOGO NA MORTE

Os anjos comunicaram-me que, quando Melanchton faleceu, ofereceram-lhe no outro mundo uma casa ilusoriamente igual à que tivera na Terra. (Para quase todos os recém-chegados à eternidade acontece o mesmo e por isso acreditam que não morreram.) Os objetos domésticos eram iguais: a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a biblioteca. Logo que Melanchton acordou naquele domicílio, reatou suas tarefas literárias como se não fosse um cadáver, e escreveu durante alguns dias sobre a justificação pela fé. Como era seu costume, não disse nenhuma palavra sobre a caridade. Os anjos notaram aquela omissão e mandaram pessoas interrogá-lo. Melanchton disse-lhes: “Demonstrei irrefutavelmente que a alma pode prescindir da caridade e que, para entrar no céu, basta a fé”. Dizia aquelas coisas com soberba e não sabia que já estava morto e que seu lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram aquele discurso, abandonaram-no.
Em poucas semanas, os móveis começaram a virar fantasmas até ficar invisíveis, exceto a poltrona, a mesa, as folhas de papel e o tinteiro. Além disso, as paredes do aposento mancharam-se de cal, e o piso, de um verniz amarelo. Até sua roupa já era muito mais ordinária. Continuava, porém, escrevendo, mas, como persistisse na negação da caridade, transladaram-no a um ateliê subterrâneo, onde havia outros teólogos como ele. Lá passou alguns dias encarcerado e começou a duvidar de sua tese e permitiram-lhe voltar. Sua roupa era de couro sem curtir, mas procurou imaginar que tudo tinha sido uma mera alucinação e continuou elevando a fé e depreciando a caridade. Num entardecer sentiu frio. Percorreu então a casa e verificou que os outros aposentos já não correspondiam aos de sua moradia na Terra. Um deles estava repleto de instrumentos desconhecidos; outro tinha diminuído tanto que era impossível entrar; outro não havia mudado, mas as janelas e portas davam para grandes dunas. O quarto do fundo estava cheio de pessoas que o adoravam e que lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sábio como ele. Aquela adoração agradou-o, mas, como algumas daquelas pessoas não tinham rosto e outros pareciam mortos, acabou por detestá-los e por desconfiar. Resolveu então escrever um elogio da caridade, mas as páginas escritas hoje apareciam amanhã apagadas. Isso aconteceu porque as compunha sem convicção.
Recebia muitas visitas de pessoas mortas havia pouco, mas sentia vergonha de se mostrar num alojamento tão sórdido. Para fazê-las crer que estava no céu, combinou com um bruxo dos do quarto do fundo, e este as enganava com simulacros de esplendor e serenidade. Mal as visitas se retiravam, reapareciam a pobreza e a cal, e às vezes um pouco antes.
As últimas notícias de Melanchton dizem que o mago e um dos homens sem rosto o levaram para as dunas e que agora é como um criado dos demônios.

(Do livro Arcana coelestia, de Emanuel Swedenborg)

A CÂMARA DAS ESTÁTUAS

Nos primeiros dias, havia no reino dos andaluzes uma cidade em que residiram seus reis e que tinha o nome de Lebtit ou Ceuta, ou Jaén. Havia um forte castelo naquela cidade, cuja porta de dois batentes não era para entrar nem mesmo para sair, mas para que a mantivessem fechada. Cada vez que um rei falecia e outro rei herdava o trono altíssimo, este acrescentava com as mãos uma fechadura nova na porta, até que foram vinte e quatro as fechaduras, uma para cada rei. Aconteceu então que um homem malvado, que não era da casa real, assenhorou-se do poder, e, em lugar de acrescentar uma fechadura, quis que as vinte e quatro anteriores fossem abertas para olhar o conteúdo daquele castelo. O vizir e os emires suplicaram-lhe que não fizesse tal coisa e esconderam dele o chaveiro de ferro e lhe disseram que acrescentar uma fechadura era mais fácil que forçar vinte e quatro, mas ele repetia com astúcia maravilhosa: “Quero examinar o conteúdo deste castelo”. Ofereceram-lhe então quantas riquezas podiam acumular em rebanhos, em ídolos cristãos, em prata e ouro, mas ele não quis desistir e abriu a porta com a mão direita (que arderá para sempre). Lá dentro os árabes estavam representados em metal e madeira, sobre seus rápidos camelos e potros, com turbantes que ondulavam sobre a espádua e alfanjes suspensos por talabartes e a lança em riste na mão direita. Todas aquelas figuras eram em relevo e projetavam sombras no chão, e um cego podia reconhecê-las mediante o simples tato, e as patas dianteiras dos cavalos não tocavam o solo e não caíam, como se tivessem empinado. Grande espanto causaram no rei aquelas primorosas figuras, e mais ainda a ordem e o silêncio perfeito que se observava nelas, porque todas olhavam para um mesmo lado, que era o poente, e não se ouvia nem uma voz nem um clarim. Era isso que havia na primeira câmara do castelo. Na segunda estava a mesa de Salomão, filho de Davi — seja para ambos a salvação! —, talhada numa única pedra esmeralda, cuja cor, como se sabe, é o verde, e cujas propriedades ocultas são indescritíveis e autênticas, porque serena as tempestades, mantém a castidade de seu portador, afugenta a disenteria e os maus espíritos, decide favoravelmente um litígio e é de grande socorro nos partos.
Na terceira acharam dois livros: um era negro e ensinava as virtudes dos metais, dos talismãs e dos dias, assim como a preparação de venenos e de contravenenos; outro era branco e não foi possível decifrar seu ensinamento, embora a escrita fosse clara. Na quarta encontraram um mapa-múndi, no qual estavam os reinos, as cidades, os mares, os castelos e os perigos, cada qual com seu nome verdadeiro e com sua precisa figura.
Na quinta encontraram um espelho em forma circular, obra de Salomão, filho de Davi — seja para ambos o perdão! —, cujo preço era alto, pois era feito de diversos metais e quem se mirasse em sua face veria os rostos de seus pais e de seus filhos, desde o primeiro Adão até os que ouvirão a Trombeta. A sexta estava cheia de elixir, do qual um único adarme bastava para mudar três mil onças de prata em três mil onças de ouro. A sétima pareceu-lhes vazia e era tão longa que o mais hábil dos arqueiros teria podido disparar uma flecha da porta sem conseguir cravá-la no fundo. Na parede final viram gravada uma inscrição terrível. O rei examinou-a e compreendeu-a, e dizia assim: “Se alguma mão abrir a porta deste castelo, os guerreiros de carne que se parecem aos guerreiros de metal da entrada se apoderarão do reino”.
Essas coisas aconteceram no ano 89 da Hégira. Antes que chegasse a seu fim, Tárik apoderou-se daquela fortaleza e derrotou aquele rei e vendeu suas mulheres e seus filhos e desolou suas terras. Assim foram se expandindo os árabes pelo reino de Andaluzia, com suas figueiras e pradarias irrigadas nas quais não se padece de sede. Quanto aos tesouros, conta-se que Tárik, filho de Zaid, remeteu-os ao califa seu senhor, que os guardou numa pirâmide.

(Do Livro das mil e uma noites, noite 272)

HISTÓRIA DOS DOIS QUE SONHARAM

O historiador arábico El Ixaqui relata este acontecimento:

Contam os homens dignos de fé (mas só Alá é onisciente e poderoso e misericordioso e não dorme) que houve no Cairo um homem possuidor de riquezas, mas tão magnânimo e liberal que perdeu tudo menos a casa de seu pai, e que se viu forçado a trabalhar para ganhar o pão. Trabalhou tanto que o sono o venceu uma noite debaixo de uma figueira de seu jardim, e viu no sonho um homem encharcado que tirou da boca uma moeda de ouro e lhe disse: “Tua fortuna está na Pérsia, em Isfarrã; vai buscá-la”. Na madrugada seguinte, acordou e empreendeu uma longa viagem e enfrentou os perigos dos desertos, das naves, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou por fim a Isfarrã, mas no interior dessa cidade surpreendeu-o a noite, e se deitou para dormir no pátio de uma mesquita. Havia, junto da mesquita, uma casa e, por decreto de Deus Todo-Poderoso, uma quadrilha de ladrões atravessou a mesquita e meteu-se na casa; as pessoas que dormiam acordaram com o estrondo dos ladrões e pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão dos guardas-noturnos do distrito acudiu com seus homens e os bandidos fugiram pelo terraço. O capitão fez vasculhar a mesquita e nela deram com o homem do Cairo, e lhe aplicaram tais açoites com varas de bambu que esteve perto da morte. Dois dias depois, recobrou os sentidos na prisão. O capitão mandou chamá-lo e disse-lhe: “Quem és, e qual é tua pátria?”. O outro declarou: “Sou da famosa cidade do Cairo e meu nome é Mohamed El Magrebi”. O capitão então lhe perguntou: “O que te trouxe à Pérsia?”. O outro optou pela verdade e disse-lhe: “Um homem me ordenou num sonho que viesse a Isfarrã, porque aqui estaria minha fortuna. Já estou em Isfarrã e vejo que a fortuna que ele prometeu devem ser os açoites que tão generosamente me deste”.
Diante de tais palavras, o capitão riu até mostrar os dentes do siso e acabou por lhe dizer: “Homem desatinado e crédulo, três vezes sonhei com uma casa na cidade do Cairo em cujo fundo há um jardim e, no jardim, um relógio de sol e além do relógio de sol uma figueira e em seguida uma fonte, e debaixo da fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu, porém, produto de uma mula com um demônio, foste errando de cidade em cidade, levado apenas pela fé de teu sonho. Que eu não volte a te ver em Isfarrã. Toma estas moedas e vai-te”.
O homem pegou-as e regressou à pátria. Sob a fonte de seu jardim (que era a do sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus lhe deu a bênção e o recompensou e exaltou. Deus é o Generoso, o Oculto.

(Do Livro das mil e uma noites, noite 351)

O BRUXO ADIADO

Em Santiago havia um deão que desejava aprender a arte da magia. Ouviu dizer que dom Illán de Toledo a conhecia mais que ninguém, e foi a Toledo procurá-lo.
No dia de sua chegada, dirigiu-se à casa de dom Illán e encontrou-o lendo num quarto afastado. Ele o recebeu com bondade e disse-lhe que adiasse o motivo da visita até depois do almoço. Indicou-lhe um aposento muito fresco e disse-lhe que sua vinda muito o alegrava. Depois de comer, o deão contou-lhe a razão da visita e pediu a ele que lhe ensinasse a ciência mágica. Dom Illán disse-lhe que adivinhava que era deão, homem de boa posição e futuro, e que tinha medo de logo ser esquecido por ele. O deão prometeu-lhe e assegurou que nunca esqueceria aquele favor, e que estaria sempre às suas ordens. Uma vez acertada a questão, explicou dom Illán que as artes mágicas não podiam ser aprendidas senão num lugar afastado, e, tomando de sua mão, levou-o a um quarto contíguo, em cujo piso havia uma grande argola de ferro. Disse antes à criada que preparasse perdizes para o jantar, mas que não as pusesse para assar até que mandasse. Juntos, os dois ergueram a argola e desceram por uma escada de pedra bem lavrada, até que pareceu ao deão que tinham descido tanto que o leito do Tejo estava sobre eles. Ao pé da escada havia uma cela e em seguida uma biblioteca e mais além uma espécie de gabinete com instrumentos mágicos. Examinaram os livros e estavam nisso quando entraram dois homens com uma carta para o deão, escrita pelo bispo, seu tio, na qual o informava de que estava muito doente e que, se quisesse encontrá-lo vivo, não demorasse. O deão ficou muito contrariado com aquelas novas, tanto pela doença do tio quanto por ter de interromper os estudos. Optou por escrever uma desculpa e enviou-a para o bispo. Três dias depois, chegaram alguns homens de luto com outras cartas para o deão, nas quais se lia que o bispo falecera, que estavam escolhendo seu sucessor e que esperavam pela graça de Deus poder elegê-lo. Diziam também que não se incomodasse em vir, já que parecia muito melhor que o elegessem na sua ausência.
Dez dias depois, vieram dois escudeiros muito bem vestidos, que se lançaram aos pés dele e beijaram suas mãos e o saudaram como bispo. Quando dom Illán viu aquelas coisas, dirigiu-se com muita alegria a nosso prelado e disse-lhe que agradecia ao Senhor que tão boas-novas tivessem chegado a sua casa. Logo lhe pediu o decanato vacante para um de seus filhos. O bispo informou-o de que reservara o decanato para seu próprio irmão, mas que decidira favorecê-lo e que partissem juntos para Santiago.
Foram os três para Santiago, onde os receberam com honrarias. Seis meses depois, o bispo recebeu mensageiros do papa, que lhe oferecia o arcebispado de Tolosa, deixando em suas mãos a nomeação de um sucessor. Quando dom Illán soube disso, lembrou-o da antiga promessa e pediu-lhe aquele título para o filho. O arcebispo informou-o de que reservara o bispado para seu próprio tio, irmão de sua mãe, mas que decidira favorecê-lo e que partissem juntos para Tolosa. Dom Illán não teve mais remédio senão assentir.
Foram os três para Tolosa, onde os receberam com honrarias e missas. Dois anos depois, o arcebispo recebeu mensageiros do papa, que lhe oferecia o capelo de cardeal, deixando em suas mãos a nomeação de um sucessor. Quando dom Illán soube disso, lembrou-o da antiga promessa e pediu-lhe aquele título para o filho. O cardeal informou-o de que reservara o arcebispado para seu próprio tio, irmão de sua mãe, mas que decidira favorecê-lo e que partissem juntos para Roma. Dom Illán não teve mais remédio senão assentir. Foram os três para Roma, onde os receberam com honrarias e missas e procissões. Quatro anos depois morreu o papa e nosso cardeal foi eleito para o papado por todos os demais. Quando dom Illán soube disso, beijou os pés de Sua Santidade, lembrou-o da antiga promessa e pediu-lhe o cardinalato para o filho. O papa ameaçou-o com a prisão, dizendo-lhe que bem sabia ele que não era mais que um bruxo e que em Toledo fora professor de artes mágicas. O miserável dom Illán disse que ia voltar para a Espanha e lhe pediu alguma coisa para comer durante o caminho. O papa não acedeu. Então dom Illán (cujo rosto havia remoçado de um modo estranho) disse com uma voz sem tremor:
Pois então terei de comer as perdizes que encomendei para esta noite.
A criada apresentou-se e dom Illán disse-lhe que as assasse. Àquelas palavras, o papa se viu na cela subterrânea em Toledo, somente deão de Santiago, e tão envergonhado de sua ingratidão que não atinava em se desculpar. Dom Illán disse que bastava aquela prova, negou-lhe sua parte das perdizes e acompanhou-o até a rua, onde lhe desejou boa viagem e se despediu dele com grande cortesia.

(Do Livro de Patrônio do infante dom Juan Manuel, que o derivou de um livro árabe: As quarenta manhãs e as quarenta noites)

O ESPELHO DE TINTA

A história sabe que o mais cruel dos governadores do Sudão foi Iácub, o Doente, que entregou seu país à iniquidade dos coletores de impostos egípcios e morreu numa câmara do palácio, no dia 14 da lua de Barmarrat, no ano de 1842. Alguns insinuam que o feiticeiro Abderramen El Masmudi (cujo nome pode ser traduzido por O Servidor do Misericordioso) acabou com ele a punhal ou veneno, mas uma morte natural é mais verossímil — já que o chamavam de o Doente. Contudo, o capitão Richard Francis Burton conversou com aquele feiticeiro no ano de 1853 e conta que ele lhe relatou o que transcrevo:
É verdade que eu padeci cativeiro no alcáçar de Iácub, o Doente, logo após a conspiração que meu irmão Ibraim forjou, com o pérfido e vão socorro dos chefes negros do Cordofão, que o denunciaram. Meu irmão pereceu pela espada, sobre a pele de sangue da justiça, mas eu me atirei aos detestáveis pés do Doente e disse-lhe que era feiticeiro e que, se me outorgasse a vida, lhe mostraria formas e aparências até mais maravilhosas que as do Fanussi khayal (a lanterna mágica). O opressor exigiu de mim uma prova imediata. Eu lhe pedi uma pena de cana, umas tesouras, uma folha grande de papel veneziano, um chifre de tinta, um braseiro, umas sementes de coentro e uma onça de benjoim. Recortei a folha em seis tiras, escrevi talismãs e invocações nas cinco primeiras, e na restante as seguintes palavras que estão no glorioso Quran: “Retiramos teu véu, e a visão de teus olhos é penetrante”. Em seguida desenhei um quadro mágico na mão direita de Iácub e lhe pedi que a entrecerrasse e verti no meio um círculo de tinta. Perguntei-lhe se percebia com clareza seu reflexo no círculo e ele respondeu que sim. Disse-lhe para não erguer os olhos. Acendi o benjoim e o coentro, e queimei as invocações no braseiro. Pedi que nomeasse a figura que desejasse olhar. Pensou e disse-me: um cavalo selvagem, o mais bonito que pastasse nos prados à borda do deserto. Olhou e viu o campo verde e tranquilo e depois um cavalo que se aproximava, ágil como um leopardo, com uma estrela branca na testa. Pediu-me uma tropilha de cavalos tão perfeitos como o primeiro, e viu no horizonte uma nuvem comprida de pó, e em seguida a tropilha. Compreendi que minha vida estava segura.
Mal despontava a luz do dia, dois soldados entraram em meu cárcere e conduziram-me à câmara do Doente, onde já me esperavam o incenso, o braseiro e a tinta. Assim foi exigindo de mim e lhe fui mostrando todas as aparências do mundo. Esse homem morto que detesto teve na mão quanto os homens mortos viram e veem os que estão vivos: as cidades, climas e reinos em que se divide a Terra, os tesouros ocultos no centro, as naves que atravessam o mar, os instrumentos da guerra, da música e da cirurgia, as graciosas mulheres, as estrelas fixas e os planetas, as cores que empregam os infiéis para pintar seus quadros detestáveis, os minerais e as plantas com os segredos e as virtudes que encerram, os anjos de prata cujo alimento é o elogio e a justificação do Senhor, a distribuição dos prêmios nas escolas, as estátuas de pássaros e de reis que há no coração das pirâmides, a sombra projetada pelo touro que sustenta a Terra e pelo peixe que está debaixo do touro, os desertos de Deus, o Misericordioso. Viu coisas impossíveis de descrever, como as ruas iluminadas a gás, e como a baleia que morre quando escuta o grito do homem. Uma vez me ordenou que mostrasse a cidade que se chama Europa. Mostrei-lhe a principal de suas ruas e creio que foi naquele caudaloso rio de homens, todos ataviados de negro e muitos com óculos, que viu pela primeira vez o Mascarado.
Essa figura, às vezes com o traje sudanês, às vezes de uniforme, mas sempre com um pano sobre o rosto, penetrou desde então nas visões. Não podia faltar e não nos detínhamos em conjecturar quem era. Contudo, as aparências do espelho de tinta, momentâneas ou imóveis no início, eram mais complexas agora; executavam sem demora minhas ordens e o tirano as seguia com clareza. É verdade que ambos costumávamos ficar extenuados. O caráter atroz das cenas era outra fonte de cansaço. Não eram senão castigos, cordas, mutilações, deleites do verdugo e do cruel.
Assim chegamos ao amanhecer do dia 14 da lua de Barmarrat. O círculo de tinta havia sido marcado na mão, o benjoim lançado no braseiro, as invocações queimadas. Estávamos os dois a sós. O Doente disse-me que lhe mostrasse um castigo inapelável e justo, porque seu coração, naquele dia, desejava ver uma morte. Mostrei-lhe os soldados com tambores, a pele estendida do bezerro, as pessoas felizes de olhar, o verdugo com a espada da justiça. Maravilhou-se com a visão e disse-me: “É Abu Kir, o que justiçou teu irmão Ibraim, aquele que ultimará teu destino quando me for concedida a ciência de convocar essas figuras sem tua ajuda”. Pediu que trouxessem o condenado. Quando o trouxeram, perturbou-se, porque era o homem inexplicável do pano branco. Ordenou-me que, antes que o matassem, lhe tirassem a máscara. Eu me atirei a seus pés e lhe disse: “Ó rei do tempo, substância e súmula do século, esta figura não é como as demais porque não sabemos seu nome nem o dos pais dela nem o da cidade que é sua pátria, de modo que eu não me atrevo a tocá-la, para não incorrer numa culpa da qual terei de prestar contas”. O Doente riu e acabou jurando que ele assumiria a culpa, se culpa houvesse. Jurou pela espada e pelo Quran. Então ordenei que despissem o condenado e que o sujeitassem sobre a pele estendida do bezerro e que lhe arrancassem a máscara. Assim se fez. Os olhos espantados de Iácub puderam por fim ver aquele rosto — que era o dele próprio. Cobriu-se de medo e loucura. Segurei-lhe a mão direita trêmula com a minha que estava firme e lhe ordenei que continuasse olhando a cerimônia de sua morte. Estava possuído pelo espelho: nem sequer procurou erguer os olhos ou derramar a tinta. Quando a espada se abateu na visão sobre a cabeça culpada, gemeu com uma voz que não me apiedou, e tombou morto no chão.
A glória esteja com Aquele que não morre e tem na mão as duas chaves do ilimitado Perdão e do infinito Castigo.

(Do livro The Lake Regions of Equatorial Africa, de R. F. Burton)

O DUPLO DE MAOMÉ

Já que na mente dos muçulmanos as ideias de Maomé e de religião estão indissoluvelmente ligadas, o Senhor ordenou que no Céu sempre os presida um espírito que faz o papel de Maomé. Esse delegado nem sempre é o mesmo. Um cidadão da Saxônia, a quem em vida os argelinos fizeram prisioneiro e que se converteu ao islã, ocupou uma vez esse cargo. Como fora cristão, falou-lhes de Jesus e disse-lhes que não era o filho de José, mas o filho de Deus; foi conveniente substituí-lo. A situação desse Maomé representativo é indicada por uma tocha, só visível para os muçulmanos.
O verdadeiro Maomé, que redigiu o Quran, já não é visível a seus adeptos. Disseram-me que no começo os presidia, mas que pretendeu dominá-los e foi exilado no Sul. Uma comunidade de muçulmanos foi instigada pelos demônios a reconhecer Maomé como Deus. Para aplacar o distúrbio, Maomé foi trazido dos infernos e exibido. Naquela ocasião eu o vi. Assemelhava-se aos espíritos corpóreos que não têm percepção interior, e seu rosto era muito escuro. Conseguiu articular as palavras: “Eu sou vosso Maomé”, e imediatamente desapareceu.

(De Vera Christiana Religio, 1771, de Emanuel Swedenborg)

Jorge Luís Borges, in História universal da infâmia