Quando
o pai do Nanito chegou para morar ali no musseque, a casa de
pau-a-pique que alugou não tinha quintal mas, atrás, tinha muitas
árvores, goiabeiras, mangueiras e até mamoeiros, onde os meninos
brincavam. Era uma casa grande, de três quartos, coberta de zinco
novo, do mesmo feitio de todas que cresciam por ali, duas janelas e
uma porta na frente, duas janelas e uma porta para trás e ficava
mesmo perto de don’Ana e da mãe do Zito. Nesse dia que apareceu,
era sábado de tarde, toda a gente ficou a espreitar a velha carrinha
da PSP com os dois cipaios carregando as cadeiras e a mobília. Não
era gente de esteira e cadeira de bordão, via-se logo. Sô Luís,
polícia, não adiantou falar para ninguém, passou muito esticado,
farda de caqui bem engomada, dando berros nos cipaios, ameaçando com
o chicote cavalmarinho que usava. Quem lhe visse e não lhe
conhecesse, pensava logo era um chefe.
Com
essas manias do pai e as conversas da mãe sempre gabando suas amigas
da cantina, o bairro antigo, suas amigas da Baixa praqui e prali,
quando brincavam com Nanito era para lhe encherem de partidas. No
princípio ele aguentava, ria; mas depois começou queixar no pai e
sô Luís vinha logo ameaçar de cavalmarinho, na porta da casa.
Um
domingo, manhã cedinho, o polícia começou desmanchar uns barris
descarregados no sábado e adiantou construir um quintal de aduelas.
As pancadas do martelo acordaram as pessoas dos seus biscates e
muitas vieram espreitar o que estava passar. Murmurando uns nos
outros, criticavam:
— Ngueta
camuelo! Esses brancos são assim. Olha só! Chegou dois dias e
pronto! Começa já a dizer aquilo é dele.
Não
é que um quintal fosse coisa para todos falarem, as cubatas do
capitão, don’Ana e vavó Xica também tinham; mas, ali, no terreno
atrás da cubata do polícia, os paus de manga e de goiaba cresciam e
eram de todo o musseque, ninguém que tirava mais que queria e até
mesmo os meninos lhes respeitavam. Goiaba, mamão, manga, só
madurinha para comer. Mesmo no fim do dia, quando o povo passava mais
para cima e pedia de alguém nas portas licença para tirar a goiaba
para o mona ou levar o mamão, a resposta era que os paus eram de
todos, não precisava pedir.
Pregando
as aduelas, as marteladas de sô Luís doeram no coração dos
miúdos: sentiam que lhes roubavam, já não podiam ir mais brincar,
descansar nas sombras, espreitar os pássaros. Disparatavam a
construção, culpando o Nanito:
— Foi
ele, o sacrista! Pediu no pai!
— Vais
ver! Te agarramos, te fazemos uma barrela mesmo. Julgas com a gente
torras farinha?
Zeca
Bunéu estava muito triste. Ele mesmo é que sofria mais, ouvindo o
pai concordar com o cercado, falar para sô Luís que assim é que
era, ou aquilo ali era a casa de todos, caminho de negros?
Quietos,
Biquinho, Xoxombo e suas irmãs ficaram quase toda a manhã olhando o
quintal a crescer, sô Luís pregando os pregos que o Nanito,
vaidoso, tirava da lata. Dona Eva, aproveitando as mães dentro das
cubatas, chegou uma vez na porta para lhes dizer:
— Acabou-se!
Pensavam que isto era vosso, não é?
Biquinho
fez uma asneira nos dedos e todos riram. Tunica troçou:
— Viococo!
Viococo!
Os
dias passaram.
As
semanas passaram com dona Eva sempre arreganhando suas vizinhas,
fazendo pouco, e as mães e os miúdos entregando ao desprezo e aos
ditos do musseque aquela gente. Só Xoxombo, como a escola era a
mesma, falava com Nanito quando ele aparecia, vestindo quedes, de
espingarda de chumbo, com a mania que matava mais gungos que todos.
Mas ninguém que lhe ligava e o miúdo ia embora outra vez, ouvia-se
o pai a ralhar da mania de ir brincar com aqueles vadios pretos e
mulatos.
Com
as pessoas assim no musseque, um lado a família do capitão e os
amigos, o outro sô Luís e o pai do Antoninho, e dona Branca no
meio, ninguém que se admirou aquela manhã da confusão da
Albertina. Quando saiu às oito horas, chicote batendo na perna
magra, sô Luís falou alto, para todos ouvirem:
— Hoje
é que eu faço a cama àquela puta. Vão ver! Este musseque tem de
ser um bairro decente!...
Don’Ana
muxoxou, insultando-lhe mesmo em quimbundo e, com sá Domingas e as
vizinhas, começou lamentar a Albertina, mulher de todos é verdade,
mas educada, respeitadora como ela não tinha ali. E boa para os
miúdos, deixa só! Bolo que ela tinha, cadavez, só comia migalha!
Essa
manhã passou devagar.
Os
barulhos dos carros traziam as pessoas nas portas, julgando já era a
Albertina de volta, mas nada, não veio. E os meninos, agarrados
também por aquele silêncio zangado das mães, ficaram por ali
zunindo pedradas à toa, debaixo da gajajeira falando o acontecido.
Só dez horas já passavam é que seguiram pelos caminhos conhecidos,
para derrotarem os bandos de gungos que voavam mais longe, no sítio
onde não tinha cubatas.
Neste
caso do quintal, o Zeca chorava mais eram as pitangas. Menino guloso
de pitangas como ele, não tinha. Começava a comer nas verdes mesmo
e ia tudo, derrotava uma pitangueira num instante. Mas também, às
vezes, certas tardes, ficava diferente. Não era mais aquele miúdo
malandro com fama no musseque, não. Sentava no largo e alto passeio
balouçando as pernas e falava sozinho, não queria ir na
brincadeira. Mirava os paus de goiaba, via o ventinho da tarde
xaxualhar nas folhas, sentia o cheiro da areia suando o sol da manhã
e gostava mesmo ficar a olhar o povo passando apressado.
Nessas
horas ninguém que lhe xingava, o Zeca ficava zangado. A gente
percebia que ele gostava ver muita gente, gostava mesmo dos paus da
fruta, de chuva grossa na areia e no zinco, dos morcegos à tardinha
debicando as goiabas amarelas e os mamões ou deitar de barriga para
cima, sete horas, oito horas já, a mirar as estrelas. Por isso ele é
que sofreu mesmo com a história do quintal. Então saudades da
pitangueira, nem se fala. Nessas tardes dele, a gente via o Zeca
passar as mãos nas folhas macias, limpar as pitangas amarelinhas,
mas não lhes comia, nós ficávamos burros, ninguém que percebia,
ele só andava por baixo das árvores, falando à toa, atirando
pedras pelo areal adiante, mais nada. Outras vezes, seis horas já,
as pessoas que vinham da Baixa começavam passar, gostava sentar
debaixo dum pau e olhar as mães com os monas nas costas, apanhando
as goiabas, sacudindo os mamões. E nem xingava mesmo os miúdos
atrevidos que arrancavam as pitangas. Não refilava, sorria só. Com
a gente, não: quem tirasse as pitangas, passava peleja. Tanto que o
Biquinho e o Xoxombo, com o acordo do Zito, nosso mais-velho, já
tinham combinado: a pitangueira era do Zeca Bunéu.
Os
casos passaram no fim do almoço.
Nessa
hora que o calor convida a deitar debaixo das frescas mulembas ou
mandioqueiras do quintal, o Xoxombo saiu para dar encontro o Zeca que
estava assobiar muito tempo já. Os outros andavam lá em cima, no
imbondeiro, pondo fisgadas nos cornos das cabras e nas múcuas e o
Zeca Bunéu tinha ficado, era só para combinar a partida que eles
queriam pôr no Nanito. Passando o braço no ombro magro do filho do
capitão Abano, foi falando com voz baixa, arrastando o menor:
— Xoxombo!
A gente tem que se vingar desse gajo do Nanito. Sukuama! Essa partida
do abacate é de mestre!
— Mas
como então, Zeca? Diz já, eu faço.
— Calma!
Deixa ainda a mãe dele dormir! Quando ele estiver no quintal, a
gente ataca. Já pensei tudo!
Sentados
no passeio alto da frente da casa do Zeca ficaram muito tempo
conversando o plano. De longe, os assobios chamavam-lhes para a
brincadeira, mas não ligavam. Esperavam, com os olhos no quarto de
dona Eva, ela ia aparecer, como todas as tardes, para fechar a rede
da janela. Estavam impacientes, ouviam muito tempo já o barulho do
Nanito a brincar no quintal, mas só três horas quase Zeca Bunéu e
Xoxombo viram a mãe de Nanito espreitar e fechar a rede. Deixaram
correr o tempo, o silêncio tomar bem conta das cubatas, nem o vento
que falava nas folhas. Só então, nessa hora, sem barulho,
avançaram.
O
Nanito estava lá debaixo do pau de goiabas, brincando com os
brinquedos dele. Espreitando nas aduelas Zeca pôs a mão na boca de
Xoxombo, pediu silêncio. Os olhos malandros riram: pópilas, sorte!
Dando sinal a Xoxombo para esperar, começou trepar nas aduelas, com
jeito, parecia onça a ir nos cabritos. Nanito nem deu conta. Acordou
com pescoço já na capanga do Zeca, uma mão a lhe tapar na boca.
Xoxombo saltou depressa e, com a corda da roupa, amarrou-lhe os
braços e as pernas. O miúdo fazia força para gritar mas não
podia: o Zeca, mesmo magrinho, aguentava. E com o lenço do Xoxombo
bem apertado para não falar, amarraram-lhe na goiabeira do meio do
quintal. Nanito olhava furioso, torcia-se, se viam veias dele
inchadas pareciam iam rebentar, mas nada que conseguia, Xoxombo tinha
aprendido aqueles nós com o velho capitão. Então amansou, desatou
chorar mas os meninos não lhe ligaram, parecia ali não tinha
ninguém, tiravam as pitangas amarelas, comiam gulosos. Comeram,
comeram, não deixaram nem uma. Verdes, maduras, tudo. Zeca olhava o
Nanito a chorar, amarrado, e quando acabou comer falou no Xoxombo:
— Ai,
Xoxombo! Esse coitado assim não come nada? Ená! É preciso não ser
camuelo como ele... Lhe deixamos a comida!
Sempre
a olhar no caramanchão, dona Eva podia aparecer de repente, Zeca
Bunéu baixou os calções e cagou mesmo aos pés do Nanito. Cheio de
medo, brincadeira assim ele não gostava, Xoxombo correu para as
aduelas e fugiu. O pobre do Nanito deixava sair as lágrimas, chorava
raiva e vergonha no lenço amarrado na boca, queria fugir nas cordas,
queria gritar, mas nada que podia fazer. Vendo o Zeca fugir pelo
capim, atrás do Xoxombo, caminho do imbondeiro, desistiu de lutar,
deixou cair a cabeça e chorou só, com muitos soluços, um choro de
miúdo feito pouco daquela maneira e raivoso de não poder se vingar.
O
fim da tarde prometia chuva de noite. Já muitas vezes um vento
maluco tinha corrido às cambalhotas pelo areal, levantando árvores
de pó com folhas de papel dos montes de lixo escondidos pelo capim.
As portas e janelas se fechavam na cara desse vento que traz desgraça
e os olhos interrogavam, dos quintais, as nuvens cinzentas crescendo
sobre a cidade. Mas o vento tinha fugido, só as nuvens ficaram a
pesar sobre as pessoas e o sol virara calor abafado e uma luz de
obrigar a gente a encolher os olhos se queremos ver muito longe.
Debaixo
do imbondeiro, com as grandes gargalhadas de todos e as mães, em
casa, fingindo não saber de nada, tudo teria sido bom, uma grande
partida do Zeca, se sô Luís não tivesse chegado mais cedo naquele
dia. Ninguém que lhe viu chegar, só deram conta já o polícia
junto com Nanito, e arreganhando o cavalmarinho, entrava pela oficina
do pai do Zeca, reclamando o miúdo. Os oficiais, assustados,
chamaram o sô mestre e ele veio espantado, com a faca da sola na
mão. Dona Eva, atrás do homem dela, começou gritar que o sapateiro
queria pôr faca; dona Branca apareceu então, se benzendo e
insultando a mãe do Nanito. E a maior confusão começou. Sô Luís
queria o Zeca para lhe levar na esquadra, o que o miúdo tinha feito
era de mais, não havia direito. Os oficiais seguravam o mestre,
nervoso, berrando:
— Quem
dá educação no meu filho sou eu! Ponha-se lá fora, seu polícia
de copos!
Dona
Branca com feitio dela, tudo ia se resolver, é preciso é conversar,
recomendava calma e chegou na porta, chamar o Zeca. Os miúdos
estavam perto, espreitando o barulho e o Zeca adiantou devagar,
coçando a cabeça. Mas nem mesmo a entrada do Zeca Bunéu, muito
homem, mas tremendo no coração, acalmou o caso. Ele veio homem é
verdade, e queria ir mesmo na esquadra, mas não lhe deixaram. O pai
agarrou-lhe no braço e pôs-lhe logo duas surras; o polícia puxava
no outro braço, queria-lhe levar. Cá fora, com olhos malandros,
don’Ana, sá Domingas e outras mães e filhas comentavam:
— Deixa
só! Confusão de branco, é branco que resolve!
Sorriam
dessa partida do Zeca naqueles cangundos camuelos e, dentro da
oficina, também Jacinto João falava para os outros oficiais e
aprendizes os casos, em quimbundo. Mas não eram casos de cansar
depressa. Discussão, berros, ameaças, insultos e sô Luís,
enchendo o peito pequeno, não queria perder: o Zeca tinha de dormir
na esquadra. De nada valiam os pedidos das mulheres, já mais calmas,
tentando pazes. Tinha de dormir na esquadra, nem que era uma hora só,
não fazia mal, mas tinha de lhe levar, questão de honra.
Só
que o Nanito estragou tudo.
Na
hora que o pai lhe largou para segurar no Zeca, aproveitando a
confusão, correu na casa dele. E nem Biquinho, nem Xoxombo,
espreitando as macas, viram o miúdo aproximar, escondendo a
espingarda de chumbo. O caso já estava quase arrumado, sô Luís
quase convencido a deixar o Zeca, o rapaz já tinha levado umas
surras e o mestre, a desculpar com brincadeiras de rapazes, quando
entrou o Nanito. O grito de Jacinto João não salvou o Zeca: o miúdo
descarregou-lhe mesmo o tiro de chumbo no mataco!
Todas
as pessoas gritaram e correram no Zeca que caiu, a gemer, em cima do
rolo da sola. O boato que o filho do polícia tinha posto chumbo no
Zeca Bunéu, que o menino ia morrer, saiu logo pelo musseque, fez
ainda chegar toda a gente na frente da casa do mestre, perguntando,
lamentando esses miúdos assim, ninguém que sabe mesmo para que
serve a escola, só fazem essas coisas de bandidos, matar pessoa já
se viu.
Mas
não, foi só o susto e o sangue.
E,
voltando devagar para suas casas, conversando o assunto, as mães
ainda chamaram os monas e deram-lhes surras para aliviar o medo dos
corações. A tarde acabou assim; a chuva tinha fugido para longe,
nem mesmo pingos tinham caído e o musseque gozou um vento fresco que
adiantou chegar com a escuridão.
O
Zeca saiu no hospital, tinham-lhe rasgado o mataco e tiraram o
chumbo. Era coisa sem importância, mas doía muito. Só mais à
noite, nove horas já, com a promessa de que não iam lhe bater mais,
Nanito voltou do capim. E, nesse fim do jantar, toda a gente evitou
sair para gozar o fresco ou sunguilar um bocado, porque o dia tinha
sido de muita confusão.
*
Dia
de azar, tinha falado o Biquinho.
Era
bem verdade. A Albertina no hospital, falavam ia ficar lá um mês e
depois nunca mais que podia ter os filhos; o Zeca Bunéu, de mataco
assim aleijado, não podia brincar bem; dona Eva e seu homem, desde
esse dia, não falavam mais para ninguém do musseque, conversa só
mesmo com mestre sapateiro e sô Antunes. O pior foi para o Nanito,
lhe proibiram sair para brincar com os outros e o menino se aborrecia
no quintal.
Zeca
Bunéu andou uns tempos não podia sentar. Tinha mais uma história e
nem passou uma semana, mesmo com os amigos no lado, contou para o
primo dele, do Kinaxixi, já doutra maneira. Mas nunca mostrou para
ninguém a marca no mataco.
José Luandino Vieira, in Nosso Mussuque
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