Uma
tarde, em Buenos Aires, eu estava meio triste — mas não bebi, não
telefonei, não procurei nenhuma pessoa amiga. Fechado no meu capote
e no meu silêncio pus-me a andar pela rua cheia de gente.
As
grandes luzes só se acendem às dez da noite e, desde muito cedo, no
inverno, é escuro. Há um poder nessa multidão que desfila na
penumbra como um rio grosso com seu murmúrio. Deixei-me ir pela
Florida, dobrei talvez em Tucumán, subi até Suipacha, desemboquei
em Corrientes, e eu era mais um homem de capote no seio da multidão,
e a multidão me embalava e me fazia bem. E por ser impessoal e não
ter pressa nem rumo, por ter um capote e sapatos grossos e por andar
entre meus desconhecidos irmãos, eu me senti mais livre. E cumpri os
ritos da multidão, comprei meu jornal, tomei meu café, li o placar
das últimas notícias, fiquei um instante distraído mirando os
frangos que giravam se tostando numa rotisseria.
Quando
voltava para o meu hotel, por Florida, me lembrei do primeiro verso
de um soneto que li há muito tempo, parece que de Alfonsina Storni,
“lo encontre en una esquina de la calle Florida...” Fiquei com
esse verso na cabeça, pensando vagamente que esse homem sem nome que
alguém encontrou em uma esquina de la calle Florida podia ser eu,
como podia ser milhões de outros, e tirei disso não sei que vago e
particular consolo.
Não
foi em uma esquina, mas foi ainda na Florida que encontrei alguém:
era um casal de amigos brasileiros em lua-de-mel.
Os
dois estavam felizes, alegres deles mesmos e de tudo o mais, falando
do prazer das compras de lã e da carne soberba dos restaurantes.
Estimei
encontrá-los, e a felicidade do casal me fez bem, mas senti, com
certa curiosidade, que no fundo de mim não havia a menor inveja.
Ide-vos, noivos morenos, por Florida e Comentes, ide-vos felizes por
todos os caminhos da vida. Só vos invejarão os que também procuram
ser felizes; minha longa tarefa é outra, é não ser infeliz e me
proteger e guardar, ser forte dentro de mim, forte, quieto e sereno.
Essa tarefa me distrai; e, vendo em vossos olhos a felicidade, eu
descobri que em verdade já não a procuro mais. Já passei por esse
caminho; sobre minha cabeça, quando ia por ele, mais de uma árvore
deixou cair flores.
Não
choro esse tempo; simplesmente ele passou. Assim vai passando a
multidão, e dentro dela caminho outra vez, lentamente, distraído e
tranquilo como um boi.
Rubem Braga, in A traição das elegantes
Nenhum comentário:
Postar um comentário