segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Os primos de Campos

Não tenho boa memória remota, pouco me lembro da minha primeira infância. Só dou por mim com certa nitidez a partir dos seis, sete anos de idade, quando estou por exemplo na sala de aula, pelejando para aprender o Hino Nacional. Ou talvez seja na sala de casa que toca o hino, e me vejo diante da televisão com meu irmão, minha mãe e outra pessoa, possivelmente algum vizinho. Deve ser Copa do Mundo, de outro modo minha mãe não estaria vendo futebol, e há bandeirolas verde-amarelas em casa e por toda parte. Dois meninos andando em cima de uma superbandeira do Brasil, pintada no asfalto da nossa rua, eis a primeira recordação que tenho dos meus primos de Campos. Atendendo a quatro toques curtos de buzina, minha mãe desce comigo para recebê-los, e mal dá tempo de ver a cor do carro que os deixou na calçada oposta. Sei de ouvir falar que é usual eles passarem as férias conosco, e não me parece novidade minha mãe se admirar de como o caçula está crescido, ou de como o grandão não corta os cabelos desde o último janeiro. Noutra ocasião vamos buscá-los na rodoviária, e hesito em reconhecer o primo caçula saltando do ônibus, cabeludo e com a roupa que o grandão usava nas férias passadas. Devido aos lapsos entre as férias, minhas lembranças dos primos são fragmentadas, tal como a cada reencontro nosso há sempre um certo desencaixe. Demora dias para perdermos a cerimônia e reatarmos nossas brincadeiras, nossas picuinhas e mesmo nossos pugilatos. Apanho do grandão e bato no caçula regularmente, sendo de idade e tamanho intermediários entre os dois; quando eles brigam entre si, me meto no meio e apanho daqui e de lá. Contudo, o saldo da estada dos primos de Campos é muito positivo, conto os dias para as férias de julho ou de verão a fim de estar de novo com eles. Sobretudo à medida que minha mãe vai nos deixando sair por aí, ciente de que em espaços restritos e abafados como nosso apartamento, brigas de crianças são inevitáveis. Com meu irmão é a mesma coisa, ele nunca me bateu na rua; em casa as surras dele também são de praxe, quanto mais durante as férias. A presença dos primos de Campos irrita meu irmão, que em vez de enfrentá-los, descarrega o mau humor em mim. Entendo o transtorno que é dividir sua cama comigo, mas é minha mãe quem me manda liberar meu quarto para os primos. De qualquer maneira, depois de uns dias acabo por me instalar num colchonete ao pé da cama deles. Às vezes desconfio que meu irmão sente ciúmes de mim, mas tão logo terminam as férias volto a andar na cola dele, que desde pequeno tenho como uma espécie de herói.
Da calçada da praia do Leme vejo meu irmão partir em velocidade com a bola a saltitar dos calcanhares para as coxas, ou de um ombro para o outro, ou equilibrada na cabeça a modo de foca. Recentemente ele até inventou de correr com o corpo todo arqueado para trás, prendendo a pelota com o queixo contra o peito, mas esse lance o juiz impugnou em nome do fair play. No futebol de praia é pecado deixar cair a bola, que a areia fofa amortece, e cansei de ver meu irmão atravessar o campo de gol a gol com tais malabarismos. Só seria possível desarmá-lo apelando para faltas grosseiras, com trancos e empurrões, mas o tronco largo e as coxas musculosas asseguram sua estabilidade. Rasteiras e carrinhos tampouco funcionam, porque seus pés são lépidos e voláteis. Resta o recurso de agarrar meu irmão pelos cabelos, que ele usa compridos para ficar meio argentino, conforme me disse um dia no ônibus. Ele me permite acompanhá-lo na ida e na volta da praia, contanto que eu não me identifique como irmão, pois acha ridículo ter parentes ou namoradas na torcida. Não sei se acredito muito nisso, ele é capaz de ter motivos para se envergonhar de mim ou dos primos. Contra a vontade dele, porém, desde que comecei a sair com os primos, não resisto a levá-los para assistir às partidas de sábado. Meu irmão faz questão de nos ignorar, mas o caçula levanta os braços e grita primão! cada vez que ele passa por nós com a bola em órbita e os cabelos ao vento. Já o grandão garante que um beque de verdade, num jogo oficial, racha o primo pelo meio se ele vier com essas graças.
Os primos insistem que eu passe as próximas férias na sua casa, mas não há jeito de convencerem minha mãe, que é tia torta deles. Por certo ela sabe que em Campos a gente pode zoar à vontade, pois eles não têm mãe que os reprima, e o pai passa um bom tempo embarcado nas plataformas de petróleo. Sempre tive curiosidade de conhecer meu tio, até para fazer uma ideia aproximada da aparência do irmão dele, meu pai. Eu era muito criança quando meu pai sumiu de casa, e em casa seu nome não se pronuncia. Uma única vez ouvi, de um delegado amigo de minha mãe, que o meu irmão tinha a quem puxar no futebol, mas o assunto morreu ali. Se eu forçar a memória mais e mais a fundo, até onde ela encosta na imaginação, procuro meu pai e quando muito consigo enxergar uma sombra. Não uma sombra no chão ou na parede, mas sentada para o jantar, vendo televisão, abrindo a geladeira. Uma sombra avulsa, sem um corpo que a justifique, às vezes eclipsando a minha mãe. Dois anos mais velho que eu, meu irmão é capaz de ter uma imagem paterna mais consistente, mas seu silêncio me passa a impressão de algum ressentimento. Ele tem idade para haver testemunhado eventuais desentendimentos do casal, quando não agressões físicas, e nesse caso é natural que tome as dores da mãe. Não ouso indagá-lo a respeito, mas num dia em que comento no ônibus a iminente chegada dos primos de Campos, ele reage com uma animosidade inesperada. Afirma entre dentes que os primos de Campos são dois filhos de uma puta, nem mais, nem menos. Foi tardia a mudança de voz do meu irmão, e ainda hoje ela falseia, passando do grave ao estridente sem que ele se dê conta. Assim ele declara para todo o ônibus ouvir que o nosso pai teve um rolo com a cunhada, a mãe dos primos de Campos, e com ela sumiu no mundo. Deve ser verdade, porque a história me soa familiar, dessas que crianças captam no ar misteriosamente e guardam para si como coisa roubada. Então percebo que nunca perguntei aos primos pela sua mãe, assim como a ausência do meu pai em casa nunca foi questionada por eles. O que eles têm são tias, muitas tias de que o caçula me fala, e até outro dia eu imaginava uma imensa família de Campos. As tias a quem ele se refere são conhecidas do pai, ora uma vizinha, ora uma paquera, ora uma viúva solitária, que tomam conta dos meninos enquanto ele trabalha nos campos de petróleo. É um estoque de tias, porque depois de abrigá-los uma vez, nenhuma se habilita a repetir a experiência.
Num verão qualquer, sem dinheiro para a condução, a caminho da praia o grandão nos ensina a pular da janela de um ônibus em movimento. Convém que nossa ação seja sincronizada, numa esquina em que o ônibus faz a curva aberta para a esquerda e pende feito uma lancha para a direita, facilitando o salto do caçula. No embalo do salto corremos desembestados até uma transversal mais tranquila, a fim de evitar que algum transeunte nos pare, porque o que não falta por aí é gente com instinto de polícia. Também acontece de um guarda verdadeiro querer nos pegar, mas em geral eles são gordos e não correm muito, com aquela farda e um calor do cão. A operação é tão bem-sucedida que passamos a repeti-la todo dia, no mesmo horário, na mesma esquina e na mesma linha de ônibus, cujo motorista já abana a cabeça ao nos ver subir. Até que um dia, ao dobrarmos a transversal de sempre, uma radiopatrulha nos espreita com dois pms armados do lado de fora. Somos jogados no banco traseiro do veículo, e no mesmo instante me lembro de quando minha mãe me levou ao médico a fim de me tratar da tal enurese noturna. Meu irmão tinha razão em se revoltar, porque apesar de crescido, quando eu dormia na cama dele molhava o lençol quase toda noite. Agora, o primeiro tapa na cara que levo da polícia não é por causa do ônibus, mas porque o cheiro de mijo infesta a viatura, tal qual se impregnava no colchão do meu irmão. Todo mijado, na delegacia de menores levo outros tapas e pescoções, sem contar as ameaças do xerife, um mastodonte de sunga que é o chefão da cela. O xerife, na língua dos policiais, é o maior arrebentador de pregas dos moleques que baixam no distrito. De volta em casa, é óbvio que não menciono o xerife para minha mãe, mas caio no choro ao contar os tapas que tomei na cara. Quanto aos primos, vi quando ficaram nus e apanharam com barras de ferro na sola dos pés, mas não sei explicar por que não foram soltos comigo; por sorte, minha mãe tem um amigo delegado que vai resgatá-los no dia seguinte. Ela promete não os denunciar ao pai, mas nos deixa de castigo até o fim das férias. Só nos concede sair em sua companhia para o culto dos sábados, bem no horário do campeonato de praia do meu irmão.
Meu irmão desfila pelo apartamento com suas chuteiras fosforescentes, saídas da caixa. O salário de professora não consente à minha mãe extravagâncias nos gastos domésticos, mas ela acabou cedendo aos pedidos do filho. Com certeza ouviu também os argumentos do delegado, ue faz bico de caça-talentos para clubes de futebol, e aceitou que o filho sacrificasse os estudos para se dedicar aos treinamentos nas categorias de base do Fluminense. É escusado dizer que meu irmão foi aprovado de cara nos testes, apesar do hábito de jogar descalço e de outros vícios trazidos do futebol de areia. Isso de vícios fica por conta do auxiliar técnico, um ex-zagueiro brucutu que proíbe firulas em campo, em prol de um futebol objetivo e rasteiro, com a bola rolando no gramado em linha reta. Estou reproduzindo ao pé da letra as palavras da minha mãe, que nunca entendeu de futebol e agora pega dois ônibus até Xerém para ver o filho jogar bola no centro de treinamento. Segundo ela, em duas semanas meu irmão se tornou a estrela da equipe juvenil, mesmo abdicando de chapéus e carretilhas para manter rigorosamente a bola no chão. E eis que me é dado ver, da beira do campo de Xerém, a técnica peculiar que ele desenvolveu para penetrar a defesa adversária, que consiste em correr em cima da bola. Pisa a bola com um pé, com o outro toma impulso no chão, sai acelerando que nem um patinador, troca os pés num zás-trás, adquire a velocidade da bola e ninguém o segura nem pelos cabelos, recém-cortados ao estilo reco. Enquanto o caçula exulta com a jogada do primão, o grandão retruca que isso que acabo de contar é cascata, nem um palhaço é capaz de correr em cima de uma bola de futebol. Claro, foi só um sonho que tive de madrugada e imediatamente acordei os dois para relatar. Quanto ao resto, porém, não há nenhum exagero, e de acordo com o delegado o clube vai apresentar uma bela proposta de contrato ao meu irmão, cuja destreza já chama a atenção de agentes estrangeiros. Aí o caçula diz que o namorado da mãe dele, meu pai?, é jogador profissional nas Arábias. Mentira, diz o grandão, verdade, diz o caçula. Não é, é, não é, é, não é, os dois se engalfinham e como de costume sobra para mim.
Meu irmão fecha as malas e comunica à mãe que está de mudança para o alojamento do clube, pois já não suporta a ideia de conviver com o primo. Estranho essa resolução em pleno mês de abril, longe das férias, mas naquela mesma noite o grandão aparece lá em casa e minha mãe já o espera com um prato de sopa. Quando pergunto pelo caçula, ela me arregala os olhos e o grandão paralisa de boca aberta, com a colher de sopa no ar. Disfarço no ato e pergunto pelo enterro do caçula, já relembrando perfeitamente o telefonema de Campos esta manhã: o grito pavoroso da minha mãe, a notícia da chacina, o irmão sobrevivente fugindo da cidade e a urina me escorrendo pela perna. Não é a primeira vez que apago da memória um acontecimento extraordinário, incompreensível, mais ou menos como se esfuma aos poucos um sonho de que acordamos sobressaltados. Foi por isso que comprei um caderno onde registro esses fatos no calor da hora, e ali está a cena narrada pela minha mãe que logo mais darei a ler à minha namorada. Graças a esse tipo de diário ela se aproximou de mim na escola, pois é dada à leitura, pretende estudar letras e jornalismo, se possível escrever roteiros para cinema e televisão. Aprecia meus textos, me corrige, me ensina expressões como “dar a ler”, mas tem restrições à forma elíptica como trato certos temas. Vai na certa me pedir mais pormenores da execução do meu primo caçula: o bando de moleques rendidos contra o muro, o número de tiros pelas costas, na cabeça, na nuca, se possível a idade dos garotos, a classe social, a cor da pele etc. Também sentirá falta de um depoimento mais pessoal, em que eu não tenha pudor em retratar o caçula como meu companheiro de infância mais querido e chorar cada porrada que lhe dei em sua curta existência. Procuro partilhar esses sentimentos com o grandão, mas ele passa os dias calado, se não trancado no quarto do meu irmão. Minha namorada tenta reanimá-lo desde o dia em que lhe foi apresentada, chegou mesmo a lhe sugerir que, a meu exemplo, ele mantivesse um diário para anotar as lembranças que o atormentam. Ela diz que escrever também é um modo de esquecer, mas o grandão não é chegado à escrita, mal concluiu o ensino fundamental. Tem dificuldade até para ler o nome do remetente de um envelope enviado pelo correio, que minha mãe lhe entrega com uma careta de desdém. Ele retira do envelope uma foto, que ato contínuo tenta esconder, mal me dando tempo de ver a cara do caçula, pequenino ainda, no colo de uma escurinha que a princípio tomo por uma babá. Nem bem o grandão despedaça a foto, reconstituo na mente a figura daquela mulher e não tenho dúvida de quem se trata.
Uma vez ouvi minha mãe dizer com sarcasmo que devia haver algum problema com a água de Campos, pois os sobrinhos que deixavam o Rio com cabelos meio encaracolados, seis meses depois regressavam com carapinha. Eu, que tenho cabelos bastante crespos, nunca dei muita atenção a essas nuances, a não ser quando o grandão passou a usar dreadlocks. O que de fato me surpreendia num primeiro momento, sempre que eles chegavam para as férias, era vê-los um pouco mais morenos do que eu os recordava. Com os dias, porém, eles como que iam clareando, logo voltavam a ser aos meus olhos aqueles primos caipiras dos velhos tempos, quando aparentemente não existia entre nós diferença de pele. Nunca mais me ocupei disso até ver a foto do caçula no colo da mãe, seus traços tão semelhantes, e sou obrigado a dar razão aos comentários do meu irmão, para quem os primos de Campos são bem mulatos. Mas é lógico que são afrodescendentes, segundo minha namorada, que já publicou no jornal do grêmio estudantil um artigo sobre a negritude. Confesso a mim mesmo que por um instante vacilei, mas agora posso lhe jurar que ter primos-irmãos afrodescendentes é motivo de orgulho para mim. Ela acha graça e diz que não poderia ser de outra maneira, pois em boa medida afrodescendente eu também sou. Não sei, as pessoas costumam dizer que sou a cara do meu irmão, que por sua vez é igual à minha mãe, com seus cabelos lisos e alourados. Já meu pai, nas palavras da minha namorada, não é propriamente um escandinavo, e sei lá de onde ela tirou isso, pois em casa não há nem uma foto dele. Ela pensava que eu fosse filho daquele homem barrigudo, o delegado que não raro janta aqui em casa e se deixa estar até mais tarde. Minha namorada fica com o pé atrás ao saber que minha mãe tem intimidade com gente da polícia, especialmente agora que damos guarida a um fugitivo. Então a tranquilizo como minha mãe me tranquilizou, pois não há lugar onde o grandão possa estar mais protegido; a milícia de Campos não vai querer arrumar encrenca no território da milícia do Rio.
Eu não tinha notícia do meu irmão havia meses, desde que o delegado nos avisou que ele estava aos cuidados do departamento médico do clube. Na época ele não soube ou não quis entrar em detalhes, apenas resmungou qualquer coisa de morcego, e entendi que ele fora mordido por um bicho desses no alojamento. Agora meu irmão reaparece em casa muito acima do peso, puxando de uma perna, caladão, nada a ver com aquele campeão de quem eu tanto falava para a minha namorada. É o delegado quem se lamenta por ele, e parece que o culpado pela sua lesão é mesmo o tal morcego. Se fosse o meu irmão, o delegado acertaria as contas com o morcego, e custei a atinar que esse é o apelido do volante que ceifou sua carreira futebolística. Minha mãe tem orado muito, tem fé em que meu irmão ainda venha a jogar no time principal do Fluminense, mas o delegado, embora religioso como ela, é menos crente. A pedido dele, meu irmão arria as calças e aponta as feias cicatrizes, para mostrar como o crioulo fraturou seus ossos, tendões e ligamentos com uma voadora de dois pés, um golpe conhecido na capoeira como voo do morcego. Certas expressões eram desde sempre tão corriqueiras aos meus ouvidos, que à força do uso meio que perderam o gume. Mas hoje, cada vez que escuto um “crioulo” à mesa de jantar, automaticamente me viro em direção ao meu primo, que volta e meia já está comendo na cozinha. Minha namorada é outra que reagiria a esse vocabulário, mas ela deixou de vir jantar em casa por definitiva incompatibilidade com o delegado. Também perdemos a privacidade para nossas noites de amor, devido ao retorno ao meu quarto do grandão, com quem voltei a alternar cama e colchonete. Costumo namorá-la em casa de tarde, à saída da escola, quando o meu primo vai para o curso supletivo em que ela o matriculou. À noitinha caminhamos de mãos dadas cinco quadras até a entrada do prédio onde mora seu outro namorado. Ela sempre sugere que eu dê uma subida, mas prefiro não ver os dois juntos, mesmo tendo aprendido a não ser possessivo. Compreendo sua afeição por ele, que é um homem mais velho, professor de história e militante de movimentos sociais. É ele quem conta a ela, que por sua vez me conta, dos grupos armados que ao cair da noite saem vestidos de branco em expedições punitivas pelas ruas do bairro. Não conheço bem o professor, que talvez seja chegado a fantasias, ou faça pose de paladino para impressionar a namorada. No entanto, o grandão já tinha me manifestado a intenção de voltar para Campos, onde apesar de tudo se sentirá mais seguro do que aqui. Não descarta sequer atender aos apelos da mãe, que tem lhe escrito seguidamente de um país estrangeiro. Ele me chama a atenção para os sujeitos parrudos que têm frequentado o quarto do meu irmão, apresentados à minha mãe como fisioterapeutas do clube. Diz o grandão que esses tipos o encaram quando cruzam com ele e já nem dissimulam as armas que levam debaixo da camisa. Numa noite agitada, aflito para tirar a coisa a limpo, espero meu primo adormecer e saio ao corredor, divisando a risca de luz por baixo da porta do meu irmão. Não sou mais criança, posso falar com ele de homem para homem, e com essa disposição bato no seu quarto. A porta está trancada, e ao abri-la ele se mostra desapontado por me ver ali, como se esperasse outra pessoa. Está praticamente nu, usa apenas uma sunga, assim como seu amigo, um gigante que bate uma fileira de cocaína na mesa de cabeceira, me lembrando o xerife de uma cela onde estive preso tempos atrás. Meu irmão pergunta o que pretendo ali, mas balbucio alguma coisa que nem eu mesmo entendo. Então ele segura minha cara com as duas mãos, bem a modo de me beijar a boca, depois recua a cabeça e me dá uma cabeçada no nariz. Com gosto de sangue, deixo seu quarto meio às tontas, tateando as paredes do corredor, quase sentindo falta de chorar no regaço da minha mãe. Ouço música vindo do quarto dela, e me surpreende que sua porta também esteja trancada. Ela vem me atender envolta num lençol que deixa à mostra seu colo muito branco e cheio de sardas, tendo ao fundo o delegado debaixo das cobertas, um revólver com o coldre na mesinha de lado. Parecendo encabulada, minha mãe diz que posso perguntar o que bem entender. Olho para um vazio entre eles dois e pergunto se é verdade que meu irmão pertence a uma espécie de clã que sai por aí caçando pretos. A orquestra faz uma pausa no filme épico da televisão, e pela janela se ouve o batuque do terreiro de candomblé, que toda sexta-feira à noite arrepia minha mãe. Em seguida o delegado me diz para deixar de viadagem, pois meu irmão e seus amigos às vezes saem para se divertir como todos os rapazes da sua idade. Com a violência reinante nas ruas, é claro que andam armados, para o caso de defrontarem com delinquentes. Minha mãe assente com a cabeça, mas não sei se acredito muito nisso.
Não faço ideia de qual era a matéria, porque passei a aula inteira absorto em fortes pressentimentos, que se dissipam tão logo soa a campainha. Só ao me levantar, noto a mancha úmida na minha jeans azul-clara, à altura da virilha, semelhante à que se vê nos sovacos de camisas em dias de verão. Saio da sala a me esgueirar e escapo da escola temendo topar com a minha namorada, que com toda a nossa intimidade ainda não sabe dos meus problemas urinários. Já na rua, o calor do meio-dia me permite tirar a camisa, que penduro na frente da calça à maneira de avental para esconder a nódoa. Em casa, vou direto ao quarto a fim de mudar de roupa, e tenho uma visão estranha. Vejo as costas nuas do grandão deitado na cama, acho que vejo os cabelos castanhos da minha namorada, acho que vejo um cotovelo dela, a sola de um pé dela, acho que escuto um sussurro dela, mas torno a fechar a porta sem que eles deem por mim. Vou à cozinha, onde minha mãe tira do forno um bolo de laranja e não repara na minha indumentária. Abro uma cerveja, bebo do gargalo, ouço minha mãe fungar, percebo que está chorando e lhe pergunto se o delegado a magoou, se por acaso ergueu a mão para ela, mas ela soluça e não me responde. Escuto os passos da minha namorada deixando o apartamento e por um triz não me lembro do meu pressentimento na aula de física. A porta do meu quarto ficou aberta, e já do corredor vejo meu primo examinando uma cartolina colorida. É um mapa da América do Sul que minha namorada lhe deu, e ele me aponta um país ao norte do Brasil que julguei ser a Venezuela mas era a Colômbia. É para lá que esta noite ele vai ao encontro da mãe, que lhe remeteu algum dinheiro e a passagem de ônibus. Da sua sacola entreaberta retira um envelope, onde há um recorte de jornal colombiano que ele quer me deixar de lembrança. Nas letras borradas do jornal, como que impressas com excesso de tinta, posso ler um artigo sobre o veterano craque de futebol que veio encerrar sua carreira no Club Deportivo Junior Barranquilla. Trata-se de um autêntico gitano que ainda jovem deixou seu país natal para rodar o mundo, notabilizando-se pelos gols de bicicleta, los balones por alto y el fenomenal control de la pelota. Na foto com a legenda El Malabarista adivinho meu pai numa camisa de listras verticais, com a bola equilibrada na testa. É uma foto meio escura, talvez tirada à contraluz, que mal me permite distinguir suas feições. Mais parece a sombra de um rosto, mas a minha namorada não hesitaria em dizer que se trata de um afrodescendente. Meu primo fecha a sacola, me dá um abraço apertado e diz que apesar de gostar da minha namorada, nunca passou dos limites com ela. Não sei se acredito muito nisso, mas lhe peço que me espere enquanto me lavo, me troco e junto duas mudas de roupa na mochila, meu caderno de notas e só. Na cozinha ele se despede da tia torta, que agora chora francamente, ainda mais quando lhe peço alguma grana, mão-fechada como é. Digo que em último caso o grandão me adiantará o valor da passagem, mas ela já tinha sacado dinheiro no banco, na certeza de que eu partiria com ele. Acaba de fechar uma caixa de papelão com o bolo de laranja, que com jeito cabe na minha mochila, e desce conosco no elevador até a entrada do prédio. Beijo-lhe os olhos e lhe rogo que pare com aquela choradeira, porque mandarei notícias e jamais lhe darei desgosto. No asfalto da rua, olhando bem, dá para vislumbrar os vestígios de uma superbandeira do Brasil. Do Rio a Barranquilla são seis dias de ônibus.

Chico Buarque, in Anos de chumbo e outros contos

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