Um cachorro tem que ter cheiro de cachorro. Pois foi esse o pensamento iluminado que ocorreu ao homem no meio de um dia em que, há vários dias, ele se achava num nevoeiro morno de sentimentos. O pensamento sobre o cachorro iluminou-o de repente e abriu de repente uma clareira. O homem ficou muito alegre – talvez tivesse acabado de pôr os pontos nos is. Ficou alegre e passou a olhar cada coisa como se enfim tivesse acordado de uma longa doença. Um cachorro tem que ter cheiro de cachorro. O homem, através desse pensamento, aceitou-se totalmente como ele era, como se admitisse que um homem tem que ter cheiro de homem, e que a vida de um homem é a sua vida nua. Na rua, por onde caminhava para ir ao trabalho, passou por uma mulher que, inocente do passante, carregava um embrulho de compras. Ele sorriu porque ela não sabia que ele sabia que, assim como um cachorro é um cachorro, aquela mulher era aquela mulher. O homem se emocionou com o fato de ele ter acabado de lavar o mundo, as águas ainda escorriam frescas. Ele ia trabalhar no Banco. E o Banco, é horrível, por Deus. Mas, lavado com águas frescas, um banco é um banco.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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