Na
década de 1990, esperava-se que os próprios profissionais da saúde
mental procurassem aconselhamento e orientação constantes para
manter o bem-estar emocional e mental. Certa vez, tentei seguir
carreira na psicologia, mas percebi que os problemas que precisava
diagnosticar eram extremamente emocionais ou subjetivos demais para
tolerar uma análise reflexiva, e as ferramentas com que eu contava
eram pueris ou pretensiosas. Resumindo, eu não tinha temperamento
para ser psicólogo, e, ao ser internado no Hospício St. Margot pela
segunda vez na minha existência, embora pela primeira naquela vida,
senti uma mistura de fúria e orgulho ao ver que minha sanidade,
mantida intacta apesar de todos as provações, poderia ser mal
interpretada pelos mortais ignorantes que me rodeavam.
Os
profissionais da saúde mental da década de 1960 fazem suas
contrapartes da década de 1990 parecerem Mozarts espezinhando as
obras inferiores de Salieri. Suponho que deva me considerar sortudo
pelo fato de algumas das técnicas experimentais dos anos 1960 não
terem chegado à cosmopolita Nortúmbria. Não testaram LSD ou
ecstasy em mim, nem me convidaram a discutir minha sexualidade, já
que nosso incomparável psiquiatra, dr. Abel, considerava Freud
insalubre. O primeiro a descobrir isso foi a Tique, uma mulher
infeliz que na verdade se chamava Lucy, cuja síndrome de Tourette
fora tratada com uma mistura de apatia e brutalidade. Se por acaso
nossos vigias tivessem alguma noção sobre terapia da quebra de
hábito, colocavam-na em prática ao bater na lateral da cabeça de
Lucy com as palmas abertas sempre que ela era tomada por um tique ou
grunhia, e, se como consequência disso ela ficasse ainda mais
alterada — o que era frequente quando provocada —, dois deles se
sentavam em cima dela, um nas pernas, um no peito, até que ela quase
desmaiasse. Na única vez em que tentei intervir, recebi o mesmo
tratamento e fui imobilizado abaixo de Bill Feio, ex-presidiário e
enfermeiro-chefe do turno diurno, com a aprovação vociferante de
Clara Watkins e do Novato, que trabalhara lá por seis meses e ainda
não havia revelado o próprio nome. Mostrando iniciativa, o Novato
ficou em cima dos meus pulsos, enquanto Bill Feio me explicava que eu
estava me comportando de maneira muito impertinente e prejudicial, e
só porque eu pensava que era médico não significava que sabia de
qualquer coisa. Chorei por me sentir impotente e frustrado, e ele me
deu um tapa, o que despertou em mim uma raiva que canalizei para
tentar conter as lágrimas e converter a autopiedade em fúria, mas
não consegui.
— Pênis!
— gritou Tique durante nossa sessão de grupo semanal. — Pênis
pênis pênis!
Com
seu minúsculo bigode tremendo como um rato assustado acima do lábio
superior, o doutor Abel clicou a caneta para guardar a ponta.
— Calma,
Lucy... — disse.
— Vamos,
me dá, me dá, vamos, vamos, vamos! — gritou ela.
Observei
o progresso do rubor que se estendia pelas faces do doutor Abel.
Tinha uma luminescência fascinante, quase visível nos vasos
capilares, e pensei por um instante que, se a expansão daquele rubor
representava a velocidade de seu fluxo sanguíneo através da derme
superficial, ele deveria considerar seriamente passar a praticar mais
exercícios e submeter-se a uma boa massagem. Seu bigode saíra de
moda um dia depois de Hitler invadir a Tchecoslováquia, e a única
coisa que o ouvi dizer e que fez sentido foi:
— Doutor
August, um homem não pode vivenciar um isolamento maior do que se
ver sozinho em meio a uma multidão. Ele pode acenar, sorrir e dizer
a coisa certa em cada ocasião, mas esse fingimento só faz com que
sua alma perca cada vez mais a afinidade com os homens.
Perguntei
em que biscoito da sorte ele havia lido isso, ele me olhou confuso e
perguntou o que eram biscoitos da sorte e se eram feitos com
gengibre.
— Me
dá, me dá! — gritava a Tique.
— Isso
é uma perda de tempo — disse o doutor Abel com a voz trêmula, no
momento em que Lucy levantava o avental para nos mostrar suas enormes
roupas íntimas e começou a dançar, o que fez Simon, que se
encontrava no pior momento de sua crise de bipolaridade, começar a
chorar, o que fez Margaret começar a balançar o corpo, o que fez
que Bill Feio invadir a sala com um porrete na mão e uma camisa de
força a caminho, enquanto o doutor Abel corria para longe já com as
pontas das orelhas queimando como luzes de freio acesas.
Tínhamos
permissão para receber visitas uma vez por mês, mas ninguém
apareceu.
Simon
disse que era melhor assim, que não queria ser visto daquele jeito,
que sentia vergonha.
Margaret
gritou e arranhou as paredes até que as unhas ficassem
ensanguentadas e ela tivesse de ser levada ao quarto e sedada.
Com
o rosto coberto de saliva, Lucy disse que não éramos nós quem
devíamos nos sentir envergonhados, mas eles. Não disse quem eram
“eles”, nem precisava, porque simplesmente tinha razão.
Após
dois meses, eu estava pronto para ir embora.
— Agora
eu vejo que sofri um colapso nervoso — expliquei calmamente,
sentado à mesa do doutor Abel. — É óbvio que eu preciso de
aconselhamento, mas só me resta expressar minha profunda gratidão
ao senhor por ter me ajudado a superar esse episódio.
— Doutor
August, acho que o senhor sofreu mais do que um simples colapso
nervoso — explicou o doutor Abel, alinhando a caneta com a borda
superior de seu bloco de notas. — Você padeceu de um episódio
completo de delírio, que, acredito, é sinal de problemas
psicológicos mais complexos.
Olhei
para o doutor Abel como se fosse pela primeira vez e me perguntei o
que poderia significar sucesso para ele. Não necessariamente uma
cura, concluí, contanto que o tratamento fosse interessante.
— E
o que o senhor sugere? — perguntei.
— Quero
manter você aqui por mais um tempo. Estão lançando alguns
medicamentos fascinantes, e acho que podem ser exatamente do que você
precisa...
— Medicamentos?
— As
fenotiazinas têm avançado de forma bem promissora...
— Isso
é inseticida.
— Não...
não, doutor August, não. Entendo sua preocupação de médico, mas
lhe asseguro que, quando me refiro às fenotiazinas, estou falando
dos derivados...
— Acho
que gostaria de uma segunda opinião, doutor Abel.
Ele
hesitou, e notei um arroubo de orgulho em seu rosto ante aquele
princípio de conflito.
— Eu
sou um psiquiatra totalmente qualificado, doutor August.
— Então,
como psiquiatra totalmente qualificado, o senhor sabe como é
importante ter a confiança do paciente em qualquer tratamento.
— Sei
— admitiu ele a contragosto. — Mas eu sou o único médico
qualificado nesta ala...
— Isso
não é verdade. Eu sou qualificado.
— Doutor
August — disse ele abrindo um sorriso —, o senhor está doente.
Não está apto a praticar a medicina, muito menos no senhor mesmo.
— Quero
que você chame minha esposa — retruquei firmemente. — Ela tem
poder legal sobre o que o senhor pode fazer comigo. Eu me recuso a
tomar fenotiazinas, e, se o senhor vai me forçar, vai precisar da
autorização do meu parente mais próximo. E ela é meu parente mais
próximo.
— Pelo
que entendi, doutor August, ela é parcialmente responsável por
sugerir seu confinamento e seu tratamento.
— Ela
sabe distinguir um medicamento bom de outro ruim — corrigi. —
Telefone para ela.
— Vou
pensar.
— Não
pense, doutor Abel. Ligue.
Até
hoje não sei se ele ligou.
Pessoalmente,
duvido.
Quando
me deram a primeira dose do medicamento, tentaram fazer de forma
dissimulada. Com aparência de inocente e dona de um prazer malicioso
ao exercer sua função, Clara Watkins foi enviada com uma bandeja
contendo as pílulas habituais — as quais peguei na palma da mão —
e uma seringa.
— Vamos
lá, Harry — censurou ela ao ver minha cara. — Isto aqui é bom
para você.
— O
que é? — exigi saber, já suspeitando.
— É
um remédio! — entoou ela, animada. — Você adora tomar seus
remédios, não é?
Bill
Feio estava no fundo do quarto com os olhos fixos em mim. Sua
presença confirmou minhas suspeitas: ele já estava esperando para
atacar.
— Eu
exijo ver um termo de consentimento legal assinado pelo meu parente
mais próximo.
— Tome
logo isso — disse ela agarrando minha manga, a qual eu puxei.
— Eu
exijo um advogado, um representante justo, imparcial.
— Isto
aqui não é uma prisão, Harry! — respondeu ela em tom amigável,
meneando as sobrancelhas para Bill Feio. — Aqui não tem advogados.
— Eu
tenho direito a uma segunda opinião!
— O
doutor Abel só está fazendo o que é melhor para você. Por que
dificultar as coisas? Vamos, Harry...
Ao
ouvir isso, Bill Feio me deu um abraço de urso por trás e, não
pela primeira vez, eu me peguei pensando por que em mais de duzentos
anos de vida eu nunca me dei ao trabalho de aprender algum tipo de
arte marcial. Ele era um ex-condenado que descobriu que ser
enfermeiro de hospício era como estar na prisão, mas melhor.
Exercitava-se uma hora por dia no jardim particular da instituição
e tomava esteroides que faziam com que sua testa reluzisse de suor a
todo momento e, suspeito, também com que seus testículos
encolhessem, o que ele compensava com mais exercícios e, claro, mais
esteroides. Qualquer que fosse o estado de suas gônadas, seus braços
eram mais musculosos que minhas pernas e me envolveram com força o
bastante para me levantar da minha cadeira enquanto eu inutilmente
chutava o nada.
— Não
— implorei. — Por favor não faz isso por favor por favor não...
Clara
estapeou meu braço para deixar uma marca avermelhada, então
conseguiu perder a veia por completo. Dei um chute, e Bill Feio me
apertou com tanta força que meus olhos se injetaram de sangue e
comecei a perder a consciência. Senti a agulha entrar, mas não
sair, então eles me largaram no chão e me disseram pra não,
— Ser
tão estúpido, Harry! Por que você precisa ser sempre tão estúpido
com o que é bom para você?
Eles
me deixaram lá, com o peso do corpo sobre as pernas escancaradas,
esperando surtir efeito. Minha mente disparou enquanto eu tentava
pensar num antídoto químico facilmente disponível ao veneno que
invadia meu sistema, mas eu só havia sido médico durante uma vida e
ainda não tivera tempo de conhecer esses medicamentos modernos.
Rastejei pelo chão até o jarro de água e bebi tudo, então me
deitei de costas no meio do quarto e tentei me acalmar, desacelerar o
pulso e a respiração, numa tentativa inútil de limitar a
circulação do medicamento. Tive a ideia de monitorar meus próprios
sintomas, então me virei no chão para manter o relógio à vista e
perceber a passagem do tempo. Após dez minutos, senti uma leve
tontura, mas passou. Após quinze minutos, percebi que meus pés
estavam do outro lado do mundo, que alguém havia me serrado ao meio,
mas mantido os nervos conectados, embora os ossos estivessem
quebrados e outra pessoa controlasse meus pés. Eu sabia que aquilo
era impossível, mas mesmo assim acreditei na explicação com uma
resignação que me impediu de lutar contra a simples realidade da
situação.
Tique
chegou, se aproximou de mim e disse,
— Tá
fazendo o quê?
Achei
que ela não precisava de resposta, então não me dei ao trabalho.
A
saliva escorria por um lado do meu rosto. Até que foi agradável, o
frio do cuspe contra o calor da minha pele.
— Tá
fazendo o quê tá fazendo o quê tá fazendo o quê? — gritou ela,
e eu me perguntei se na Nortúmbria já haviam ouvido falar de
epinefrina, ou se esse tipo de medicamento ainda seria criado.
Ela
me sacudiu por um instante e foi embora, mas o efeito perdurou,
porque continuei tremendo e batendo a cabeça no chão, e eu sabia
que havia me molhado, mas isso também foi agradável, interessante e
diferente como a saliva, a urina adotando a temperatura do meu corpo
até que secou e começou a incomodar, e além disso era um longo
caminho, então Bill Feio chegou lá e seu rosto havia sido
destruído. Tinha se esborrachado no teto como um tomate maduro, o
crânio esmagado para dentro, e só restaram um nariz, dois olhos e
uma boca maliciosa flutuando nos restos de sangue e cérebro
encharcado ao redor, e quando ele se inclinou sobre mim pedacinhos de
seu cerebelo pingavam de sua bochecha, deslizavam para o canto da
boca e formavam uma lágrima de matéria cinzenta-rosa que ficava
pendurava no lábio inferior e caía, como purê de maçã da colher
de um bebê, direto no meu rosto, e eu gritava sem parar até que ele
me estrangulou e eu parei de gritar.
É
óbvio que a essa altura eu já havia perdido a noção do tempo, e
com isso parei de tentar chegar a um diagnóstico através do
exercício de contagem do tempo.
Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August
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