domingo, 11 de setembro de 2022

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 6


O nome dele era Franklin Phearson.
Foi o segundo espião que conheci na vida e estava sedento por conhecimento.
Ele surgiu durante minha quarta vida, em 1968.

Eu exercia a medicina em Glasgow, e minha esposa me deixara. Eu tinha 54 anos e era um homem destruído. O nome dela era Jenny, e eu a amava e lhe contei tudo. Jenny era cirurgiã, uma das primeiras mulheres daquele setor; eu, um neurologista com reputação de trabalhar em pesquisas pouco ortodoxas e, por vezes, antiéticas — embora legais. Ela acreditava em Deus. Eu não. Muito se pode dizer da minha terceira vida, mas por ora afirmo apenas que a minha terceira morte, sozinho num hospital japonês, me convencera da insignificância de tudo. Eu vivera e morrera, e nem Alá, Jeová, Krishna, Buda ou os espíritos dos meus ancestrais desceram para acabar com meu medo, em vez disso eu renascera exatamente onde minha existência se iniciara, de volta à neve, de volta à Inglaterra, de volta ao passado onde tudo começara.
Minha perda de fé não foi reveladora nem intensamente angustiante. Foi meramente resultado de uma ampla e prolongada resignação, resignação essa que os eventos da minha vida só fizeram reforçar, até que me vi forçado a concluir que qualquer conversa que eu tivera com uma deidade foram via de uma só mão. Minha morte e meu renascimento onde tudo havia começado concluíam meu raciocínio com maestria e um cansativo ar de inevitabilidade, e observei tudo isso com a decepção e o desapego próprios de um cientista cujo conteúdo dos tubos de ensaio não havia precipitado.
Eu passara uma vida inteira rezando por um milagre, e nenhum se realizara. Então, passei a olhar para a capela enfadonha dos meus ancestrais e não via outra coisa senão vaidade e ganância, ouvia o chamado para a oração e pensava em poder, sentia cheiro de incenso e me pegava pensando no desperdício de tudo aquilo.
Na quarta vida, virei as costas para Deus e busquei a ciência para obter uma explicação. Estudei como nenhum homem jamais estudou — física, biologia, filosofia —, me esforcei ao máximo para me tornar o jovem mais pobre na universidade de Edimburgo, me formando como melhor aluno da classe de medicina. Jenny se sentiu atraída pela minha ambição, e vice-versa, pois os tacanhos haviam rido quando ela pegou o bisturi pela primeira vez, até que perceberam a precisão de suas incisões e a confiança com que ela manuseava a lâmina. Vivemos juntos durante dez anos, num pecado pouco corrente e politicamente incorreto para a época, até que, por fim, nos casamos em 1963, durante aquela onda de alívio que se seguiu ao fim da Crise dos Mísseis em Cuba; choveu no dia, e ela gargalhou e disse que ambos merecíamos aquilo, e eu estava apaixonado.
Tão apaixonado que, certa noite, sem motivo especial e sem pensar muito, eu lhe contei tudo.
Meu nome é Harry August — disse eu. — Meu pai se chama Rory Edmond Hulne, minha mãe morreu no parto. Esta é a minha quarta vida. Eu vivi e morri muitas vezes até agora, mas minha vida é sempre a mesma.
De brincadeira, ela deu um soco de leve no meu peito e me pediu que parasse com aquela bobagem, mas eu continuei:
Daqui a algumas semanas, um escândalo vai tomar conta dos Estados Unidos e derrubar o presidente Nixon. A pena de morte vai ser abolida na Inglaterra, e os terroristas do Setembro Negro vão abrir fogo no aeroporto de Atenas.
Você devia estar no noticiário, devia mesmo.
Três semanas depois explodiu o escândalo de Watergate. No começo, não teve grande importância, com assessores sendo demitidos do outro lado do oceano. Quando a pena de morte foi abolida, o presidente Nixon estava participando de audiências no Congresso, e, quando os terroristas do Setembro Negro atiraram em turistas no aeroporto de Atenas, já ficara claro que Nixon estava de saída.
Curvada e cabisbaixa, Jenny se sentou na beirada da cama. Eu aguardei. Eu vinha gestando essa expectativa durante quatro vidas. Jenny tinha as costas ossudas e a barriga quente, o cabelo cortado curto de propósito, para desafiar os conceitos dos colegas cirurgiões, e um rosto suave que adorava sorrir quando ninguém a observava.
Como você sabia... tudo isso... como sabia o que estava por acontecer? — perguntou ela.
Eu disse. É a quarta vez que vivo isso, e minha memória é excepcional.
Como assim a quarta vez? Como é possível que seja a quarta vez?
Não sei. Eu me tornei médico para tentar descobrir. Conduzi experiências em mim mesmo, analisei meu sangue, meu corpo, meu cérebro, tentei descobrir se existe alguma coisa em mim que... não esteja certo. Eu me equivoquei. O problema não é médico, ou, se é, ainda não sei como encontrar um antídoto. Eu já teria desistido desse trabalho há muito tempo, teria tentado algo novo, mas então conheci você. Eu tenho a eternidade pela frente, mas quero você agora.
Quantos anos você tem? — perguntou ela.
Cinquenta e quatro... Duzentos e seis.
Eu não... eu não acredito nisso. Não me entra na cabeça que você acredite numa coisa dessas.
Lamento.
Você é espião?
Não.
Está doente?
Pelo menos do ponto de vista acadêmico, não.
E então?
Então o quê?
Por que me disse essas coisas?
É a verdade. Eu quero lhe contar a verdade.
Ela subiu na cama ao meu lado, pegou meu rosto e me olhou profundamente nos olhos.
Harry — disse ela, e eu senti o medo em sua voz. — Eu preciso que você me diga. Você está falando sério?
Sim — respondi, e o alívio que senti quase me explodiu de dentro para fora. — Estou, sim.
Na mesma noite ela pôs o casaco por cima do vestido, calçou um par de botas de chuva e me deixou. Foi para a casa da mãe, que vivia em Northferry, logo depois de Dundee, e deixou na mesa um bilhete dizendo que precisava de um tempo. Deixei passar um dia e liguei; sua mãe me disse para ficar longe. Deixei passar mais um dia, liguei outra vez e implorei que Jenny me ligasse de volta. Ao terceiro dia, quando liguei, o telefone havia sido desconectado. Jenny levara o carro, então fui de trem até Dundee e fiz de táxi o restante do trajeto. Fazia um tempo lindo, o mar era um espelho d’água, e o sol avermelhado e baixo estava tão encantado com a cena que parecia não querer se pôr. Perto de um penhasco cinzento, o chalé da mãe de Jenny era uma coisinha pequena e branca com uma porta principal em que só uma criança era capaz de passar. Quando bati, a mãe, uma mulher perfeitamente projetada para atravessar aquela passagem diminuta, atendeu e abriu porta sem tirar a correntinha.
Ela não está em condições de vê-lo — soltou ela. — Lamento, mas você precisa ir embora.
Mas eu preciso ver Jenny — implorei. — Preciso ver minha esposa.
Você precisa ir agora, doutor August! — exclamou ela. — Sinto muito que seja dessa forma, mas é nítido que você precisa de ajuda.
Ela bateu a porta severamente, e escutei o ruído do trinco se fechando atrás da porta de madeira branca. Permaneci lá e bati com força na porta, depois nas janelas, e pressionei o rosto contra o vidro. Elas apagaram as luzes para que eu não descobrisse onde se encontravam, ou talvez esperando que eu me cansasse e fosse embora. O sol se pôs, e eu me sentei no alpendre e chorei e gritei por Jenny, implorei que ela falasse comigo, até que por fim sua mãe ligou para a polícia e, em vez de Jenny, foram eles que falaram comigo. Fui jogado numa cela com um homem preso por roubar uma casa. Ele riu de mim, e eu o estrangulei a ponto de deixá-lo a poucos batimentos cardíacos da morte. Então me puseram na solitária e me deixaram lá por um dia, até que um médico foi me ver e me perguntou como eu me sentia. Ele auscultou meu peito, e eu salientei do jeito mais educado possível que aquela não era a forma mais racional de diagnosticar minha doença mental.
Você se considera um doente mental? — perguntou ele depressa.
Não — retruquei. — Mas reconheço um mau médico quando vejo um.
Eles devem ter apressado a papelada, porque fui levado para o hospício no dia seguinte. Quando o vi, dei uma risada. O letreiro na porta dizia Hospício St. Margot. Alguém havia apagado o “para os Desafortunados”. Era o hospício em que eu me jogara para a morte na segunda vida, aos sete anos.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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