O
nome dele era Franklin Phearson.
Foi
o segundo espião que conheci na vida e estava sedento por
conhecimento.
Ele
surgiu durante minha quarta vida, em 1968.
Eu
exercia a medicina em Glasgow, e minha esposa me deixara. Eu tinha 54
anos e era um homem destruído. O nome dela era Jenny, e eu a amava e
lhe contei tudo. Jenny era cirurgiã, uma das primeiras mulheres
daquele setor; eu, um neurologista com reputação de trabalhar em
pesquisas pouco ortodoxas e, por vezes, antiéticas — embora
legais. Ela acreditava em Deus. Eu não. Muito se pode dizer da minha
terceira vida, mas por ora afirmo apenas que a minha terceira morte,
sozinho num hospital japonês, me convencera da insignificância de
tudo. Eu vivera e morrera, e nem Alá, Jeová, Krishna, Buda ou os
espíritos dos meus ancestrais desceram para acabar com meu medo, em
vez disso eu renascera exatamente onde minha existência se iniciara,
de volta à neve, de volta à Inglaterra, de volta ao passado onde
tudo começara.
Minha
perda de fé não foi reveladora nem intensamente angustiante. Foi
meramente resultado de uma ampla e prolongada resignação,
resignação essa que os eventos da minha vida só fizeram reforçar,
até que me vi forçado a concluir que qualquer conversa que eu
tivera com uma deidade foram via de uma só mão. Minha morte e meu
renascimento onde tudo havia começado concluíam meu raciocínio com
maestria e um cansativo ar de inevitabilidade, e observei tudo isso
com a decepção e o desapego próprios de um cientista cujo conteúdo
dos tubos de ensaio não havia precipitado.
Eu
passara uma vida inteira rezando por um milagre, e nenhum se
realizara. Então, passei a olhar para a capela enfadonha dos meus
ancestrais e não via outra coisa senão vaidade e ganância, ouvia o
chamado para a oração e pensava em poder, sentia cheiro de incenso
e me pegava pensando no desperdício de tudo aquilo.
Na
quarta vida, virei as costas para Deus e busquei a ciência para
obter uma explicação. Estudei como nenhum homem jamais estudou —
física, biologia, filosofia —, me esforcei ao máximo para me
tornar o jovem mais pobre na universidade de Edimburgo, me formando
como melhor aluno da classe de medicina. Jenny se sentiu atraída
pela minha ambição, e vice-versa, pois os tacanhos haviam rido
quando ela pegou o bisturi pela primeira vez, até que perceberam a
precisão de suas incisões e a confiança com que ela manuseava a
lâmina. Vivemos juntos durante dez anos, num pecado pouco corrente e
politicamente incorreto para a época, até que, por fim, nos casamos
em 1963, durante aquela onda de alívio que se seguiu ao fim da Crise
dos Mísseis em Cuba; choveu no dia, e ela gargalhou e disse que
ambos merecíamos aquilo, e eu estava apaixonado.
Tão
apaixonado que, certa noite, sem motivo especial e sem pensar muito,
eu lhe contei tudo.
— Meu
nome é Harry August — disse eu. — Meu pai se chama Rory Edmond
Hulne, minha mãe morreu no parto. Esta é a minha quarta vida. Eu
vivi e morri muitas vezes até agora, mas minha vida é sempre a
mesma.
De
brincadeira, ela deu um soco de leve no meu peito e me pediu que
parasse com aquela bobagem, mas eu continuei:
— Daqui
a algumas semanas, um escândalo vai tomar conta dos Estados Unidos e
derrubar o presidente Nixon. A pena de morte vai ser abolida na
Inglaterra, e os terroristas do Setembro Negro vão abrir fogo no
aeroporto de Atenas.
— Você
devia estar no noticiário, devia mesmo.
Três
semanas depois explodiu o escândalo de Watergate. No começo, não
teve grande importância, com assessores sendo demitidos do outro
lado do oceano. Quando a pena de morte foi abolida, o presidente
Nixon estava participando de audiências no Congresso, e, quando os
terroristas do Setembro Negro atiraram em turistas no aeroporto de
Atenas, já ficara claro que Nixon estava de saída.
Curvada
e cabisbaixa, Jenny se sentou na beirada da cama. Eu aguardei. Eu
vinha gestando essa expectativa durante quatro vidas. Jenny tinha as
costas ossudas e a barriga quente, o cabelo cortado curto de
propósito, para desafiar os conceitos dos colegas cirurgiões, e um
rosto suave que adorava sorrir quando ninguém a observava.
— Como
você sabia... tudo isso... como sabia o que estava por acontecer? —
perguntou ela.
— Eu
disse. É a quarta vez que vivo isso, e minha memória é
excepcional.
— Como
assim a quarta vez? Como é possível que seja a quarta vez?
— Não
sei. Eu me tornei médico para tentar descobrir. Conduzi experiências
em mim mesmo, analisei meu sangue, meu corpo, meu cérebro, tentei
descobrir se existe alguma coisa em mim que... não esteja certo. Eu
me equivoquei. O problema não é médico, ou, se é, ainda não sei
como encontrar um antídoto. Eu já teria desistido desse trabalho há
muito tempo, teria tentado algo novo, mas então conheci você. Eu
tenho a eternidade pela frente, mas quero você agora.
— Quantos
anos você tem? — perguntou ela.
— Cinquenta
e quatro... Duzentos e seis.
— Eu
não... eu não acredito nisso. Não me entra na cabeça que você
acredite numa coisa dessas.
— Lamento.
— Você
é espião?
— Não.
— Está
doente?
— Pelo
menos do ponto de vista acadêmico, não.
— E
então?
— Então
o quê?
— Por
que me disse essas coisas?
— É
a verdade. Eu quero lhe contar a verdade.
Ela
subiu na cama ao meu lado, pegou meu rosto e me olhou profundamente
nos olhos.
— Harry
— disse ela, e eu senti o medo em sua voz. — Eu preciso que você
me diga. Você está falando sério?
— Sim
— respondi, e o alívio que senti quase me explodiu de dentro para
fora. — Estou, sim.
Na
mesma noite ela pôs o casaco por cima do vestido, calçou um par de
botas de chuva e me deixou. Foi para a casa da mãe, que vivia em
Northferry, logo depois de Dundee, e deixou na mesa um bilhete
dizendo que precisava de um tempo. Deixei passar um dia e liguei; sua
mãe me disse para ficar longe. Deixei passar mais um dia, liguei
outra vez e implorei que Jenny me ligasse de volta. Ao terceiro dia,
quando liguei, o telefone havia sido desconectado. Jenny levara o
carro, então fui de trem até Dundee e fiz de táxi o restante do
trajeto. Fazia um tempo lindo, o mar era um espelho d’água, e o
sol avermelhado e baixo estava tão encantado com a cena que parecia
não querer se pôr. Perto de um penhasco cinzento, o chalé da mãe
de Jenny era uma coisinha pequena e branca com uma porta principal em
que só uma criança era capaz de passar. Quando bati, a mãe, uma
mulher perfeitamente projetada para atravessar aquela passagem
diminuta, atendeu e abriu porta sem tirar a correntinha.
— Ela
não está em condições de vê-lo — soltou ela. — Lamento, mas
você precisa ir embora.
— Mas
eu preciso ver Jenny — implorei. — Preciso ver minha esposa.
— Você
precisa ir agora, doutor August! — exclamou ela. — Sinto muito
que seja dessa forma, mas é nítido que você precisa de ajuda.
Ela
bateu a porta severamente, e escutei o ruído do trinco se fechando
atrás da porta de madeira branca. Permaneci lá e bati com força na
porta, depois nas janelas, e pressionei o rosto contra o vidro. Elas
apagaram as luzes para que eu não descobrisse onde se encontravam,
ou talvez esperando que eu me cansasse e fosse embora. O sol se pôs,
e eu me sentei no alpendre e chorei e gritei por Jenny, implorei que
ela falasse comigo, até que por fim sua mãe ligou para a polícia
e, em vez de Jenny, foram eles que falaram comigo. Fui jogado numa
cela com um homem preso por roubar uma casa. Ele riu de mim, e eu o
estrangulei a ponto de deixá-lo a poucos batimentos cardíacos da
morte. Então me puseram na solitária e me deixaram lá por um dia,
até que um médico foi me ver e me perguntou como eu me sentia. Ele
auscultou meu peito, e eu salientei do jeito mais educado possível
que aquela não era a forma mais racional de diagnosticar minha
doença mental.
— Você
se considera um doente mental? — perguntou ele depressa.
— Não
— retruquei. — Mas reconheço um mau médico quando vejo um.
Eles
devem ter apressado a papelada, porque fui levado para o hospício no
dia seguinte. Quando o vi, dei uma risada. O letreiro na porta dizia
Hospício St. Margot. Alguém havia apagado o “para os
Desafortunados”. Era o hospício em que eu me jogara para a morte
na segunda vida, aos sete anos.
Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August
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