(Nuvens:
água em estado onírico. O alfabeto do céu.)
Os
meus olhos viajam mais do que as minhas pernas. O meu pensamento mais
do que os meus olhos. Sentei-me no convés, contemplando o laborioso
espetáculo do vento esculpindo nuvens, criando, a cada instante,
novas figuras. Aquilo sempre me fascinou. As minhas nuvens preferidas
são os raros cirros Kelvin-Helmholtz, um fenômeno que ocorre quando
a parte mais alta das nuvens se movimenta a uma velocidade superior,
relativamente à parte mais baixa, desenhando ondas no céu. Lembram
por vezes notas de música sobre uma pauta azul.
Podia
ver a Nova Esperança, deslizando duzentos metros à nossa frente.
Mang e Sibongile haviam-se mudado para a balsa-fantasma. Vera ficara
conosco. Dava-se muito bem com Aimée. Os papagaios voavam entre os
dois balões, gritando uns com os outros na sua língua misteriosa.
Enquanto observava as nuvens, ia listando os mistérios com que, nas
últimas semanas, o destino me brindara:
1.
O que pretendia Boniface do meu pai?
2.
O que acontecera à família da pequena Vera?
3.
Quem socorrera Mang, na Ilha Verde, e o devolvera depois ao céu,
numa balsa salva-vidas?
Nada
parecia ligar os três enigmas. Eu, contudo, sentia que sim, que se
amarravam uns aos outros, firmemente, como os cabos de uma rede,
formando, no conjunto, um desenho lógico e musical. Sibongile
concordava comigo:
– Temos
de encontrar a Ilha Verde – assegurara, horas antes, ao jantar,
numa voz cheia de certezas. – Encontrando a Ilha Verde
encontraremos todas as respostas.
– E
como encontramos a Ilha Verde?
Mang
propôs-se falar com os pescadores noruegueses que o haviam
resgatado. No diário de bordo da balsa pesqueira teriam de estar
registadas as coordenadas onde ocorrera o resgate. A seguir, para
localizar a Ilha Verde, bastar-nos-ia estudar a direção e a
velocidade dos ventos durante as duas ou três horas anteriores.
Isto, admitindo que o indonésio permanecera desacordado, em razão
da pancada – ou, mais provavelmente, de alguma droga administrada a
seguir – durante não mais do que duas ou três horas. Era um plano
simples e, como quase todos os planos simples, resultou. Os
noruegueses não demoraram a responder. Com aquela informação
encontrámos, em poucos minutos, as coordenadas da Ilha Verde, ou
melhor, da área onde supúnhamos que esta se situasse. Debrucei-me
sobre os mapas com uma sensação de vertigem:
– É
na Amazônia, caramba! A Ilha Verde fica muito próximo de São
Gabriel da Cachoeira, onde o meu pai nasceu.
Com
efeito, as coordenadas apontavam para uma região identificada como
Pico da Neblina. Aimée assobiou, também ela espantada:
– Na
Amazônia – onde ficava a floresta?! Uau!...
Consultei
uma enciclopédia eletrônica. Antes do Dilúvio, o Pico da Neblina
erguia-se até muito perto dos três mil metros de altitude. No topo,
de noite, a temperatura podia descer até aos zero graus.
Procurei
Júlio no Facebook. Não estava online. Deixei-lhe várias mensagens.
Aguardei ansioso por uma resposta. A Internet funciona mal. Sofre
avarias frequentes, incluindo nas rotas mais frequentadas. Existem,
depois, vastíssimas zonas cegas, um “céu selvagem” ou “um céu
sem Deus”, como gostam de dizer os navegadores solitários que as
aldeias e grandes cidades se esforçam por evitar. Impedidas de
solicitar ajuda, as aldeias que tombam numa zona cega convertem-se em
vítimas fáceis dos piratas. Além disso, sem acesso a cartas do céu
atualizadas, e à respetiva informação meteorológica, a navegação
torna-se difícil e perigosa. Talvez Luanda estivesse a atravessar um
desses pântanos. O mais provável, porém, é que o silêncio fosse
apenas resultado de alguma avaria.
Estabelecemos
uma rota e avançamos em direção ao Pico da Neblina. Calculamos que
levaríamos pelo menos vinte e três dias a alcançar o nosso
destino. Ao décimo dia, estava eu sentado no convés, observando as
nuvens e listando mistérios, quando Aimée irrompeu, aos gritos,
vinda da cabina de pilotagem:
– Tomaram
Paris! Os piratas tomaram Paris!...
Ergui-me
de um salto:
– Quem
tomou Paris?!
Aimée
encarou-me muito pálida:
– Boniface.
O Boniface tomou Paris!
Acabara
de receber uma mensagem do irmão. Boniface tomara o controlo do
dirigível. Subornara uma parte da pequena força policial do Paris,
incluindo o Chefe da Segurança, e prendera os restantes. Prendera
também todo o governo, incluindo Jean-Pierre Longuet, o pai dos dois
irmãos. Alain refugiara-se em casa de um amigo. Conseguira enviar a
mensagem antes que os piratas cortassem a Internet. Fiquei
estupefacto:
– Nunca
aconteceu nada semelhante, isto de piratas tomarem o controlo de um
dirigível. As grandes cidades vão reagir.
A
minha previsão confirmou-se: as horas que se seguiram foram
agitadas. Os governos do New York, Washington, Tokio, Xangai, New
Delhi, São Paulo, Ciudad de México, Berlin e London emitiram um
comunicado conjunto, condenando a ação e exigindo a rendição
incondicional dos piratas e a libertação de todos os prisioneiros.
Os salteadores não responderam. Segundo o The Sky Monitor, um dos
meus jornais preferidos, os americanos estariam a ponderar uma
invasão do Paris. As restantes cidades opuseram-se, alegando que tal
intervenção ameaçaria a segurança de todos os parisienses.
A
seguir aconteceu algo quase tão imprevisível quanto a tomada do
Paris: o grande dirigível cortou todas as comunicações, afastou-se
da Estrada das Luzes e desapareceu.
Aimée
recusava-se a comer, recusava-se a dormir, agarrada ao computador:
– Tanto
silêncio, tanto silêncio...
A
mim afligia-me o silêncio do Paris e o silêncio de Luanda. Pensava
em Manu. Fechava os olhos e voltava a vê-lo, travando, a soco, o
avanço dos homens de Boniface.
O
que acontecera ao meu amigo?
E
porque Boniface se arriscava tanto?
Ele
era ambicioso, violento, e raramente demonstrava compaixão. Todavia,
não me parecia lunático, e muito menos estúpido.
Juntei
mais um mistério à minha lista.
Entretanto,
fomos navegando.
Numa
tarde de céu muito limpo encontramos um Manned Cloud. Flutuava a
poucos metros da água. Ao aproximarmo-nos vimos que, no oceano, uma
enorme baleia acompanhava o lento avanço do hotel, talvez enamorada
daquele outro cetáceo voador, lá em cima, tão elegante e luminoso.
Percebemos,
estudando os mapas, que, para alcançar o Pico da Neblina, teríamos
de mergulhar, também nós, numa zona cega. Um deserto imenso à
nossa frente. Um vasto céu sem deuses. Aimée, ansiosa, insistiu
para que aguardássemos mais alguns dias. Queria saber notícias dos
pais. Abracei-a:
– Sim,
vamos esperar mais dois ou três dias. Mais uma semana. Precisamos de
saber o que se passa no Paris e em Luanda. Sinto que tudo isto está
ligado.
– Sem
dúvida – concordou Sibongile. – Já te disse isso. Está tudo
ligado. Infelizmente, não podemos esperar. Não temos mantimentos
para muitos mais dias. Precisamos de avançar.
Assim,
avançamos.
Não
foi como cair num poço. Havia a luz exuberante pulsando no interior
da bruma. O próprio silêncio parecia iluminado.
Todavia,
foi como cair.
Sem
Internet não conseguíamos sequer comunicar entre as duas balsas, a
não ser aos gritos, através de megafones. Optamos por navegar o
mais baixo possível, não só para melhor podermos ver a Ilha Verde
– caso ela se desse a ver –, como também para escaparmos aos
olhares de eventuais salteadores. Pairávamos entre um bafo de
dragão. Se saíssemos para o convés, o calor e a umidade
colavam-nos a roupa à pele em escassos minutos. Os papagaios andavam
tão irritados, ralhando e brigando uns com os outros, que decidimos
recolhê-los na biblioteca, onde podiam gozar a frescura do ar
condicionado.
Surpreendentemente,
portaram-se bem. Passaram a sussurrar, sempre na mesma língua
redonda que a pequena Vera parecia compreender tão bem, rindo e
conversando com eles.
– Do
que falam? – perguntou-me Aimée. – Porque eles falam, não
falam?
Juntei
mais um mistério à minha lista.
Fazíamos
turnos no convés, vigiando o céu e o mar (raramente víamos o mar).
À terceira noite, Aimée despertou-me:
– Peixes!
– murmurou perplexa. – Milhares de peixes, e voam!
– Viste
peixes voadores? Viste-os com os binóculos?
Aimée
sacudiu a cabeça, num “não!” vigoroso e incrédulo:
– Não
compreendes, Carlos. Eles estão aqui, voam ao redor das balsas. Têm
olhos azuis. Olham para mim como se me conhecessem.
– Certamente
adormeceste – retorqui, forçando um sorriso. – Adormeceste e
sonhaste.
Levantei-me
e saí para o convés. Debrucei-me na balaustrada. A noite
abraçou-me, quente e ensopada. Surpreendeu-me o seu hálito doce. E
então vi-os. Dançavam à nossa volta. Vinham de longe, do fundo
abismo, como uma correnteza de prata. Giravam entre nós e a Nova
Esperança. Detinham-se, por instantes, junto ao cristal das janelas,
talvez surpreendidos com o seu próprio reflexo, e era possível
distinguir as duras escamas, as barbatanas longas como asas, os
redondos olhos azuis.
– Acreditas
agora? – soprou Aimée. – Devem ser milhares. Talvez milhões.
Eu
já ouvira falar em alucinações coletivas. Consta que em certas
áreas do céu, voando muito baixo, se corre o risco de inalar um gás
alucinógeno produzido pela decomposição de um grande número de
algas de uma espécie muito rara. A acumulação de algas costuma
ocorrer em redor de atóis ou ilhéus mortos.
Arrastei
Aimée para a cabina de pilotagem e servi-lhe uma das infusões que
trouxéramos de Jakarta. Falei-lhe nas algas. Riu-se até às
lágrimas:
– Queres
dizer que não há nada lá fora? Aqueles peixes voam na nossa
cabeça?
Na
manhã seguinte chamei Sibongile pelo megafone. Lançamos uma ponte
entre as balsas e o casal juntou-se a nós. Mang estava agitadíssimo:
– Vocês
viram aquilo, esta noite?
– Os
peixes?
– Peixes?
Que peixes? A noite estava cheia de borboletas fosforescentes.
Sibongile
sacudiu os ombros, agastada:
– Não
sei o que este tipo andou a fumar. Acordou-me a meio da noite com
esta história das borboletas. Mandei-o passear e voltei a dormir.
Falei-lhes
das algas e da nossa própria experiência. Mang também escutara
histórias semelhantes. Contou que um dos primos,
mergulhador-coletor, vira sereias a dançar num atol. Ele e os cinco
homens que o acompanhavam:
– Regressaram
a Jakarta numa espécie de transe. Durante meses só falavam naquilo.
As pessoas riam-se deles. A mim, o que me pareceu mais estranho foi
contarem todos a mesma história.
Olhei-o
de frente. Respirei fundo e disparei:
– A
tua ilha, a Ilha Verde, não será também o resultado de uma
alucinação?...
Mang
encarou-me, ofendido:
– Estás
a dizer que imaginei a ilha?!
– A
ilha talvez não. Estavas num pequeno barco. Sentias-te cansado,
desesperado, sufocado pelo calor. Chegaste a uma ilha cercada por
algas. Talvez tenhas visto árvores onde havia apenas rochas. Macacos
que não estavam lá. Depois tropeçaste, caíste, bateste com a
cabeça...
– E
o que aconteceu a seguir? Como fui parar dentro de uma balsa
salva-vidas? Também seria uma alucinação? Achas que ascendi aos
céus a bordo da minha própria alucinação?
Não
pude deixar de rir. Mang tinha razão. Alguém viveria ali, naquela
ilha, alguém compassivo o suficiente para se dispor a salvar um
desconhecido, colocando-o, com considerável dispêndio de recursos e
energias, numa balsa salva-vidas e enviando-o de volta ao céu. Por
outro lado, alguém que não queria ser contactado. Alguém que
pretendia manter um segredo.
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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