terça-feira, 16 de agosto de 2022

Um olhar

Eu tive uma namorada que via errado. O que ela
via não era uma garça na beira do rio. O que ela
via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava
as normas. Dizia que seu avesso era mais visível
do que um poste. Com ela as coisas tinham que mudar
de comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez
que tinha encontros diários com as suas contradições.
Acho que essa frequência nos desencontros ajudava
o seu ver oblíquo. Falou por acréscimo que ela
não contemplava as paisagens. Que eram as paisagens
que a contemplavam. Chegou de ir no oculista. Não
era um defeito físico falou o diagnóstico. Induziu
que poderia ser uma disfunção da alma. Mas ela
falou que a ciência não tem lógica. Porque viver
não tem lógica – como diria a nossa Lispector.
Veja isto: Rimbaud botou a Beleza nos joelhos e
viu que a Beleza é amarga. Tem lógica? Também ela
quis trocar por duas andorinhas os urubus que
avoavam no Ocaso de seu avô. O Ocaso de seu avô
tinha virado uma praga de urubu. Ela queria trocar
porque as andorinhas eram amoráveis e os urubus
eram carniceiros. Ela não tinha certeza se essa
troca podia ser feita. O pai falou que verbalmente
podia. Que era só despraticar as normas. Achei certo.

Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância

Nenhum comentário:

Postar um comentário