Uma
alma que fosse possível considerar responsável por todo e qualquer
acto cometido teria de levar-nos, forçosamente, a reconhecer a total
inocência do corpo, reduzido a ser o instrumento passivo de uma
vontade, de um querer, de um desejar não especificamente
localizáveis nesse mesmo corpo. A mão, em estado de repouso, com os
seus ossos, nervos e tendões, está pronta para cumprir no instante
seguinte a ordem que lhe for dada e de que em si mesma não é
responsável, seja para oferecer uma flor ou para apagar um cigarro
na pele de alguém. Por outro lado, atribuir, a priori, a
responsabilidade de todas as nossas acções a uma identidade
imaterial, a alma, que, através da consciência, seria, ao mesmo
tempo, juiz dessas acções, conduzir-nos-ia a um círculo vicioso em
que a sentença final teria de ser a inimputabilidade. Sim, admitamos
que a alma é responsável, porém, onde é que está a alma para que
possamos pôr-lhe as algemas e levá-la ao tribunal? Sim, está
demonstrado que o martelo que destroçou o crânio desta pessoa foi
manejado por esta mão, contudo, se a mão que matou fosse a mesma
que, tão inconsciente de uma coisa como da outra, tivesse
simplesmente oferecido uma flor, como poderíamos incriminá-la? A
flor absolve o martelo?
Ficou
dito acima que a vontade, o querer, o desejar (sinónimos que, apesar
de o não serem efectivamente, não podem viver separados), não são
especificamente localizáveis no corpo. É certo. Ninguém pode
afirmar, por exemplo, que a vontade esteja alojada entre os dedos
médio e indicador de uma mão neste momento ocupada a estrangular
alguém com a ajuda da sua colega do lado esquerdo. No entanto, todos
intuímos que se a vontade tem casa própria, e deverá tê-la, ela
só poderá ser o cérebro, esse complexo universo cujo
funcionamento, em grande parte (o córtex cerebral tem cerca de cinco
milímetros de espessura e contém 70 000 milhões de células
nervosas dispostas em seis camadas ligadas entre si), se encontra
ainda por estudar. Somos o cérebro que em cada momento tivermos, e
esta é a única verdade essencial que podemos enunciar sobre nós
próprios. Que é, então, a vontade? É algo material? Não concebo,
não o concebe ninguém, com que espécie de argumentos seria
defensável uma alegada materialidade da vontade sem a apresentação
de uma “amostra material” dessa mesma materialidade…
O
voluntarismo, como é geralmente conhecido, é a teoria que sustenta
que a vontade é o fundamento do ser, o princípio da acção ou,
também, a função essencial da vida animal. No aristotelismo e no
estoicismo da antiguidade clássica observam-se já tendências
voluntaristas. Na filosofia contemporânea são voluntaristas
Schopenhauer
(a vontade como essência do mundo, mais além da representação
cognoscitiva) e Nietzsche (a vontade de poder como princípio da vida
ascendente). Isto é sério e, por todas as evidências, necessitaria
aqui alguém, não quem estas linhas está escrevendo, capaz de
relacionar aquelas e outras reflexões filosóficas sobre a vontade
com o conteúdo deste livro, cujo título é, não o esqueçamos, A
alma dos verdugos. Aqui talvez tivesse eu de deter-me se,
felizmente para os meus brios, não me tivesse saltado aos olhos,
folheando com mão distraída um modesto dicionário, a seguinte
definição: “Vontade: Capacidade de determinação para fazer ou
não fazer algo. Nela se radica a liberdade”. Como se vê, nada
mais claro: pela vontade posso determinar-me a fazer ou não fazer
algo, pela liberdade sou livre para determinar-me num sentido ou
noutro. Habituados como estamos pela linguagem a considerar vontade e
liberdade como conceitos em si mesmos positivos, apercebemo-nos de
súbito, com um instintivo temor, de que as cintilantes medalhas a
que chamamos liberdade e vontade podem exibir do outro lado a sua
absoluta e total negação. Foi usando da sua liberdade (por mais
chocante que nos pareça a utilização da palavra neste contexto)
que o general Videla viria a tornar-se, por vontade própria,
insisto, por vontade própria, num dos mais detestáveis
protagonistas da sangrenta e pelos vistos infinita história da
tortura e do assassinato no mundo. Foi igualmente usando da sua
vontade e da sua liberdade que os verdugos argentinos cometeram o seu
infame trabalho. Quiseram fazê-lo e fizeram-no. Nenhum perdão é
portanto possível. Nenhuma reconciliação nacional ou particular.
Importa
pouco saber se têm alma. Aliás, desse assunto deverá estar
informado, melhor do que ninguém, o sacerdote católico argentino
Christian von Vernich que há alguns meses foi condenado a prisão
perpétua por genocídio. Seis assassinatos, torturas a 34 pessoas e
sequestro ilegal em 42 casos, eis a sua folha de serviços. É até
possível, permita-se-me a trágica ironia, que tenha alguma vez dado
a extrema unção a uma das suas vítimas…
23
de outubro de 2008
José Saramago, in O caderno
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