Quando
faleceu Artur Azevedo, o rabiscador destas linhas ainda não havia
aprendido a ler, mas, logo aos primeiros avanços no mundo das
palavras impressas, seu nome devia impor-se à imaginação infantil.
O interior do país conserva ainda (ou conservava, naquele tempo de
comunicações escassas, por muitos anos) a lembrança que logo se
esgarça no Rio e em São Paulo. Morrendo em 1908, Artur Azevedo
continuava perfeitamente vivo na memória de muitos leitores, que
guardavam revistas e almanaques antigos, como alimento para as horas
de ócio. Ele manejara um instrumento que assegura essa permanência
com que o simples humorista ou cronista não pode contar: suas
comédias realmente engraçadas, fáceis de representar e guardar,
despertavam nas pequenas cidades não só a alegria da descoberta do
teatro, como ainda essa outra alegria bem maior, de participar dele,
de omitir a rotina cotidiana de maneira ativa, figurando, como ator,
num plano irreal. Por isso florescia em Itabira, nos idos de 1915, um
Grêmio Dramático e Literário Artur Azevedo, a que tive a honra de
pertencer por especial benevolência dos diretores, que deram
interpretação muito elástica aos estatutos (se não me engano,
houve mesmo reforma), pois a sociedade era de adultos, e abriu suas
portas a um menino metido a literato.
O
Grêmio ficava no segundo pavimento de um velho sobrado, a casa dos
Anchietas, família de mudos que viviam de fabricar sapatos no andar
térreo. Um pequeno armário envidraçado era toda a biblioteca; o
retrato de nosso patrono abençoava-nos gordamente da parede. A bem
dizer, só pertenci à associação na parte puramente literária,
pois desde cedo verificara minha especial inaptidão para a arte de
representar. Já contei isso em outra oportunidade, e não teria
graça repeti-lo. Mas os pequenos-grandes sofrimentos advindos dessa
incompetência não desviaram o garoto do interesse pelo que se
passava no teatro, que era amplo e simpático, e aparecia a seus
olhos como a casa mágica, raramente aberta, sempre prestigiosa.
Tínhamos ótimos amadores, ou assim os julgávamos. Tito Franklin,
prático de farmácia, primava nos papéis cômicos, assim como
Maninho Andrade nos dramáticos. A meu ver, a influência saudável
de Artur Azevedo sobre os grupos de amadores do interior terá
residido particularmente neste ponto: o dramalhão antigo e cacete
foi cedendo lugar a peças divertidas, que refletiam realmente nossos
costumes, suscitavam a confraternização jovial da plateia e abriam
caminho para uma arte teatral tipicamente brasileira no seu espírito
e nas suas formas. Essa arte brasileira não veio, ou só agora se
anuncia, porque a evolução foi cortada bruscamente pela irrupção
do cinema.
Assim,
o teatro de minha terra, com seu globo azul no frontispício,
dominado pelo voo de uma águia de massa, que era obra muito prima do
santeiro Alfredo Duval, e olhando para a igreja matriz do outro lado
do paredão, como a dizer-lhe: “Nossos reinos são diferentes; aqui
mando eu”, teve de ser adaptado para o cinema de seu Eurico, e com
o tempo se iam pela vertente das coisas caducas o grêmio dramático,
o grupo de amadores, a notável orquestra mista que tocava as
ouvertures. Artur Azevedo foi derrotado, no Brasil afora, por
Max Linder, Bertini, William Farnum, Pearl White e outros
pesos-pluma. Eram porém trezentos, como no verso de Mário de
Andrade, e um autor teatral, sozinho, não poderia manter o interesse
do grande público esparso por esses brejões nacionais, ávidos de
distração e de sonho barato, na interminável noite onde piscam
luzinhas fracas, de longe em longe.
Mas
a lembrança dele é grata aos que conheceram ainda os últimos dias
de glória dos teatros oitocentistas no interior. E ao cronista,
então, que se envaidecia de ingressar meninote num grêmio tão
conspícuo de notáveis da terra natal, sob o seu nome popular e
amado, o centenário de Artur Azevedo é — desculpem — quase que
um pouco o seu próprio centenário. Coisas de 1915! Coisas do século
XV…
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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