Os milagres mudam o miraculado? Continuo tendo raiva, medo, preguiça de certas coisas, como antes da minha cura espantosa. Dobrada em duas, pedia à mãe de Deus, no já longínquo dia: Virgem Maria, seca meu útero doente, faz ele virar um fóssil, coisa mais seca ainda, se existir, quando abrirem minha barriga, se admirem os doutores do fenômeno. Em meio às vísceras sãs, a coisa seca sobrando, seca de não se reproduzir nela vida alguma. Assim que ficaram sabendo, Alba e Lulu vieram à minha casa por nove dias seguidos, suplicando comigo a minha cura. Vivi o que parecia ser uma preparação para a morte. Abel me tocava e meu coração reagia como quando pegou minha mão pela primeira vez, tão forte que assustou os cachorros da Durvalina. Passávamos em frente ao Armazém Brasil, faz mais de cinquenta anos. Morrer deve ser diferente do que se pensa, só existe a vida. De outro modo, como explico que, a dois dias de minha formidável operação, saí com a Graça para comprar umas necessidades e gastei bom tempo indecisa entre uma camisola com florinhas e outra com florinhas e borboleta, acredite, e pasme, fazia diferença. Meus chinelos novos encantaram Abelzinho.
Adélia Prado, in Quero minha mãe
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