sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Histórias da Zona Norte

Acho o subúrbio mais criativo e interessante do que a Zona Sul. O sonho de status do sujeito que julga fazer um grande negócio, mudando de Vila Valqueire para a Duvivier implica num jogo de simulações e “finezas” sacais. Penso que a grossura suburbana é fundamental para que o Rio sobreviva com identidade própria, e não como periferia de Noviórqui, como deliram os deslumbrados.
Na minha infância, em Vila Isabel, éramos visitados por uma figura maravilhosa, o Ruço, mistura de faz-tudo e gozador. Ferrenho morador da Vila da Penha, subia no telhado para soltar pipa, agarrava no gol enquanto os meninos batiam séries intermináveis de pênaltis, contava histórias engraçadíssimas e tinha um hábito muito louvável e democrático: chamava todo mundo de Cagalhão.
Uns vinte anos depois, eu estava fantasiado de médico, numa enfermaria psiquiátrica de quarenta leitos e oitenta pacientes seminus. Me sentia importante. Haviam colocado em minha precoce careca uma auréola tipo “esse sujeito vai longe no ramo”. Eu trabalhava em ritmo de Chacrinha, estimulado pela retórica e pela ideologia do vai-para-o-trono-ou-não-vai.
Bom, um belo dia, minha mãe me telefonou e disse:
O Ruço vai lá no hospital te procurar. Ele tem um amigo que acha o Simonsen o máximo.
Ué, mãe, e daí? Qual é o problema?
Mamãe esclareceu:
Maluco, Aldir. Só pode ser pirado. Lelé da cuca.
Ahn!
No dia seguinte, eu cintilava em meu jaleco rinso e cuspia bobagens sobre esquizofrenia com outros sábios, na sala dos médicos. Bateram na porta. Era o enfermeiro, avisando que um senhor queria falar comigo, parece que era parente meu. Fiquei emocionado. O Ruço! Vinte anos depois! Como será que ele, humilde morador da Penha, me veria no pedestal de esculápio? Tomado por uma condescendência criminosa, respondi com voz olímpica:
Deixa ele entrar, meu rapaz!
Instantes depois, antecipando-se vinte anos a uma gíria atual, Ruço enfiou a cabeça risonha e franca dentro daquele santuário de intelectuais progressistas e diagnosticou na mosca:
Oi, Cagalhões. A mala tá aí fora.

Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

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