Estou
entrando num campo onde raramente me atrevo a entrar, pois já
pertence à crítica. Mas é que me surpreende um pouco a discussão
sobre se um romance é ou não romance. No entanto as mesmas pessoas
que não o classificam de romance falam de seus personagens, discutem
seus motivos, analisam suas soluções como possíveis ou não,
aderem ou não aos sentimentos e pensamentos dos personagens. O que é
ficção? é, em suma, suponho, a criação de seres e acontecimentos
que não existiram realmente mas de tal modo poderiam existir que se
tornam vivos. Mas que o livro obedeça a uma determinada forma de
romance – sem nenhuma irritação, je m’en fiche. Sei que
o romance se faria muito mais romance de concepção clássica se eu
o tornasse mais atraente, com a descrição de algumas das coisas que
emolduram uma vida, um romance, um personagem etc. Mas exatamente o
que não quero é a moldura. Tornar um livro atraente é um truque
perfeitamente legítimo. Prefiro, no entanto, escrever com o mínimo
de truques. Para minhas leituras prefiro o atraente, pois me cansa
menos, exige menos de mim como leitora, pede pouco de mim como
participação íntima. Mas para escrever quero prescindir de tudo o
que eu puder prescindir: para quem escreve, essa experiência vale a
pena.
Por
que não ficção, apenas por não contar uma série de fatos
constituindo um enredo? Por que não ficção? não é autobiográfico
nem é biográfico, e todos os pensamentos e emoções estão ligados
a personagens que no livro em questão pensam e se comovem. E se uso
esse ou aquele material como elemento de ficção, isto é um
problema exclusivamente meu. Admito que desse livro se diga como se
diz às vezes de pessoas: “Mas que vida! mal se pode chamar de
vida.”
Em
romances, onde a trajetória interior do personagem mal é abordada,
o romance recebe o nome de social ou de aventuras ou do que quiserem.
Que para o outro tipo de romance se dê um outro epíteto, chamando-o
de “romance de...”. Enfim, problema apenas de classificação.
Mas
é claro que A paixão segundo G. H. é um romance.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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