Por
duas vezes, ou talvez tivessem sido três, apareceram-me na Feira do
Livro de Lisboa, em anos passados, outros tantos leitores, os dois ou
os três, ajoujados ao peso de dezenas de volumes novos, comprados de
fresco, e em geral ainda acondicionados nos sacos de plástico de
origem. Ao primeiro que assim se me apresentou fiz-lhe a pergunta que
me pareceu mais lógica, isto é, se o seu encontro com o meu
trabalho de escritor havia sido para ele coisa recente e, pelos
vistos, fulminante. Respondeu-me que não, que me lia desde há muito
tempo, mas que se tinha divorciado, e que a ex-esposa, também
leitora entusiasta, havia levado para a sua nova vida a biblioteca da
família agora desfeita. Ocorreu-me então, e sobre isso escrevi umas
linhas nos velhos Cadernos de Lanzarote, que seria
interessante estudar o assunto do ponto de vista do que nessa altura
designei como a importância dos divórcios na multiplicação das
bibliotecas. Reconheço que a ideia era algo provocadora, por isso
deixei-a em paz, ao menos para não vir a ser acusado de colocar os
meus interesses materiais acima da harmonia dos casais. Não sei, nem
o imagino, quantas separações conjugais terão dado origem à
formação de novas bibliotecas sem prejuízo das antigas. Dois ou
três casos, que tantos são os que conheci, não foram suficientes
para fazer nascer uma primavera, ou, por palavras mais explícitas,
por aí não melhoraram nem os lucros do editor, nem a minha cobrança
de direitos de autor.
O
que eu francamente não esperava era que a crise econômica que nos
vem mantendo em estado de alerta contínuo tivesse vindo dificultar
ainda mais os divórcios e, portanto, a ambicionada progressão
aritmética das bibliotecas, o que, aspecto em que certamente todos
estaremos de acordo, significa um autêntico atentado contra a
cultura. Que dizer, por exemplo, do problema complexo, e não poucas
vezes insolúvel, que é conseguir encontrar hoje comprador para um
andar? Se muitos processos de divórcio se encontram estancados, se
não avançam nos tribunais, a causa é essa, e não outra. Pior
ainda, como deverá proceder-se contra certos comportamentos
escandalosos já de domínio público, como é o caso,
lamentavelmente frequente e absolutamente imoral, de se continuar a
viver na mesma casa, talvez não a dormir na mesma cama, mas a
utilizar a mesma biblioteca? Perdeu-se o respeito, perdeu-se o
sentido de decoro, eis a desgraçada situação a que chegamos. E não
se diga que a culpa é de Wall Street: nas comédias de televisão
que eles financiam não se vê um único livro.
(Dia 25 de setembro de 2008)
José Saramago, in Os cadernos
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