No
fundo da sala, a cadeira de Mundo vazia. Não fez os exames finais,
perdeu o ano letivo e foi estudar no Colégio Brasileiro, onde podia
desenhar à vontade, acordar tarde, entrar na aula no meio da manhã
e cabular sem ser caceteado. Guardei o caderno de desenhos que ele,
assustado, jogara no chão antes de mergulhar no pequeno lago da
praça. Depois nos encontramos na porta do empório Casa Africana.
Ele andava devagar, pisando pesado, o casaco da farda verde-amarela
no ombro; tocou meu peito com o indicador, sorrindo com ironia: “O
nó da gravata está frouxo. E o emblema do imperador? Sumiu?”.
Quis
lhe devolver a sequência dos Corpos caídos. Recusou, eu podia ficar
com os desenhos; tirou revistas de uma pasta de couro, as folheou:
caricaturas de Daumier, não eram geniais? “Estes são brasileiros,
Guignard, Volpi, Portinari. Estes aqui são franceses... e a revista
é sobre arte africana.” Era a coleção Gênios da Pintura.
Falava
com entusiasmo de artistas famosos e de anônimos, e parecia
embriagado pelas imagens. Começou a ler trechos de um livro, sem se
incomodar com o sol abrasador do meio-dia; lia e me mostrava a foto
de uma pintura ou escultura. Levou um susto com a buzina do DKW. Pôs
os livros e revistas na pasta e se dirigiu ao chofer: “Que foi,
Macau?”.
“Vamos
almoçar?”, disse o homem, a cabeça fora da janela.
Tentei
ver o rosto do pai no banco traseiro, mas ele estava voltado para o
outro lado. Mundo se despediu e entrou na Casa Africana. Esperei o
carro partir e atravessei a praça em direção à Vila da Ópera.
Avistei cuecas velhas estendidas numa corda trançada no fim da
servidão. Tio Ran! Nem isso ele lava! E exige tudo da irmã, não
lhe dá trégua. Recolhi a roupa dele, senti cheiro de limão, alho e
pimenta, e vi tia Ramira ticando peixe na cozinha. Tirei o cinturão,
e já desatava o nó da gravata quando ouvi uns latidos.
“É
assim que Fogo dá as boas-vindas”, disse Jano.
Não
conseguiu convencer Mundo a almoçar em sua casa e veio direto para
cá, pensei, observando-o. Era a segunda vez que o via de muito
perto, os olhos miúdos acinzentados e a testa enrugada como se
estivesse sempre franzida. Em poucos anos a doença o envelhecera,
mas a pose era a mesma. A camisa de linho engomada, azul com botões
de madrepérola; a calça branca, larga. O que eu lembrava do
primeiro encontro: o cinturão, grosso, cinza-escuro, quase da cor
dos olhos. A voz, meio rouca, parecia mais grave: “Cadê tua tia?”.
Ela
apareceu, e sua expressão foi de surpresa e vergonha. Cheirava a
peixe cru, e, antes de cumprimentar o visitante, limpou as mãos no
avental. “O senhor por aqui?”
“Faz
tempo que Fogo farejou gente nova na vizinhança.”
Entreolharam-se
por algum tempo, até ela abrir os braços e erguer a cabeça: se
desculpou pela desordem da sala, pelas manchas de mofo nos tabiques,
as ripas do forro empenadas.
“Mesmo
assim, a senhora sabe, é uma grande vantagem morar no centro. Lá
naquele matagal vocês estavam longe de tudo.”
Fogo
abocanhou um vestido vermelho que ela havia costurado, o arrastou
pela saleta, rodeando o dono. Ramira não reagiu à insolência do
animal — tentou acariciá-lo; ele largou a peça de roupa, rosnou e
foi farejar cheiros antigos, lá do Morro da Catita.
“Meu
irmão vai pintar as paredes e arrumar a casa. Quer dizer, ele diz
isso desde que a gente se mudou para cá. Quando ficar pronta, o
senhor vem tomar um café”, disse ela, servil e emocionada.
“Ele
está morando aqui ou ainda vive como um cigano?”, Jano perguntou,
contrariado.
“Um
cigano”, repetiu Ramira. “Aparece de vez em quando, depois some.”
Jano
bateu no meu ombro esquerdo, pôs o dedo nas três divisas verdes
costuradas na manga da camisa: “Teu sobrinho promete coisa
melhor... bem melhor que o tio e que meu filho, que até agora não
promete nada. Vocês foram colegas de sala no Pedro II, não é?
Mundo não fez os exames finais do segundo ano. E, pelo jeito, vai
levar bomba de novo no Colégio Brasileiro. Eu soube que faltava às
aulas de educação física. A mãe dele se orgulha disso, pensa que
Mundo é muito delicado para praticar esporte. Meu chofer viu vocês
dois lá perto do Brasileiro. Qual era a conversa?”.
“Arte”,
eu disse. “Ele só fala nisso. As pinturas...”
“Por
isso não promete nada”, Jano interrompeu. “Arte... quem ele
pensa que é?”
Despediu-se
de Ramira, me olhou de esguelha e assobiou para o cachorro: os dois
andaram lado a lado até a porta; Fogo deu um salto e saiu trotando
pela servidão, as manchas amarelas brilhando ao sol, e o eco do
grito rouco: “Vai, salta, corre”. Minha tia lamentou: era uma
vergonha receber um homem tão fino naquela bagunça, as promessas de
Ranulfo não valiam nada.
Nossa
casa na Vila da Ópera nunca ficou em ordem: o trabalho da costureira
multiplicava panos, retalhos e moldes, e, vez ou outra, tio Ran
levava para lá Corel e Chiquilito, dois amigos que começavam a
fumar e beber antes da caldeirada de sábado; acabavam dormindo no
assoalho, perto da porta aberta para a servidão, pois Ramira os
proibia de pisar na saleta de costura; na manhã de domingo
acordávamos com os discursos de um e outro, que defendiam ideias
amalucadas sobre uma revolução no Brasil. Os assuntos eram variados
e cruzados: reforma agrária, pesca de tambaqui, festa a bordo de um
navio, o mais novo prostíbulo de Manaus, o Varandas da Eva.
Brindavam ao Varandas, e Corel, com a bagana apagada na boca,
gritava, animado: “O Rosa de Maio ainda é o melhor!”. Tinham
esquecido a revolução e a reforma agrária, e recordavam as noites
da juventude no Rosa de Maio, Lá Hoje, Shangrilá. Iam embora quando
nem mesmo eles se reconheciam, deixando no chão um monte de pontas
de cigarro e palitos de fósforos, copos com bebidas misturadas e um
azedume que impregnava a saleta até a faxina seguinte. O resto do
domingo se arrastava, a casa ficava tão enfadonha que eu e minha tia
íamos passear no balneário Quinze de Novembro. Ela aturava a
esbórnia porque o irmão, desde a morte do meu pai, se tornara o
“homem da casa”.
No
início de 1961, quando nos mudamos para o centro, o Morro da Catita
ainda era formado de chácaras e casinhas esparsas no meio de uma
mata que começava em São Jorge e se estendia até o limite de uma
vasta área militar. Uma picada estreita ligava o Castanhal do Morro
à estrada da Ponta Negra, em frente ao quartel do Batalhão de
Infantaria da Selva. Quando tia Ramira precisava comprar tecido ou
entregar uma costura a uma cliente no centro, andava pela picada até
a entrada do quartel e esperava carona de um jipe ou caminhão
militar. O trajeto demorava horas, mas ela se recusava a ir de canoa:
não sabia nadar, tinha medo de morrer afogada no igarapé dos
Cornos. Reclamava também do isolamento, da falta de luz elétrica,
dos bichos que rondavam a casa, dos ouriços que caíam das
castanheiras e quebravam com estalos assustadores as telhas de barro.
Minha tia queria derrubar as árvores, o irmão não deixava: davam
sombra e frutos e atraíam os animais que ele caçava. Ranulfo armava
uma rede nos troncos, pendurava uma lamparina num galho e ficava
lendo durante a noite; quando não chovia, amanhecia ali mesmo, ao
relento, o livro aberto no peito nu, as folhas secas cobrindo parte
do corpo. Os livros de tio Ran vinham de muito longe, do Sul, e
ficavam empilhados no quartinho dele, lá nos fundos da chácara,
nossa morada. Ele lia para mim um parágrafo ou uma frase longa, e se
entusiasmava, esquecia que eu ainda era criança e não podia
entender histórias complicadas, escritas com palavras difíceis;
mesmo assim, continuava a ler em voz alta, e só parava para dar
tapas nos braços e nas pernas, e então eu via o sangue dos
mosquitos na pele morena. Lembro que, em plena tarde de um dia de
semana, Ramira o encontrou lendo e fazendo anotações a lápis numa
tira de papel de seda branco. Perguntou por que ele lia e escrevia em
vez de ir atrás de trabalho.
“Estou
trabalhando, mana” disse tio Ran. “Trabalho com a imaginação
dos outros e com a minha.”
Ela
estranhou a frase, que algum tempo depois eu entenderia como uma das
definições de literatura. E quando ele me dava uns livrinhos com
desenhos, tia Ramira provocava: “Foram roubados de uma livraria ou
comprados com o dinheiro daquela mulher?”.
Cresci
ouvindo meus tios brigarem por causa de Alícia, que tinha morado num
bairro vizinho, o Jardim dos Bares. Uma história anterior ao meu
nascimento que, no entanto, ainda era comentada no Morro da Catita e
parecia não ter fim. Certa vez, eu e minha tia avistamos Alícia e
Jano na rua da Instalação, saindo da Casa Vinte e Dois Paulista.
Vinham abraçados e sorridentes em direção a nós; tia Ramira
diminuiu o passo, ficou nervosa, me puxou pelo braço, quis voltar.
Paramos numa atitude ridícula, e os dois se aproximaram, ela mais
alta e mais altiva que ele, mas só Jano cumprimentou Ramira, com um
sorriso, erguendo a mão. Vi o rosto maquiado de Alícia, senti sua
mão espanar meu cabelo, os dedos perfumados roçarem meus lábios, e
ouvi a voz dizer: “Como está grandinho, é a cara da mãe”.
Inclinou-se, me deu um beijo no canto da boca e se aprumou,
repetindo: “A cara da Raimunda”.
Eles
se foram, e minha tia murmurou: “Que mulher insuportável. E como
sabe fingir que gosta dele”.
Quando
Ramira anunciou de surpresa a compra de uma casinha na Vila da Ópera,
o irmão reagiu como uma criança enfezada: “Queres morar perto do
Jano, não é?”.
“Eu
e o meu sobrinho vamos sair daqui”, disse ela, com calma. “Minhas
clientes nem conseguem entrar no Morro. Lá no centro a clientela só
vai aumentar.”
Ele
não se mexeu, pensando que era apenas uma ameaça. Mas, no dia em
que Ramira fechou a máquina de costura e guardou moldes, revistas,
carretéis, agulhas e panos, Ranulfo ficou olhando a arrumação com
ar de derrota. Então ela me disse, alto: “Teu tio largou um ótimo
emprego na Vila Amazônia... jogou o destino no lixo. No ano passado
ainda brincou de locutor de rádio. Dois fracassos. Se ele quiser
ficar aqui, pode arranjar um trabalho fixo e pagar o aluguel desta
tapera”.
Ele
mesmo fez a mudança para a Vila da Ópera: encaixotou a máquina de
costura, cobriu com panos surrados os móveis, a geladeira a
querosene e o fogão, e transportou a tralha toda na caminhonete
velha do Corel. Na carroceria, vi minha tia agarrada à máquina, o
rosto aflito ao lado da cara zombeteira do irmão. Corel e Ranulfo
carregaram tudo para dentro da nova casa, puseram cada objeto no
lugar, e todos ficamos calados.
As
cinco casinhas de madeira da Vila da Ópera, enfileiradas, se
intrometiam como uma cicatriz num quarteirão de sobrados austeros; o
acesso era por uma servidão de uns três metros de largura, e, à
direita, um portão de ferro vedava a entrada de uma mansão moderna,
cujo quintal cercava o pequeno pátio da nossa casa. A Vila fora
erguida por operários que, em 1929, haviam trabalhado na construção
de dois casarões geminados, e acabaram tomando posse do que tinha
sido um canteiro de obras.
Tio
Ran olhou os tabiques caiados com manchas de umidade, circulou
teatralmente pela sala minúscula e resmungou: “Não vou morar
aqui. Onde estão as castanheiras pra gente armar a rede? É muito
apertado, mana. É triste demais”.
“Onde
vais dormir?”
Ele
cutucou o amigo e perguntou: “Onde, Corel? Na carroceria da tua
caminhonete? E onde vou guardar meus livros?”.
Os
dois começaram a rir, e logo tia Ramira entendeu a farsa. “Tu
podes dormir no quarto do Lavo, na cozinha ou no pátio. Só não
podes entrar no meu quarto e na saleta de costura.”
Ele
também entendeu.
Ranulfo
fazia os trabalhos pesados e resolvia problemas com que a irmã
detestava lidar. Em troca, podia dormir no chão da sala depois das
noitadas extravagantes; passava dias sem aparecer, de repente chegava
abatido, sem um centavo no bolso, e filava a boia que às vezes ele
mesmo trouxera em estado bruto: queixadas, pacas e patos-do-mato,
amarrados na carroceria da caminhonete de Corel. Tio Ran matava os
animais com golpes de terçado e distribuía uns pedaços aos
vizinhos. Comida para duas semanas. Arranjava bebida no bar do Sujo,
onde pendurava a conta durante um mês e então mandava cobrar em
casa. Recebíamos uma tira de papel de embrulho engordurado com a
assinatura dele embaixo do total da dívida.
Muita
gente em Manaus ainda lembrava das histórias e conversas de suas
transmissões radiofônicas; quando criança, eu ficava acordado até
meia-noite para escutá-las; tia Ramira fingia esconder o radinho de
pilha, temendo a voz de demônio do irmão, mas ouvia tudo: o pessoal
de uma chácara vizinha aumentava o volume de um aparelho poderoso.
Eu tinha a impressão de que os moradores do Morro da Catita, do
Jardim dos Bares, de Santo Antônio, São Jorge e da Glória se
divertiam e choravam com o radialista falastrão. Lembro do Natal
triste de 1960, quando ele chegou calado e, em vez de entrar em casa,
trepou numa castanheira e ficou empoleirado lá em cima, fumando
tabaco de corda e olhando para a ribanceira e para o igarapé dos
Cornos. Fora demitido da rádio Rio Mar: os padres que dirigiam a
estação julgaram que seu programa semanal Meia-Noite Nós Dois se
tornara insensato e obsceno demais. Mas tio Ran se orgulhava do único
trabalho que lhe dera prazer e o fizera conhecido na capital e no
interior do Amazonas.
“De
qualquer forma”, disse ele anos mais tarde, “depois do golpe
militar iam acabar me demitindo: os censores dessa panaceia não iam
aturar meus comentários políticos, muito menos minhas histórias de
amor no meio da madrugada.”
Milton Hatoum, in Cinzas do Norte
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