quarta-feira, 6 de julho de 2022

Sonhando com leões


[...]
Com tanto peixe-voador, devia haver delfins – disse, e apoiou-se na linha, a ver se era possível conseguir ganhar sobre o seu peixe. Mas não conseguiu, e a linha foi só até ao retesado e à vibração gotejante que precede o rebentar. O barco avançava devagar, e o velho ficou-se a olhar o aeroplano até o perder de vista.
De aeroplano, deve ser muito estranho, pensou. Que parece o mar, visto daquela altura? Deviam poder ver o peixe, se não voassem tão alto. Gostaria de voar muito de vagar a duzentas braças de altura e ver o peixe de cima. Nos barcos que andam à tartaruga, eu ia nas vergas do mastro de vante, e já dessa altura via muito. Daí, os delfins parecem mais verdes, e veem-se-lhes as listas e as malhas purpuríneas, e vê-se o cardume todo a nadar. Porque será que todos os peixes rápidos das águas profundas têm dorsos de púrpura, e em geral riscas ou malhas de púrpura? O delfim parece verde, é claro que por ser dourado. Mas, quando vem para comer, cheio de fome, a púrpura aparece nos costados, como ao peixe graúdo. Será fúria ou a velocidade maior, o que faz aquilo aparecer?”
Antes de escurecer, ao passarem por uma grande ilha de sargaços, que arfava e balouçava na ondulação, como se o mar estivesse possuindo alguém sob um cobertor amarelo, na linha pequena mordeu um delfim. Viu-o, quando ele pulou no ar, dourado de verdade ao sol que se sumia, e recurvando-se e espadanando desesperadamente o ar. Saltou e tornou a saltar na acrobacia do medo, e o velho arrastou-se para a popa e, segurando a grande linha com a mão e o braço direitos, alou o peixe com a mão esquerda, de cada vez pondo o pé descalço na linha recuperada. Quando o peixe estava junto da popa, espinoteando desenfreadamente, o velho debruçou-se e levantou sobre a popa o peixe dourado com as suas malhas purpuríneas.
As queixadas agitavam-se convulsivamente em dentadas precipitadas no anzol, e no fundo do esquife batiam o longo corpo achatado, a cauda e a cabeça, até que ele lhe deu na rebrilhante e dourada cabeça, e o peixe estremeceu e ficou quieto.
O velho tirou o anzol, pôs-lhe uma nova sardinha, e tornou a deitá-lo pela borda fora. Depois, arrastou-se devagar até ao fundo da proa outra vez. Lavou a mão esquerda e limpou-a nas calças. Mudou a pesada linha da mão direita para a esquerda, e lavou a mão direita no mar, enquanto fitava o sol a mergulhar no oceano e a inclinação da grande linha.
Não mudou nada – disse. Mas, ao observar o movimento da água contra a mão, notou que era perceptivelmente mais lento.
Hei-de pôr os remos atravessados à popa, para o retardar durante a noite. Está bom para a noite, e eu também.
Seria melhor abrir o delfim mais tarde, para não perder o sangue, pensou. Posso fazer isso um pouco depois e, nessa altura, pôr os remos de través para fazerem de âncora flutuante. É melhor deixar o peixe sossegado por agora, e não o incomodar muito ao pôr do sol. O sol-posto é sempre uma hora difícil para os peixes todos”.
Depois de seca a mão ao ar, agarrou na linha com ela e abandonou-se o mais que podia, permitindo que o seu corpo fosse puxado contra a madeira, para que o barco suportasse o esforço tanto ou mais do que ele.
Já estou a aprender, pensou. Pelo menos esta parte. E lembra-te de que ele não comeu, desde que engoliu a isca, e que é grande e de muito comer. Comi o bonito inteiro. Amanhã, comerei este. – Chamava-lhe dorado. – Talvez que eu devesse comer um bocado, depois de o arranjar. Será mais difícil de comer que o bonito. Mas nada há que seja fácil”.
Como vai a vida, peixe? – perguntou alto. – Eu sinto-me bem, a mão esquerda está melhor, e tenho comida para uma noite e um dia. Puxa o barco, peixe.
Não se sentia verdadeiramente bem, porque a dor da corda nas costas quase ultrapassara a dor e se transformara numa dormência que não o enganava. “Mas tenho passado por piores coisas, pensou. A minha mão tem só um pequeno golpe, e a cãibra largou a outra. As pernas estão bem. Também o ganhei na questão de aguentar”.
Já estava escuro, porque, em Setembro, escurece depressa, depois do sol-pôr. Encostado à madeira gasta, repousava quanto podia. As primeiras estrelas surgiam. Não sabia o nome da Rígel, mas via-a, e sabia que não tardariam a aparecer todas e que teria em breve todas as suas amigas distantes.
Também o peixe é meu amigo – disse em voz alta. – Nunca vi nem ouvi falar de um peixe assim. Mas tenho de o matar. Agrada-me pensar que não temos de matar as estrelas.
Ora imagina, pensou, que um homem devia todos os dias ver se matava a lua. A lua foge. Mas imagina que um todos os dias teria de ver se matava o sol? Nascemos com muita sorte”.
Sentiu depois pena do grande peixe, que nada tinha de comer, e a sua determinação em matá-lo não contrariava a pena que sentia. “A quantas pessoas dará de comer?, pensou. Mas são elas dignas de o comer? Não, claro que não. Não há ninguém digno de o comer tal é o seu comportamento, a sua grande dignidade”.
Não compreendo estas coisas, pensou. Mas é bom que a gente não tenha de ver se mata o sol, a lua ou as estrelas. Basta vivermos no mar e matarmos os nossos irmãos”.
Ora eu tenho de pensar na âncora. Tem os seus perigos e as suas vantagens. Posso perder tanta linha, que perca o peixe, se ele faz força e se os remos estão em posição e o barco perde a leveza. A leveza do barco é que prolonga o nosso sofrimento, mas é a minha salvação, uma vez que ele possui uma velocidade maior que ainda não usou. Aconteça o que acontecer, tenho de arranjar o dorado, para não se estragar, e de o comer, para ter forças”.
Agora vou descansar mais uma hora e ver se ele está firme, antes de ir à popa fazer o trabalho e decidir. Entretanto, verei como ele se comporta e se dá mostras de mudar de atitude. Os remos são uma boa ideia; mas trata-se de jogar pelo seguro! Ele ainda é peixe, e vi-lhe o anzol no canto da boca e ele tem andado de boca bem fechada. O castigo do anzol não é nada. Mas o da fome, e o de sentir-se contra o que não entende, isso é tudo. Repousa, meu velhote, deixa-o trabalhar até que chegue a tua vez”.
Repousou durante o que supôs duas horas. A lua agora não surgia senão mais tarde, e não tinha modo de avaliar o tempo.
Nem, em boa verdade, estava ele repousando. Continuava a aguentar com os ombros o puxão do peixe, mas pôs a mão esquerda na amurada e confiou da resistência ao peixe mais ao próprio esquife.
Como seria simples, se eu pudesse prender a linha, pensou. Mas um pequeno sacão podia rebentá-la. Tenho de amortecer o sacão com o meu corpo, e de estar sempre pronto a dar linha com ambas as mãos”.
Mas tu ainda não dormiste, velho – exclamou.
Passa de meio dia e uma noite e já outro dia, que não dormes. Tens de arranjar maneira de dormir um pouco, se ele vai seguro e calmo. Se não dormes, podes ficar sem ideias claras.
Tenho as ideias claras, pensou. Claras demais. Tão claras como as estrelas que são minhas irmãs. Mas preciso de dormir.
Elas dormem, e a lua e o sol dormem, até o oceano dorme às vezes, em certos dias, quando não há corrente e a calma é estanhada”.
Mas lembra-te de dormir. Obriga-te a isso, e arranja uma maneira simples e segura de aguentar as linhas. E agora trata de preparar o dorado. É muito perigoso pôr os remos a servir de fateixa, se tens de dormir”.
Podia passar sem dormir, disse consigo. Mas seria muito perigoso”.
Principiou a pôr-se em movimento para a popa, de gatas, com cuidado, para não sacudir o peixe. “Pode ele estar meio a dormir, pensou. Mas eu não quero que ele repouse. Tem de puxar até morrer”.
De volta à popa, voltou-se por forma a que a mão esquerda mantivesse passada aos ombros a tensão da linha, e tirou a faca da bainha com a mão direita. As estrelas brilhavam, via o dorado claramente, e enfiou-lhe a lâmina na cabeça e puxou-o de debaixo da popa.
Pôs-lhe um pé em cima e abriu-o até à beira do maxilar inferior. Depois, levou abaixo a navalha e estripou-o com a mão direita, limpando-o e pondo a descoberto as guelras.
Sentiu nas mãos escorregadio e pesado papo, e abriu-o. Havia dentro dois peixes-voadores. Estavam frescos e duros, e pô-los lado a lado, e deitou pela borda fora as tripas e as guelras. Desceram na água, deixando um rasto fosforescente. O peixe estava frio e de um branco cendrado à luz das estrelas, e o velho escamou-lhe um lado, enquanto mantinha o pé direito na cabeça dele. Depois, voltou-o e escamou o outro lado, e cortou cada um dos lados, desde a cabeça à cauda. Atirou a carcaça fora e ficou a ver se havia algum redemoinho na água.
Mas havia apenas o clarão da lenta descida. Virou-se, colocou os dois peixes-voadores entre os dois filetes do peixe e, guardando a navalha, regressou lentamente ao seu lugar. As costas curvavam-se ao peso da linha, e na mão direita trazia o peixe.
Regressando, pousou os dois filetes na madeira e os dois peixes-voadores ao lado. Depois, acomodou a linha em novo sítio das costas e segurou-a outra vez com a mão esquerda pousada na amurada. Debruçou-se na borda e lavou os peixes-voadores na água, notando a velocidade desta contra a mão. A mão estava fosforescente do escamar do peixe, e ele observava a corrente de água contra ela. A corrente era menos forte e, ao esfregar o lado da mão contra o costado do esquife, partículas fosforescentes flutuavam à deriva, devagar, para a ré.
Está cansado ou a repousar – disse o velho. – Agora, toca a comer o peixe e a repousar também e dormir um pedaço.
Sob as estrelas, com a noite a arrefecer, comeu metade de um dos pedaços do dorado e um dos peixes-voadores, estripado e sem cabeça já.
Que excelente peixe é o dorado para comer cozinhado. E que miserável comido cru. Nunca mais me meto num barco, sem sal ou sem limão.
Se eu tivesse cabeça, teria durante o dia borrifado a popa, para a água secar e deixar o sal, pensou. Mas não apanhei o dorado senão quase ao pôr do sol. Em todo o caso, foi imprevidência. Mas mastiguei-o bem, e não estou agoniado”.
O céu enevoava-se a leste, e uma após outra iam desaparecendo as estrelas que ele conhecia. Era como se agora se movesse num grande desfiladeiro de nuvens, e o vento caíra.
Daqui a três ou quatro dias, vai haver mau tempo – disse. – Mas não esta noite, nem amanhã. Põe-te a dormir, meu velho, enquanto o peixe está sossegado.
Segurou com força a linha na mão direita, e depois encostou a anca à mão, lançando o peso do corpo contra a madeira da proa. Passou então a linha um pouco mais para baixo e retesou nela a mão esquerda.
Enquanto tiver a linha em volta, a minha mão direita é capaz de a aguentar. Se se distrai a dormir, a mão esquerda acordar-me-á a tempo de agarrar a linha. Para a mão direita é duro. Mas é questão de hábito. Mesmo que eu durma vinte minutos ou meia hora, já é bom”. Deitou-se para diante, firmando-se com todo o corpo, e com todo o peso deste sobre a mão direita, e adormeceu.
Não sonhou com os leões, mas com um imenso bando de porcos-marinhos, que se estendia por oito a dez milhas e estava na época do cio; davam altos pulos no ar e voltavam ao mesmo buraco que haviam aberto na água ao saltar.
Sonhou depois que estava na aldeia, na cama, e havia nortada, e tinha muito frio e o braço direito dormente porque pousara sobre ele a cabeça e não num travesseiro.
A seguir, começou a sonhar com a longa praia amarela, e viu o primeiro leão descer a ela ao cair do crepúsculo, e depois vieram os outros leões, e ele estava de queixo assente na madeira da proa, lá onde o navio estava ancorado, com a brisa da tarde, a vir de terra e ele à espera a ver se apareciam mais leões e sentiu-se feliz.
A lua nascera havia muito tempo mas ele continuava a dormir e o peixe a puxar regularmente e o barco prosseguindo pelo túnel de nuvens.

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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