Pela
primeira vez na vida, Marta se sentou à cabeceira da mesa e fez com
que sua irmã, limpa, vestida com linho branco e ungida com óleos
perfumados, se sentasse à sua direita. Trouxe mais vinho antes que a
bilha anterior acabasse e, sem dizer as preces, devorou o frango, as
coxas gordas do frango com sua casca crocante, caramelada, saborosa,
que nunca, jamais, tinham sido para ela. Olhou para Maria, que
parecia uma bárbara destroçando com os dentes o peito, as coxas, o
traseiro, e teve um ataque de riso. O riso do vinho e da liberdade. O
riso que se desata só de se sentar à cabeceira da mesa e de comer a
gordura dourada do frango e de ver a bela Maria: a boca e as mãos
sujas, e com essas mesmas mãos gordurosas pegar a taça para beber
uma grande golada de vinho com a boca cheia. Vinho. Dupla de
libertinas. Teve vontade de dizer a Maria, olhe pra nós, olhe pra
nós, nem parecemos nós mesmas, tão cheias de gozo, hoje que
deveríamos guardar luto, hoje que a casa deveria estar coberta de
panos pretos. Ficamos sozinhas, minha irmã, mais que sozinhas: sem
um homem em casa, e deveríamos estar tremendo como filhotes de
cadela morta.
Mas
não disse nada. Sorriu-lhe. E Maria lhe devolveu o sorriso com os
dentes cobertos de pedacinhos de carne escura. Elas se saciaram e
continuaram comendo apenas para ver o que acontecia, e já com a
barriga cheia saíram para o pátio abraçadas pelos quadris. A noite
estava estrelada. Os animais dormiam, os escravos também. O mundo
inteiro dormia um sono áspero, intoxicado. Havia comida, havia água,
havia terra, havia teto. Marta quase pôde sentir na atmosfera o
cheiro do mar das férias, quando os pais ainda eram vivos, quando
ele não era ele, e sim mais um deles: três crianças correndo pela
praia e voltando a cada instante, olhe mamãe uma concha, olhe papai
um caranguejo. Tempos bons, sim, o ar tinha um aroma de dias bons
quando o pai não voltava azedo e batia em qualquer um que
atravessasse seu caminho com uma vara de couro fininha que abria a
pele em silêncio, como se não fosse nada, até que o sangue saía
como uma surpresa vermelha e a dor aguilhoava. Começava pela mãe,
continuava no irmão e seguia para Marta, que dava um jeito de
esconder Maria da varinha. Esse pai os convertia em outras pessoas,
em outra família. Talvez nem sequer fosse possível usar esta
palavra sagrada: família. Nos dias do pai hediondo, alcoolizado,
eles se enfiavam embaixo da cama e a mãe gritava e, às vezes, ele
trocava a vara pelo chicote e esse, sim, avisava a dor que vinha
vindo, com um tchas, tchas, tchas no ar.
Marta
abraçou mais sua irmã Maria, agora de frente para ela, agora
olhando para sua cara de menininha envelhecida, no entanto tão bela,
com aqueles olhos raros, verdes, tão perturbadores. Enxugou suas
lágrimas com os lábios e disse que a amava, e disse também que a
perdoasse. Maria sabia do que ela estava falando. Então, cheia de
vinho e de frango e da noite libérrima, Maria tirou o vestido,
fechou os olhos e abriu os braços para que sua irmã a visse
inteira, nua, como se estivesse na cruz. Para que visse o que as
pessoas são capazes de fazer quando ninguém as detém. Para que
entendesse, nos talhos da pele, que a crueldade sempre triunfa diante
do desamparo. Alguém havia escrito com um objeto pontiagudo a
palavra puta em sua barriga; alguém havia pisoteado sua mão direita
até convertê-la num penduricalho; alguém havia mordido seus
mamilos até quase arrancá-los, deixando-os pendentes por um
pedacinho de pele de seus peitos redondos; alguém lhe enfiara
arreios no ânus deixando-lhe uma hemorragia perene; alguém
produzira nela um aborto a pontapés; alguém, ninguém, fizera nada
durante os dias em que ela ficou inconsciente e os ratos, com seus
dentinhos esforçados, começaram a comer suas bochechas, seu nariz;
alguém, certamente seu irmão, deixara suas costas estriadas de
tantas chicotadas. Tchas, tchas, tchas.
E
infecções, chagas, podridão, sangue, fraturas, anemia, doenças
venéreas, pústulas, dor.
Marta
se ajoelhou diante de sua irmã. Levantou seus braços abertos para
ela e sussurrou-lhe dez, trinta, cem vezes, nunca mais, nunca mais,
nunca mais. E se arrependeu de estar viçosa, de estar imaculada, de
estar viva. E chorou, e cuspiu no chão, e amaldiçoou o irmão.
Amaldiçoou a sepultura do irmão e seu maldito nome, e seu maldito
caralho, e seu maldito corpo que já devia estar começando a
apodrecer. E abraçada aos joelhos fracos, cheios de crostas, de sua
irmã, disse:
— Não
tenho outro deus além de você, Maria.
Então
a porta se fechou de um golpe e as duas deram um grito. Caralho, o
vento. Maria se vestiu e entraram na casa, de repente inóspita e
gelada como uma cova. Ao aproximar a vela da mesa, perceberam que
aquela espécie de casca sobre os restos do frango eram dezenas de
grandes baratas castanho-escuras que começaram a correr pela mesa
fazendo um barulho estalado de folhas secas. As duas gritaram como se
tivessem visto uma aparição. Marta disse que para isso, e só para
isso, é que se necessita de um homem em casa, e Maria, que tinha
subido numa cadeira e puxado as saias até a cintura, começou a rir
como uma possessa e a responder que não, que preferia as baratas,
todas as baratas do mundo, do que ter um homem em casa. Então pulou
com os dois pés descalços no chão e caiu, com precisão, um pé em
cima de cada uma, sobre duas baratas que se abriram como uma caixinha
e soltaram um sumo esbranquiçado. Marta dizia que se calasse, que
iam escutá-las, mas também ria de que uma bobeira como essa as
tivesse feito gritar assim e de que sua irmã estava sem calcinha no
meio da sala e de que não precisavam de um homem, muito menos
daquele homem, e, enquanto isso, não parava de mexer as pernas e
sacudir o vestido caso algum bicho pensasse em subir em cima dela, e
parecia que estava dançando, e se alguém as tivesse visto: uma nua
da cintura para baixo, puro riso, matando baratas, e a outra dançando
como uma qualquer, nunca pensaria que há apenas quatro dias, quatro,
um irmão, o único irmão dessas duas mulheres, tinha morrido.
Mas
era isso.
Ele
estava doente há tempos, diziam que era algum mal que tinha trazido
do deserto. Que trouxera de alguma mulher do deserto, pensava Maria,
mas jamais comentou com sua irmã nem com ninguém. Ela já havia
visto coisas assim: homens saudáveis com o pé na cova em questão
de meses, com as vergonhas pretas, queimadas como a palha do arroz, e
delirando sobre o demônio ou o sabor dulcíssimo das tâmaras de
alguma terra que não existe. Maria estava certa de que seu irmão
tinha morrido de pecado, mas quem acreditaria nela? Era ela quem
carregava esse peso, não seu irmão; sim, claro, seu irmão
perfeito: puro como as águas do céu. Maria tinha boa memória.
Lembrava-se do dia que seu irmão a expulsou da casa principal e a
mandou dormir depois dos escravos e das baias, num estábulo escuro e
destelhado. Sua irmã puta não merecia dormir em linho nem em seda
bordada como Marta, a irmã boa, a irmã mística. A puta merecia
dormir entre os ratos e sobre esteiras de palha fétidas. A puta,
aliada do maligno, tocava-se entre as pernas e gemia. Nisto consiste
ser puta: em gostar do gozo. Uma vez a viu. Entrou no quarto e
encontrou Maria com a mão entre as pernas. Nesta casa não entra
nenhuma puta, disse. Isso foi tudo. Naquela noite, prendeu-lhe num
cocho e sob o céu estrelado partiu sua cara a pontapés. Quando
Marta saiu para pedir piedade, ele levantou a mão e disse que, se
ela desse mais um passo, ele a mataria. Vou fazer a mesma coisa com
você, disse-lhe, mas também vou te matar. Quem defende uma puta
também é uma puta, gritou. E então Marta ficou ajoelhada sobre o
chão empoeirado do pátio vendo seu irmão golpear sua irmãzinha
até quase destroçá-la.
Agora
estavam as duas sozinhas. Marta tinha ido dormir no quarto do irmão
e o seu, melhor, tinha ficado para Maria. Agora era o tempo de
mimá-la, de adorá-la, de glorificá-la. Lá naquele estábulo a
tinham violado — ela, que era virgem — todos os escravos,
inclusive aqueles que até uma semana antes a chamavam de menina
Maria. Por lá desfilavam os homens, jovens e velhos. Ali, sobre ela,
nascia e morria a sexualidade da aldeia. Ali, ele a havia maltratado
e penetrado pelo ânus e pela vagina e torturado, ele que se dizia
puro, que se dizia homem de deus, que era amigo querido daquele, o
mais santo dos santos, aquele que quando vinha à casa deixava tudo
em alvoroço e do qual Maria lavava os pés empoeirados e calosos com
perfumes exóticos, divinos, únicos.
Marta
sabia disso porque mais de uma noite o seguira e o observara com os
olhos paralisados de terror. E depois, quando os fechava, voltava a
vê-los outra vez e outra vez e outra vez. Irmão sobre irmã. Maria
como um corpo morto, os olhos fechados, movendo-se com a inércia do
impulso, como um cadáver pálido — uma mosca sempre percorrendo
sua boca, seus olhos, as fossas nasais — ainda manchado de sangue,
e ele, ele olhando para todos os lados como um delinquente,
caminhando sob o luar de volta para a casa principal, com o pau
manchado com aquele mesmo sangue. Será que Maria estava com as
regras? Ou será que estava tão devastada por dentro que já não
havia carne, e sim hemorragia? Nem o céu nem a terra voltariam a ser
iguais. Irmão sobre irmã, como nas profundezas das trevas.
Isso
aconteceu muitas, muitas, muitas noites.
O
catre onde sua irmã jazia — quase morta, mal viva — era um
muladar de excrementos onde os bichos se proliferavam e que, para
alguns homens, embora de graça, embora fácil, já era muito
repulsivo. Um corpo putrefato, desagradável, pestilento. Maria, a
doce e formosíssima Maria, a dos olhos como gemas de montanhas
distantes, filha do mar e do deserto, era agora asquerosa para o mais
seboso dos forasteiros. Às vezes, alguém muito necessitado lhe
jogava um balde de água por cima do corpo e assim, molhada, tomava o
cuidado de não tocá-la demasiado enquanto a penetrava rápido, com
violência, como se fosse uma cabra.
Marta
não podia cuidar de sua irmã. As paredes tinham olhos e bocas e
línguas parecidas com as das serpentes. Na mesma hora contariam a
ele, e ele faria o mesmo: colocaria as duas, uma ao lado da outra, no
mesmo catre, no mesmo inferno. Ela podia dar uma moeda a alguma serva
para que levasse um balde d’água e uma esponja e lavasse o corpo
machucado, roxo e sanguinolento de sua irmã, mas fazer isso não era
seguro. Era preciso ter fé. Fé na serva. Fé no escravo que lhe
levaria um pouco de peixe, leite e pão. Fé no sentinela que
impediria, também por moedas, que todos os homens do povoado
continuassem a usando. Ao menos durante aqueles dias do mês. Ao
menos durante os dias santos. Ao menos hoje. Fé no menino que
levaria um bilhete que dissesse aguente, nós duas vamos embora
daqui. Mas nada além de fé, o mais doentio dos sentimentos. A fé
não serviu, por exemplo, quando o amigo do irmão, o mais santo dos
santos, os visitou e perguntou por Maria e seus olhos de pedra
preciosa e recebeu desculpas, e ele voltou a perguntar por Maria e
seus olhos de um verde de outro mundo e o irmão não pode fazer nada
além de levá-lo ao estábulo imundo onde a mantinha estirada, meio
desnuda e manchada de todo excremento, aberta, numa posição mais
infame que a de um animal esquartejado e aquele homem, o mais santo
dos santos, começou a chorar e a gritar e a perguntar e a agitar o
irmão como dizendo ninguém poderá perdoá-lo pelo que você fez
aqui, solte-a agora mesmo, estúpido sádico maldito louco. Mas o
irmão não disse nada além de ela é pecadora, senhor, ela é a
mais pecadora das mulheres. Eu a vi. Goza do pecado carnal, senhor.
Ninguém me disse. Tive o desprazer de presenciá-lo, senhor, é
repugnante. E se eu soltá-la, então as outras irão acreditar que
isso pode ser feito sem consequências, que podem fazer assim.
E
então o homem, ao qual Maria tinha lavado os pés com seu próprio
cabelo, se pôs de joelhos, rezou por ela durante um tempo, alguns
minutos, e entrou na casa para jantar e beber com os rapazes. Quando
estava indo embora, disse ao irmão, depois de abraçá-lo: você
deveria soltá-la. A voz soava chorosa, talvez embriagada. E o irmão,
mexendo muito a cabeça, olhando para baixo, disse que sim, senhor,
será feita sua vontade. Marta saiu a seu encontro, pôs-se de
joelhos: por favor. É a casa do seu irmão, o santo respondeu a
Marta, eu não posso me impor a ele, o respeito a um homem é
demonstrado respeitando sua casa, mas já lhe disse que ele deve
soltá-la e vou rezar para que assim se faça. Você deve ter fé,
disse a Marta, fé, Marta, fé, antes de desaparecer no deserto.
Para
Marta, essa palavra já tinha gosto de merda na língua.
E
Maria continuou no estábulo.
Quando
o irmão ficou doente, Marta — à qual todos elogiavam por sua
entrega, sua disponibilidade, suas habilidades, seus cozidos, sua
ternura, suas infusões — se empenhou em cuidar dele. Ela o
alimentava, limpava, medicava e inclusive aplicava unguento branco em
suas partes íntimas em carne viva. Tudo aquilo que um observador
pudesse confundir com carinho era realizado com um ódio profundo.
Aos olhos alheios, Marta era pura delicadeza, mas quando estavam
sozinhos, ela o alimentava com caldos frios, gelatinosos, sempre com
um pouco de estrume fresco, areia ou minhocas que pegava no quintal e
que enfiava, tomando cuidado para não ser vista, numa caixinha. No
momento da limpeza que fazia no corpo do irmão, que havia se
convertido numa chaga púrpura, sanguinolenta e cheia de pus,
começava sendo terna, com água morna, azeite de coco e esponja do
mar e de repente, sem aviso, sem mudanças na respiração, se
tornava feroz. Marta trocava a esponja do mar por palha de aço e
esfregava os braços para cima e para baixo como se lixa a madeira.
Finalizava seu polimento com álcool. Era imaginativa, podia verter
cera quente nas feridas ou então cânfora, urtiga, limão. Depois
saía do quarto e ficava sentada numa cadeira ao lado da porta, com
as mãos cruzadas sobre o regaço, piedosas, e os olhos muito
fechados, enquanto lá dentro seu irmão se contorcia de dor e fazia
ruídos espantosos, surdos, porque já não podia gritar: a doença
havia arrebatado sua língua e no lugar dela tinha deixado uma
espécie de carúncula rosa que se movia dentro da boca desdentada
com um quê de monstruoso e lascivo.
Qualquer
um que tivesse visto Marta acreditaria que orava pela melhora de seu
irmão enfermo, mas ela estava rezando para que ele morresse
lentamente, com a maior dor possível.
Um
dia o homem morreu. Não foi fácil nem foi rápido, os estertores
horrorosos duraram horas. Estava com sede e ninguém lhe deu de
beber. Marta fechou as portas e as janelas e, como se fosse um
espetáculo, sentou-se para vê-lo morrer. Deixou-o agonizar em
solidão, apesar de o irmão estender sua mão esquelética para ela,
talvez pedindo companhia, contato. Que pusesse uma mão viva, como se
fosse cobrir um passarinho, sobre sua mão quase morta, que enxugasse
seu suor e que vertesse sobre sua testa ao menos um par de lágrimas,
dois diamantes pequenos, para que ele as entregasse a seja lá o que
for que estivesse do outro lado da morte. Os agonizantes gemem,
agitam-se, choram: temem que tudo o que se disse sobre o céu e o
inferno seja mentira. Ou que seja verdade.
Quando
o homem, por fim, ficou imóvel, a boca escancarada e os olhos muito
abertos, como se lhe tivessem contado algo engraçadíssimo, Marta se
levantou muito devagar, abriu a porta, percorreu os cômodos, saiu
para o pátio e com toda a teatralidade do mundo se jogou ao chão e
gritou e gritou e gritou até que vieram todos os vizinhos. Ela
tapava o rosto com as mãos, não havia pranto. Estava iluminada como
um astro. Maria escutou o grito e seu coração paralisou. Depois
fechou os olhos, infestados de ramelas, e voltou a abri-los muito
devagarinho, como um recém-nascido. E, como um recém-nascido,
começou a gritar chamando sua irmã.
Ao
fim de quatro dias, quatro, apareceu no povoado o amigo, o homem
santo, e então Marta teve que fingir, dizer não, não, não, e
chorar seu pranto sem lágrimas pelo irmão morto. Se você estivesse
aqui, disse a ele porque não lhe ocorreu outra coisa. Se você
estivesse aqui. Mas sabia que essas palavras eram tão ridículas
quanto pêsames, quanto uma oração. O que foi, foi. O que é, é.
Então o amigo, o homem santo, pediu que o levassem ao sepulcro e ali
o deixaram, de joelhos, chamando ao morto como se chama alguém do
umbral de sua casa, como se do outro lado da pedra tivesse restado
ainda alguma vida para escutar.
Marta
deu de ombros diante de semelhante insensatez e voltou à sua casa, à
festa de sua irmã livre, à vida.
Naquela
noite, enquanto Marta e Maria comiam cordeiro, uma batida na porta as
sobressaltou. Deve ser o vento. O vento nessa época, tão terrível.
Continuaram comendo até que Marta e Maria, ao escutar o ranger da
porta, levantaram a cabeça e viram que ela cedia à pressão de uma
mão. Ela se abria.
Primeiro
entraram as moscas e depois o irmão morto, rodeado de um cheiro
nauseabundo. Abria e fechava a boca, como se estivesse as chamando
pelo nome, mas nenhum som, apenas vermes, saía de sua boca
desdentada.
María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos
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